Categorias
Todas

O Homem que não conseguia tirar férias

Sei que não tenho órgãos para isso, mas vou ao médico todos os meses. Não é que seja hipocondríaco, é que, de quando em vez, tenho dores que não sei etiquetar e, para quem sabe um pouco de mim, sabe que adoro rótulos. Não sei porquê mas trazem-me alguma calma e o meu médico arranja sempre um nome para aquilo que me doi, por isso, gosto de o visitar com frequência, qual dose mensal e cavalar de ansiolíticos.  

Geralmente tenho consulta dia 15, mas às vezes (muitas vezes) atrasa-se. Começa comigo a sentar-me na minha cadeira que rodopia – passo os primeiros minutos a distrair-me com as suas funcionalidades giratórias. Quando me aborreço, encaro o meu médico de olhos brilhantes a olhar-me diretamente na alma. Nesse momento, sei que já me está a analisar, à procura nas minhas entranhas da dor mensal que me trouxe ali. Evidentemente, eu começo com uma piada, à qual se segue um silêncio no qual ficamos a olhar um para o outro sem qualquer expressão fácil.

Não se ri das minhas piadas, mas eu gosto do meu médico. Ele sabe tudo, não só da verdade, mas da mentira. Ele sabe usar aquelas palavras que mais ninguém se lembra de usar, como “prostrado”, “catatónico” ou “berlinada”. Gosto de aprender essas palavras com ele, são mais rótulos que guardo para me trazer calma. E eu preciso de muita calma. Preciso tanto de calma que, por vezes, invento dores só para poder ir ao médico assegurar-me que, caso um dia tenha uma dor daquelas, já saberei o seu nome.

Este mês, contudo, a consulta está a ser bastante dececionante, sem rótulos ou nomes ou títulos ou prognósticos. Comecei por dizer “Não consigo tirar férias” e ele, como de costume, tentou analisar-me e auscultar-me as emoções. Já estamos a dia dezoito e eu sinto o tempo a passar para lá do nosso contrato mensal, de maneira que há alguma pressa a pairar nesta consulta. A culpa é minha, eu é que adiei três ou quatro vezes, mas a verdade é que não arranjei tempo para me sentar com ele antes. E, mesmo aqui sentado, estou de estômago vazio, porque esta seria a minha hora de comer. No restante tempo do dia, são as horas que me comem a mim.

Contudo, nesta consulta, o tempo também me parece consumir como uma iguaria psicótica. O médico já me analisou e agora ficámos a olhar um para o outro há minutos sem fim. O meu estômago ronca de vez em quando, eu fungo porque estou a ficar constipado e, quando os minutos se somam em horas, começo também a bocejar. O tempo passou e entretanto já é de noite, quase dia dezanove e eu ainda sem saber o nome disto que me doi.

Só sei que me dói aquilo que arrasto. Tudo depende de mim. A fome depende de mim. O descanso depende de mim. O corpo depende de mim. A pele depende de mim. A felicidade depende de mim. Eu! Eu dependo de mim. Mas eu queria depender da minha mãe. Do meu amor, de quem me ama. Não queria ter de ser forte e emancipado para estar do lado certo do jogo. Queria ser fraco e deixar-me ir, desistir de vez em quando e assumir derrotas como já assumi um namorado – que assumir derrotas seja tão célebre como um namorado assumir um namorado! Que viver não seja estar no lugar da frente de uma filinha pirilau de dependências que badalam e pendem agarradas a nós, arrastadas pelo chão  a chamar o nosso nome constantemente.

É isso que me dói este mês. Se é verdade, se é mentira, não sei. Mas com ou sem rótulo, esta foi uma boa consulta, obrigado.

Por Francisco Neto

Nasceu na Amadora, na meia noite de vinte e nove para trinta de dezembro de 1996. Passa a maior parte do seu tempo a cantar e sem saber o que quer ou onde quer ir, tendo assim concluído um curso de Marketing e Publicidade no IADE, sem qualquer razão em particular. Apesar da sua indecisão patológica, nunca teve dúvidas de que não suportava o sabor a queijo e que esse era um facto que qualquer pessoa teria de saber, se quisesse participar na sua vida. Tende a pedir dezenas de conselhos para solucionar os mais pequenos problemas da vida, apenas para os ignorar olimpicamente e decidir por si só o que há-de fazer. Precisamente por essa razão, decidiu que deveria apostar a sua vida na escrita e na música, as duas artes pelas quais nutre uma maior paixão. Não sabe escrever coisas sérias a menos quando escreve canções. Aí, é inconsolavelmente fatalista. Evidentemente, graças à sua indecisão, continua a trabalhar a full time em todas as outras artes existentes, para poder sobreviver neste mundo.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *