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A coisa de dentro

Quero aviar receita. Uma prescrição, um receituário, dê-me qualquer coisa. Dê-me comprimidos, xaropes, ampolas, cápsulas, vitaminas, chás, mézinhas, promessas. Dê-me qualquer coisa que me resolva, por Deus, se for crente. Por obséquio, se não for. Por qualquer motivo que lhe pareça digno. Começou há tanto tempo que os pormenores, cobertos de cotão, já me escapam à vista. Sei dizer que começou como uma espécie de calor que virou cólica, um qualquer desarranjo progressivamente mais acentuado e ruidoso. E logo em mim, que tendo a fazer do diálogo que o corpo estabelece com a mente um monólogo. Não tenho especial prazer em ouvi-lo e menosprezo com frequência os pedidos de atenção. Acredito que a cabeça manda e eu mando qualquer suspeita de doença procurar outro poiso. Não nasci para adoecer. Mas o desarranjo adensou-se de tal forma, que comecei a procurar médicos para perguntar: nasceu-me a doença? Todos temos doenças, todos temos coisas, disseram-me. Mas eu não quero ter coisas, quero fazê-las como todos fazem. Eu sonho, planeio, tento e falho. Já fiz coisinhas. Já criei uma coisita aqui, outra ali. Todos fazem tantas coisas e eu não estou capaz de dar à luz uma que seja. Não é inveja, é aflição, porque sei que qualquer coisa está cá dentro. E está tão inquieta e violenta, que parece não caber dentro de mim.

Vá, não seja escatológico. Não desminto que no princípio parecia qualquer coisa da ordem digestiva. Quando se agravou, julguei ser patologia intestinal. Hoje, ofegante, sei que está por toda a parte.

Não é merda.

Poderá ser merda.

Queira Deus que não dê merda.

Mas revolve-se para aqui numa correria louca que me cansa o cansaço. Num dia de particular algazarra entre as miudezas, que pareciam ser recheio metálico que virou orquestra, estava já incapaz de sentir de onde vinha ou escutar para onde ia o chinfrim agudo que me tricotava por dentro. Concluí: apendicite, somavam os ais e uis que largava sem critério. Teria proferido a sentença, se estivesse capaz de vociferar mais que uns pares de vogais amarradas ao acaso. Na pontada mais profunda – que corresponderia a 9 na escala de Richter se medissem sismos nos abismos da gente – imaginei a minha apêndice a soltar-se do intestino como o desintegrar da grandiosa pangeia. Como se um cordão umbilical ligasse os dois, senti-o esticar até ao ponto de ruptura. Porque seria, efetivamente e logicamente, tecido intestinal a rasgar, milímetro a milímetro, tão lentamente.

Ciência é ciência e isto não é uma opinião médica, é um relato humano de um acontecimento desumano com todo o direito de desconcertar a pequena porção de humanidade que o ler. Finalmente o fio, que era afinal intestino, deu de si e a apêndice soltou-se como um balão da mão de uma criança. A falta de destreza da mão de uma criança traduz competentemente o fraco desempenho dos meus órgãos. Acharia o meu intestino que a apêndice era brinquedo de arremesso? O corte umbilical aliviou a dor durante ⅕ de um piscar de olhos, que foi o tempo que a ponta-mãe – a do lado do intestino – levou a regressar à base num recolher elástico tipo fisga. Muito breve. De volta à dor excruciante, quis continuar a ver o meu intestino como uma criança tola que não sabe o que faz, na esperança que a superioridade me trouxesse conforto – não trouxe. A apêndice foi-se, mas a coisa ficou-se.

Corri médicos de várias especialidades. O último garantiu que estou bem “até ver”. E depois de ver? Tanto médico para chegar a um autodiagnóstico. Mais barato, mas nem por isso menos doloroso. Queria consultar-me, inventar um tratamento ou eventual cura. Persegui o diagnóstico numa corrida coxa e longa, enquanto improvisava e testava automedicação. Eis que uma pareceu funcionar. Primeira toma: apneia reduziu.

Escrever é o remédio, mas estancou-se-me a torrente de ideias. Não as tenho, desejo-as como a fome deseja uma côdea de pão e uma sopa quente. Tremo sem elas como um nu ao frio deitado sobre a calçada gelada. Choro se as não tenho, como chora quem enterra um amor. Não durmo direito, como aqueles que as insónias erguem para lhes espancar a paciência noite fora. Inspiro num esforço deficiente que só desenrasca, porque são as ideias que abrem, em mim, a porta ao ar que vem de fora.

O corpo dói-me, o que me faz acreditar que são elas, as ideias, que me fazem funcionar por dentro. O ego chora baixinho porque quer ser um ego de uma criadora, mas mais não vê que abortos sucessivos de qualquer criação que ameace nascer. E se acabarem as ideias? Findo-me com elas.

Por Mariana Godet

Chamo-me Mariana Godet, não me levo a sério o suficiente para escrever sobre mim na terceira pessoa e acho que é cedo para escrever uma biografia. Ou tarde? São só vinte e seis anos, que continuam a pesar invariavelmente mais à minha mãe do que a mim. E ela é muito magrinha, leve e facilmente transportável. Dado este que vos permite calcular o quão insignificante é, afinal, o peso da minha existência. Ela diz que foi há uma vida. Mas que vida? Se nela não aconteceu nada digno de especial destaque? Estou a tempo - eu sei, mãe.
Sou irmã da melhor irmã do mundo. Gosto de frio, castanhas, chocolate, chá e café. Gosto de mantas, o que me torna incompatível com o calor. A bondade comove-me e a maldade enjoa-me. Gosto muito de liberdade e pouco de quem a quer levar. Gosto de olhar e ser olhada nos olhos, alturas dizem-me pouco e o respeito não nasce dos ombros - vem de dentro e passeia pelo sangue.
Escrevo por necessidade. Necessidades, para ser mais precisa. Vou descobrindo quais são. Espero que encontrem aconchego aqui.

Um comentário a “A coisa de dentro”

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