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O Homem Mealheiro

Ouço em mim, nos passos que dou, o dinheiro que tenho a chocalhar. Ou o que não tenho, porque ouço o que não chocalha também. Ouço o vazio que ele deixa, o eco que preenche o vazio que esse dinheiro – o que não tenho – ocupa. O que há é tão pouco que se conta em meia dúzia de moedas que dançam corpo acima corpo abaixo. Como pedras num adufe, ameaçam rasgar-me a pele. Se rasgarem, que desenho farão na minha pele? São ferrugentas, encardidas e gastas. Gastaram-se a trabalhar.

Sou como um mealheiro quebrado, o tostão entra na ranhura sobre a minha cabeça e, antes mesmo de pestanejar, está a escapar-me pela planta do pé. Mesmo que o pise, não é meu. O dinheiro que ganho não chega a ser meu – não chega a ser eu. Não somos o dinheiro que temos, dizem sempre, mas o que temos tem poder sobre o que somos.

Penso tanto no dinheiro que não tenho que o ouço sempre chocalhar. Queria o silêncio porque silêncio seriam notas. O silêncio seria o conforto de uma casa que não tenho. Canta um Bernardo que passou a vida a trabalhar para fazer nada e o homem tem razão. Trabalhamos não para poupar ou viver mais confortavelmente, mas para manter seis tostões corpo acima corpo abaixo, conscientes de que nos vão fugindo dos pés, por isso, enchemos a cabeça.

Ouvem? Chocalho para cima, chocalho para baixo. Outra e outra vez. Não fosse a pele um cobertor que abafa a cantiga das moedas, pareceria eu uma pandeireta?

Jurei colar os pés ao chão para segurar os tostões, mas parado não lhes dou uso nem lhes arranjo companhia. Viver é gastar: o dinheiro, o corpo, a vida, o mundo – é gastar tudo o que somos e tudo o que nos rodeia. Gastar as pessoas, até.

A palavra gastar soa a ato irresponsável, como se fosse um capricho ou ímpeto obscuro tão forte como o de um vício. Vestiram-na de má fé e tornou-se depreciativa. Gastar é coisa da ralé, os ricos investem. Prefiro a palavra dar a gastar. Isso sim é coisa de ralé, os ricos pouco dão. Dar dinheiro a negócios, prazeres, lazeres. Dar o corpo a negócios, prazeres, lazeres – às pessoas, ao mundo, a manifestos, dar o corpo ao que quisermos. Dar a vida à morte, negociar a duração dos negócios, prazeres e lazeres, negociar a validade. Dar a vida à morte porque lhe estamos prometidos. Dar vida às pessoas, aos sítios e aos negócios, prazeres e lazeres a que a dedicamos. Dar mundo a quem conhecemos entre negócios, prazeres e lazeres. Dar mundo ao mundo que seremos mais um filho seu, mais ossadas para o cimentar. Mais uma dádiva. Damos mais do que gastamos. Gastar pressupõe – deixem-me teorizar – uma escolha, uma certa luxúria ou desejo cru de querer ter. Eu quero gastar isto naquilo porque eu sou assim e quero ter, posso ter. Damos a vida porque a temos e sabemos não ser só nossa. Aprendo que o dinheiro também não. Nem o mundo ou mesmo o corpo.

A relação que temos com o dinheiro é de possessão. Resta esclarecer se somos nós que o possuímos ou ele a nós. Se eu for, de facto, um mealheiro, posso só guardá-lo, sem que ele me pertença. O poder está do lado dele. Não precisa que o guarde, existe por si e há sempre alguém que lhe deita a mão. Já eu, se mealheiro, preciso dele para justificar a minha existência. Se homem, dependo dele para sustentar a minha existência. O dinheiro pode sempre mais.

Cresci na dinastia do dinheiro, onde as vidas se fazem em prol do rei. A veneração era tal que penso em dinheiro desde que penso em ser. Desde que sou. Lembro-me de olhar desiludido para as minhas mãos pequenas, gordas e quase sempre sujas, porque não lhes chegava um tostão. Trabalhar, ganhar, poupar, perder, precisar, pedir, gastar, querer. Todos querem dinheiro. Tenham muito ou pouco, quer-se sempre dinheiro. E eu quis dinheiro assim que a vontade me nasceu. Corpo pequeno, ossos quase moles, sentia pouco mais do que fome e sono, mas nasceu-me a vontade e gritou: dinheiro. Com a vontade veio a angústia, porque querer nunca vem só. Querer é fácil na medida em que nos é inato. Nem todos quereriam nascer, mas, nascendo, quer-se tudo. Até os que não queriam nascer passam a querer não ter nascido. Como querer não é necessariamente poder, quando não se pode, quer-se não querer.

A ânsia de querer existe porque nos satisfaz almejar. A inundação de vontade ajuda o sangue a fluir corpo acima, corpo abaixo – como as moedas. Mas querer sem poder tira o encanto à inundação e transforma-a numa corrente forte e agressiva que nos cansa por dentro.

Era ainda um garoto com jardineiras de pano e, antes de sentir a porrada que é querer e não ter, encontrei uma moeda no chão. Fiel à dinastia que nos governa, apanhei-a com os meus dedos gordos e imprecisos, apertei-a com a força que tinha e senti o que é concretizar o querer. As mãos finalmente encontraram um tostão. A vontade gritou-me que o guardasse, mas as jardineiras de pano não tinham bolso e eu não era – ainda – um mealheiro. Comi a moeda. A única, até ver, que não me escapou do corpo pela planta do pé.

Talvez tenha sido esse o dia em que o meu corpo, a par com o que já ia na minha cabeça, se transformou num mealheiro. Terá sido nesse dia que se começou a esculpir na parte superior do meu crânio – a que se dá à lua, ao sol, ao trono alto do rei dinheiro cuja sombra nos cobre a todos – a ranhura do mealheiro que sou.

Levantei-me trôpego e depressa ouvi baixinho o que viria a ser o chocalhar da moeda. Não era ainda um chocalhar corpo acima, corpo a baixo, a cada passo curto e desengonçado. Chocalhou a medo e enterrou-se no estômago por algum tempo. Ouvi ali, pela primeira vez, o primeiro tempo do compasso que me persegue. A planta do pé estaria ainda intacta. Julgo que não teria o tamanho suficiente para se deixar fazer ponto de fuga. Hoje há mais margem para fugirem do que para me chegarem. Perco-as a cada passo.

O chocalhar substituiu a pulsação. Quando se ouve menos, sinto a vida a ir-se com as moedas. Instala-se cansaço tamanho que nem a vontade que me grita “dinheiro” chega para o empurrar para longe. O corpo que quis forrar-se delas, talvez até fundir-se com elas, tornou-se um mero mealheiro.

Sou um mealheiro na dinastia do dinheiro. Já não visto jardineiras de pano, as moedas esmurram as paredes doridas do mealheiro estafado. Queria ser o homem moeda e sou o homem mealheiro. Entre o chocalhar irregular e a ânsia da vontade a gritar mais alto do que eu, sussurro exausto: quero não querer dinheiro.

Por Mariana Godet

Chamo-me Mariana Godet, não me levo a sério o suficiente para escrever sobre mim na terceira pessoa e acho que é cedo para escrever uma biografia. Ou tarde? São só vinte e seis anos, que continuam a pesar invariavelmente mais à minha mãe do que a mim. E ela é muito magrinha, leve e facilmente transportável. Dado este que vos permite calcular o quão insignificante é, afinal, o peso da minha existência. Ela diz que foi há uma vida. Mas que vida? Se nela não aconteceu nada digno de especial destaque? Estou a tempo - eu sei, mãe.
Sou irmã da melhor irmã do mundo. Gosto de frio, castanhas, chocolate, chá e café. Gosto de mantas, o que me torna incompatível com o calor. A bondade comove-me e a maldade enjoa-me. Gosto muito de liberdade e pouco de quem a quer levar. Gosto de olhar e ser olhada nos olhos, alturas dizem-me pouco e o respeito não nasce dos ombros - vem de dentro e passeia pelo sangue.
Escrevo por necessidade. Necessidades, para ser mais precisa. Vou descobrindo quais são. Espero que encontrem aconchego aqui.

2 comentários a “O Homem Mealheiro”

‘Trabalhamos não para poupar ou viver mais confortavelmente, mas para manter seis tostões corpo a cima corpo a baixo, conscientes de que nos vão fugindo dos pés, por isso enchemos a cabeça.’ Gostei da tua oralidade e ponto de vista do Homem Mealheiro. Grande visinha.

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