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Insónias

Aconteceu-me nessa noite ter uma insónia, pois são raras as vezes que não durmo que nem uma pedra. Poderia enumerar as razões que me mantinham acordado, mas pensar nelas propositadamente iria manter-me ainda mais acordado. Assumi a minha insónia, levantei-me, vesti o roupão. Da mochila, tirei o maço de tabaco. Abri a janela da marquise da cozinha já de cigarro na mão e, nesse preciso momento, observei a coisa mais estranha que alguma vez vira. No parque-infantil – este encontra-se no jardim que serve de vista à marquise – estavam dois homens, ambos de tronco nu, a olharem-se intensamente enquanto andavam em círculo. O diâmetro do círculo ficava menor a cada volta que os homens davam. Estavam cada vez mais próximos, já a um braço de distância. Não se ouvia nada. Apenas era visível a sua respiração, quase animalesca. As suas cabeças curvavam-se para a frente, a qualquer momento poderiam se cabecear ou beijar. Um deles, não era possível distinguí-los, agarrou o outro pelo pescoço e levou-o ao encontro do seu joelho arqueado. Foi aí que ouvi um primeiro som, um gemido alto de dor, que me fez fechar os olhos por breves segundos; quando os abri, estava deitado no chão a recuperar o que acabara de levar uma joelhada; levantou-se, limpou o nariz ensanguentado com o braço e demonstrou-se de novo pronto. Estavam novamente perto, muito perto, um do outro. Alguns segundos depois, o ensanguentado vai, de punho cerrado, à garganta do outro, que a agarra enquanto tosse e respira como um asmático. O ensanguentado nem esperou pela recuperação do outro, não percebi como mas imobilizou-o rapidamente no chão com um joelho no chão e outro na caixa torácica do imobilizado, que continuava a tossir. O sangue que continuava a jorrar do nariz do imobilizador caía sobre a cara do outro. Ficaram-se naquelas posições e eu, que sustentava a respiração há algum tempo, voltei à minha realidade, percebi que tinha um cigarro na mão que não acendi. Peguei no isqueiro que já cabia dentro do maço e acendi. A chama do isqueiro chamou a atenção da visão periférica do imobilizador que agora olhava na minha direção, e eu, em pânico, fechei a janela da marquise, não querendo terminar sem camisa a lutar num parque-infantil. 

Curiosamente, nessa semana, não consegui dormir bem uma única noite; acabava por me levantar várias vezes durante a noite e ir até à marquise fumar um cigarro enquanto observava o parque-infantil. Continuo sem saber o que me manteve acordado nessa semana: se os meus problemas ou o daqueles dois homens.

Por Afonso Abreu

nasceu no Funchal, em 1999. Aos dezoito anos, decidiu mudar-se para Lisboa para estudar teatro; estando a terminar a licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema. A sua presença em palco é tão forte que em vez de estar a fazer um espetáculo, está a escrever contos para uma publicação. Gosta demasiado de doces, talvez por influência do avô pasteleiro, mas tem medo de se tornar diabético, como o avô pasteleiro. No secundário descobriu que tinha apetência para roubar chocolates na máquina de snacks. A última coisa que roubou, há dois anos, foram elásticos de cabelo numa loja de roupa barata que explora crianças no Bangladesh.

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