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Sobre a Cidade

Não quero falar de mim. Em mim não há nada de novo há quase um ano e, pelo andar da coisa, não há-de haver tão cedo. Ou talvez haja e eu é que não dei pela sua criação. Não é fácil distinguir os dias quando passam sempre da mesma forma. Sentado à varanda deste nono andar, com a cidade linda por baixo de mim. É difícil olhar para dentro quando temos uma vista tão bonita à nossa frente.


Ao contrário de mim, na cidade vejo que tudo se passa ao mesmo tempo. As ambulâncias servem de autocarros para os doentes e condenados, enquanto vizinhos e vizinhas sacodem tapetes para a roupa estendida uns dos outros, alegando distração. Ao contrário de mim, nunca há aborrecimento na cidade. As ruas são varridas do seu mau cheiro, enquanto a poluição e os perfumes da vaidade se espreguiçam com grande vontade, cada um para cada canto distinto. Ao contrário de mim, a cidade não se deita na cama a folhear três livros de uma vez, sem efetivamente ler nenhum. Ao contrário de mim, a cidade não esconde o seu caos em roupa que já devia ter ido para lavar e comida que nunca devia ter sido desejada. De todos os modos, não é de mim que quero falar.


Quero falar da cidade tão bonita neste crepúsculo vermelho e azul. Com as luzinhas desfocadas que vejo da janela por limpar, algumas a tilintar dentro das casas e outras nas estradas quase vazias. Parece tão quieta e resolvida. Ao vê-la assim, quase não consigo acreditar que também ela está empestada. Minada de vermes e guerras e vermes que querem guerras – adoeceu. Quero olhar para a doença pelos olhos de Rilke e pensar que será através dela que nos livraremos do que temos de podre. Mas como é que é possível acreditar nisso quando o que está podre é tão violento e barulhento?


A cidade é bonita mas às vezes parece que me entra pela janela dentro com os seus gritos. Acorda-me e abana-me a dizer que não está nada bem, que tem macacos a invadir-lhe as entranhas que berram porque querem berrar e não porque têm algo a dizer. Trepam-lhe as paredes dos prédios e declaram conquista nos topos dos edifícios, fazendo-se ouvir mais alto que as sirenes. São macacos porque não têm humanidade. Encontraram o grande prazer que é olhar para um espelho e nunca mais o largaram. Agora querem mandar na cidade e ela, que sempre mandou em mim, pede-me ajuda. Eu ajudá-la-ia, se pudesse. Se também eu não tivesse doente, de olhos presos à maquina que me fizeram sentir que tinha obrigação de ter. Apita, treme, canta, mostra-me coisas, tudo para me tirar os olhos da cidade. Desculpem, eu sei que não era de mim que ia falar, mas são efeitos colaterais desta doença. Não sou como os macacos que se agarraram aos espelhos, mas parece que às vezes também só me vejo a mim à frente.


A cidade é bonita mas às vezes parece que não me quer como eu a quero a ela. Não sei se é da sua doença, mas olha cada vez menos para mim com ternura. As vizinhas e vizinhos não sacodem migalhas para a roupa estendida dos outros por distração, mas porque no seu espelho bonito não vêem o problema. As suas barrigas não encolhem, nem as suas camas ficam mais pequenas quando incomodam os outros. Mas eu, se não estivesse no nono andar – que é também o último do prédio – não ficaria contente com migalhas de pão no meu estendal. Da mesma forma que não fico contente quando poluem a minha vista sobre a cidade com espelhos voltados de costas para mim e apitos telefónicos que não dizem nada de todo. É como se me tornasse podre por dentro, com macacos nas minhas veias a mandar o lixo para o chão. Com ambulâncias dentro de mim a tentar salvar-me os orgãos, desviando-se de calhaus e encostas que caem sabe Deus de onde. Foi assim que me tiraram o silêncio da cidade – as ambulâncias gritam, os macacos gritam e até os calhaus gritam – todos ao mesmo tempo. É difícil olhar para dentro com uma cidade bonita à minha frente, mas não é difícil ouvir-me gritar no mesmo tom que ela. Um uníssono doloroso, talvez até engraçado e desajeitado.


E eu sei que não era de mim que ia falar. Era da cidade, mas às vezes é difícil perceber onde acaba um e começa o outro. Quando os dois ruímos e nos vendemos. E nos castigamos . E nos cegamos. Talvez em prol de coisa nenhuma, apenas por estarmos doentes com esta mania de sobreviver a qualquer custo, mesmo que seja deitados juntos nesta cama de hospital, com macacos, ambulâncias, migalhas, calhaus e poluição a misturar os limites de um e de outro.


No fim de contas, não sei sobre qual dos dois foi este texto.

Por Francisco Neto

Nasceu na Amadora, na meia noite de vinte e nove para trinta de dezembro de 1996. Passa a maior parte do seu tempo a cantar e sem saber o que quer ou onde quer ir, tendo assim concluído um curso de Marketing e Publicidade no IADE, sem qualquer razão em particular. Apesar da sua indecisão patológica, nunca teve dúvidas de que não suportava o sabor a queijo e que esse era um facto que qualquer pessoa teria de saber, se quisesse participar na sua vida. Tende a pedir dezenas de conselhos para solucionar os mais pequenos problemas da vida, apenas para os ignorar olimpicamente e decidir por si só o que há-de fazer. Precisamente por essa razão, decidiu que deveria apostar a sua vida na escrita e na música, as duas artes pelas quais nutre uma maior paixão. Não sabe escrever coisas sérias a menos quando escreve canções. Aí, é inconsolavelmente fatalista. Evidentemente, graças à sua indecisão, continua a trabalhar a full time em todas as outras artes existentes, para poder sobreviver neste mundo.

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