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São lonjuras, Senhores

Era grata pela quantidade de memórias que tinha amealhado: da sua mãe, com os dentes da frente separados “dentes de malandra” com ela dizia – que deixaram de ser.


São lonjuras, Srs. 

Sentia saudades de tudo, o que a deixava descansada, significando que ainda tinha memória, embora começasse a ser frequente esquecer-se de coisas tão simples como chegar à cozinha sem saber por quê. Não se preocupava com esses pequenos sinais do início precoce de uma demência senil. Cada vez tinha mais saudades e por curiosidade consultou a sua definição.

1. Lembrança grata de pessoa ausente, de um momento passado, ou de alguma coisa de que alguém se vê privado.

2. Pesar, mágoa que essa privação causa.

A primeira definição encaixava na perfeição – gratidão e privação – que nalguns casos levava ao ponto dois, a mágoa.

Era grata pela quantidade de memórias que tinha amealhado: da sua mãe, com os dentes da frente separados “dentes de malandra” como ela dizia – que deixaram de ser (até nisso a sua mãe contrariava a natureza) e das viagens realizadas com a mãe ao longo de tantos anos no lancia Delta preto onde ouviam a TSF e depois Joan Baez ou Paul Simon. O mesmo carro que albergava qualquer pessoa que a mãe visse a andar a pé em esforço; das vésperas de Natal e do cheiro a pinhões; do pão quente com queijo fresco que a mãe fazia questão de comprar todos os dias; das festas que organizava sozinha, quando parecia que mais de cem pessoas o estavam a fazer; das suas mãos delicadas, com os dedos tão finos que usava para fazer broas e cujo cheiro invadia toda a rua; dos enfeites que criava para todas as ocasiões que considerava especiais; e dos mimos que recebia das mãos da mãe. 

Estas saudades, gratas, matava sempre que visitava os pais e seguramente originariam muitas mais. Djavan relembrava-a com a sua música, “…é doce morrer nesse mar de lembrar e nunca esquecer…. Isso sim, pra mim é viver “, a importância destas saudades.

Já as saudades de privação agonizavam-na a ponto de não saber se era melhor lembrar ou esquecer, quando sabia ser impossível apagar parte da sua vida. 

Escrevia cartas, mesmo que em vão, numa tentativa de obter respostas que nunca chegavam. Gostava de escrever desde que se lembrava de ser gente e ainda guardava numa grande caixa cartas trocadas com metade da sua vida. Essa caixa, bem como a sua memória olfativa, ajudavam-na construir o passado. Podia viajar para qualquer sítio que quisesse e a partir daí reconstruir uma história – por exemplo o cheiro a eucalipto, que a levava para grandes campos cheios de arvores verdes, onde andava a cavalo com o seu irmão, ou o cheiro a madeira que remontava para a casa onde nasceu.

Conhecia também o odor de cada pessoa que amava e se, acaso fora de alguém que já não estava na sua vida, largava-se em lágrimas e recordava Denison Mendes (dizem que atribuído erroneamente a Caio F. Abreu) com a sua frase:

“O médico perguntou: — O que sentes? E eu respondi: — Sinto lonjuras, doutor. Sofro de distâncias”.

Hoje sentia-se muito doente, padecia de lonjuras, sofria de distâncias.

Por Isabel Ascenso Pires

Nasceu num pequeno bairro de Lisboa – Bairro da Encarnação- que geometricamente tem a forma de uma borboleta.
Licenciada em ciências farmacêuticas, por vontade do pai e da avó paterna, dedicou dez anos da sua vida a conhecer e a dispensar medicamentos.
Apaixonada por cinema, incomoda-a ver um filme com luz ou ruídos parasitas.
Na música, uma das outras paixões, tem um gosto eclético que vai desde Sex Pistols até Chopin.
Apaixonada por fogueiras, sobretudo as do Strummer.
O seu escritor de eleição é o Bukowski, o músico o Bowie e o realizador de cinema o Kubrik.
Agnóstica na esperança de o deixar de ser.
Não gosta de doces, adora queijo, presunto, pão e vinho. Tinto.
Tem uma filha de 8 anos, que acredita que um dia irá mudar o mundo pois vê nela muita força e bondade.

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