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Narciso Injustiçado

Não soube o que dizer quando me chamaste narcisita e me viraste as costas. Pensei belas costas, pensei não acho que seja narcisista, pensei que nem sabia bem se ser narcisista era o que eu pensava que era e pensei que te queria responder alguma coisa sobre isso mas já não estavas ali. Eu tinha perdido a oportunidade de impedir que fosses passear as tuas belas costas para outro lado. Nessa noite fiquei acordado como fico muitas vezes. Acho que é porque preciso de sentir a solidão. Pensei em Narciso, claramente das figuras mitológicas mais injustiçadas de que há memória. Pensei nesta afirmação e pensei logo em Ícaro, na sua sede de conhecimento visto como soberba e nalguns outros que por uma razão ou outra foram sendo erradamente reintepretados como maus exemplos para impingir a moralidade da humildade exacerbada anti-sabedoria.
Pensei que a maior lição que narciso nos dá nada tem que ver com as consequências do egoísmo, da vaidade ou do desprezo pelo próximo. Não é culpado dos defeitos da humanidade nem da situação em que foi colocado pelo oráculo que lhe destina a morte no momento em que vê o seu próprio reflexo na água e acaba por definhar, perdido na sua beleza e no amor-próprio, essa noção moderna que impingimos uns aos outros como forma de desculparmos a nossa imperfeição e encontrarmos a felicidade tranquila que nos torna mansos, desinteressados, desinteressantes, incapazes de pensamento crítico e de revolta. A verdade das histórias reside na boca de quem as conta e reconta e no recontar deturpou-se e perdeu-se a essência dessa verdade. E a verdade é que narciso é o herói da luta contra os brandos costumes, contra a aceitação da homogeneidade da espécie humana. Ele recusa o amor não correspondido e apenas deseja partilhar aquilo que no seu íntimo aceita como profundamente real. Não há nada falso em narciso, nada escondido, nada politicamente correto. Acredita na sua esplendorosa beleza e maravilha-se com a possibilidade de ser diferente, de ser único, de ser especial. Essa é a dádiva que nos deixa, a consciência da individualidade que se torna plena quando, contrariando o que lhe era imposto sob pena de tropeçar pela espiral dos dramas humanos, vislumbra o seu próprio reflexo. É por isso que narciso é o herói da história. Sacrifica a sua vida para que tenhamos consciência de nós próprios como seres diferentes de todos os outros, ao mesmo tempo que nos alerta para os perigos da salvação: Em terra de cegos quem tem olho é linchado, crucificado, apedrejado, ridicularizado e morto.
Penso, leio observo, discuto, ponho em causa e questiono, aceito a minha individualidade mas sempre com a consciência de que o conhecimento e a inteligência não trazem felicidade. Trazem consciência e sabedoria. Para cada um de nós valerá ou não o sacrifício.
Pensei que nada disto tem que ver contigo nem com as tuas belas costas mas pensei também que gostava de ter tido esta conversa contigo. Mas não podia. Já não estavas ali.

Por Simon Frankel

nascido a sete de abril de 1982 em Melbourne, Austrália, filho de mãe portuguesa, o pai nasceu no Brasil e viveu a vida toda na Austrália, o avô paterno era alemão, a avó paterna era húngara e a bisavó paterna era romena. Do lado do pai todos judeus, os avós fugidos da perseguição nazi conheceram-se em Inglaterra e foram viver para o Brasil e mais tarde para a Austrália. Os pais conheceram-se no Perú e nesse mesmo dia decidiram casar, o que fizeram dois meses depois. Ainda hoje são felizes. Estudou, deixou de estudar, trabalhou e voltou a estudar. É ator e agricultor/estudante. Come as maçãs todas e deixa só o pauzinho, come os olhos do peixe e os rabos queimados das sardinhas. Sociável e tímido, finge que não é, ninguém acredita. Odeia palmas e opiniões. É fundamentalmente de esquerda porque não existem intelectuais de direita. É apolítico e simpatizante anarquista. É confuso, mas gosta de ser assim. Gosta de ser.

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