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2023

O meu 2023 estava sob aviso amarelo, quando ainda vivia os resquícios de 2022. Dois mil e vinte e dois, escrito letra a letra é um ano que o papel (ou, melhor, o ecrã) me devolve em desamparo. Nunca me hei-de habituar ao passar do tempo, tão rápido passa que depressa parece tão distante. Talvez por isso tenha sentido a necessidade estranha de escrever isto neste preciso momento. Deveria estar a trabalhar, mas não tiro muito tempo para refletir no que aconteceu ou tem acontecido. Tenho a tendência para me deitar à margem do que acontece, sem observar com grande atenção o que se dá nas correntes daquilo que se passa. Talvez possamos começar por aqui com o que esteve de errado em 2023, ou talvez possa prolongar um pouco mais esta introdução. 

Terei de escolher a segunda opção, lamentavelmente. A verdade é que não poderei avançar sem antes avisar que, neste ponto, não poderei fazer promessas ou garantias sobre o que irei escrever a seguir. Nem sequer consigo assegurar que é para alguém que escrevo, pois quem sabe este não acabará por ser mais uma tentativa falhada de reatar a minha paixão pela escrita. Por esse motivo, peço apenas paciência ao longo desta reflexão, poderei perder-me ou até mesmo perder o sentido, e não quero que se assustem porque hoje, a 29 de dezembro de 2023, estou bem. 

Gostava de ter algo a que me agarrar para começar este texto, mas não mantenho diários e tenho tido uma vida demasiado corrida para apontar os meus pensamentos em algum lugar para além das notas de voz do telemóvel. Um facto curioso sobre estas gravações é que elas ficam automaticamente guardadas com os nomes das ruas, avenidas e lugares em que estou quando as gravo. Por exemplo, uma das primeiras notas que gravei este ano data o dia 1 de janeiro e ficou guardada com o nome de um restaurante de sushi em Alvalade. Nela, tenho a voz cansada das celebrações todas que a essa altura do ano dizem respeito e, apesar de não me recordar das suas circunstâncias específicas, sei que ansiava muito por ir para casa repousar. Ao gravar, cantei uns versos românticos sobre querer passear à margem do rio, abraçar e beijar a pessoa que eu amo – ele mora ali perto e havíamos passado muitos dias na companhia um do outro. Cantava porque 2022 tinha terminado numa nota de amor e eu começava um novo ano com o coração em transbordo do que há de melhor.

Mais à frente, numa nota de catorze de fevereiro, na Avenida das Forças Armadas, ouço-me cantar no carro. Também tinha a voz cansada mas, neste caso, cantava em suspiro, num daqueles tons que sei que me levam a torcer a cara em dor. No meu canto, perguntava:

Cadê a fonte de beber, a fonte de sonhar, a fonte de viver 

Cadê a fonte em que bebi, a fonte em que sonhei, a fonte que eu perdi.

Foi por volta desta altura que deixei de dormir. Se não me engano, esse foi precisamente o dia em que levava mais de 48 horas sem desligar o cérebro. Foram dias em que eu chegava à noite com perguntas e ela devolvia-me horas para pensar. 

Tinha passado os meses anteriores a adiantar o Estado da Arte da minha tese de mestrado, sem grandes saídas ou convívios que me pudessem distrair e recordar que a vida tem coisas que valem mais a pena que um diploma. Tinha-me proposto a fazer um projeto visual, do qual fazia também parte uma componente teórica e, nessa altura, estava a desenvolver o storyboard daquilo que viria a ser o meu projeto. Estava entusiasmado porque nunca tinha tido grandes dificuldades nos estudos e, ao longo de todo o ciclo, tinha tido resultados suficientes para me acamar em seguranças.

Eu queria falar de como vejo a sociedade de trabalho em que estava inserido. Tinha muito interesse em explorar a dualidade entre querer contribuir artisticamente para um mundo em que se mede sucesso pelas palpitações cardíacas. Curiosamente, foi neste processo que descobri que o meu coração tinha deixado de bater da mesma forma. As insónias chegaram no frame específico de um plano, em que me desenhava sentado à secretária, num cenário que simulava um escritório. Foi nesse desenho que me dei conta de como me via, inserido na vida que tinha escolhido para mim, mas que eu insistia que me tinha escolhido ela a mim. Foi também nesse desenho que me dei conta que o que eu queria contar no meu projeto era uma história altamente defeituosa e que a minha visão para ela não era nada mais, nada menos, que ilusória. Foi nesse desenho que deixei de dormir.

Se me perguntarem por onde andei entre fevereiro e abril, a verdade é que não sei responder. Recorreria às minhas notas de voz para me auxiliarem mas, ao que parece, foi um período bastante silencioso. Sei que em fevereiro fiz uma viagem a Malta com família e talvez o saiba porque tenho fotografias disso e guardo na memória a palete de cores desses dias: o céu azul e o castanho terra dos edifícios. Sei também que, nesse período, deixei de mexer na tese porque a queria tirar da cabeça, para que pudesse descansar em paz. Contudo, cada canto do meu cérebro estava absolutamente contaminado com a minha imagem à secretária, com os autores do Estado da Arte e com o trabalho que queria cantar. 

Trabalho, trabalho, trabalho. 

Foi o que fiz, ao fim e ao cabo, nesses meses. Tinha acumulado clientes e mantinha o meu emprego a tempo inteiro. Procurava ir ao ginásio e ocupava todo o meu tempo livre a conviver nos bares, nos cafés, nas ruas e nas cidades que tinham bares, cafés e ruas. Ao contrário do que canta o B Fachada, não me sobrava tempo nenhum para cantar. Nesse período, o avanço da tese não estava a correr bem e a cama de confiança que as minhas boas notas me tinham feito parecia quebrada. Revirava-me nela pela noite e acordava acelerado a cada vinte minutos em que o meu coração parecia deixar de saber bater. Quando não tentava dormir, tentava estar acordado para trabalhar ao longo de todas as minhas horas longe da cama. 

Algo curioso sobre este ano é que, apesar de o guardar em mim como, possivelmente, o ano mais difícil da minha vida, poucas são as vezes que me recordo de chorar. Em abril, sei que me emocionei numa viagem que fiz a Itália, destinada ao passeio e ao namoro. Olhando para trás, esses dias foram um ilhéu no meu ano, no qual pude adormecer sem antecipar e acordar sem adiar. Outras vezes que me recordo de chorar estiveram maioritariamente relacionadas com a minha interação com a arte, como ouvir o álbum Javelin do Sulfjan Stevens, ver o filme Past Lives ou até ver a morte da princesa Diana na série The Crown. Contudo, por muito difícil que tenha sido o ano, sei que chorei pouco por ele.

Tenho uma nota de voz de abril, gravada na Avenida Doutor Mário Soares 35. Eu perguntava numa canção o que é que existia entre a luz e aquilo que mais me doía, uma vez que a luz era o que eu procurava e o que mais me doía eu sabia mais ou menos o que era. O que me importava saber era o que separava as duas coisas e que distância teria de percorrer para ir de uma para a outra – sair da noite para o dia, ou da madrugada para a alvorada, como falava no meu projeto. Ou mesmo como ir da Avenida Doutor Mário Soares 35, onde trabalhava, para o palco – da secretária para o espetáculo. 

Estas gravações são úteis agora precisamente por isto. Não só algumas delas se tornaram composições a sério e estão agora no forno para se tornarem músicas, como me ajudam a perceber por onde andava o meu corpo e por onde andava a minha cabeça, ao longo do ano. Assim, consigo saber que, a 1 de junho, enquanto passava pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cantava sobre como a vida é múltipla, é um trabalho com retalho, um pastiche desorganizado, sem lei nem regra. Há de tudo um pouco. Um dia estou a rastejar pela semana sem conseguir dormir, no outro estou em Alvalade ou no Campo Grande a passear de mão dada, como se fosse o 25 de abril.

Ou, por exemplo, a 6 de julho, numa nota com o nome Avenida Maj Gen Machado de Sousa, emulava um canto a pedir ao meu amor que me pegasse na mão e visse como estou incompleto – o patchwork estava com retalhos em falta. Nesta altura, estava na fase de filmagens do meu projeto, o momento era de duvidar de qualquer capacidade ou potencial que ele pudesse ter. Desgastava-me a retrospectiva e as prévias do resultado final, com elas subiam à superfície perguntas que pensava ter tão escondidas, que nenhum ecrã me poderia responder. Começava a entender que a pouca fé no meu sucesso tinha raízes tão fortes que, quando desenterrava o projeto do abismo daquilo que tinha para dizer, elas teimavam em vir atreladas. Esse era o abismo entre a luz e o que me doía, e o que me doía era a visão que tinha sobre mim mesmo. 

Foi à volta desse dia que eu me despedi. 

Dois meses mais tarde, a 6 de setembro, um dia depois de começar a trabalhar num novo lugar, numa nota chamada Lisboa Santa Apolónia, cantava o seguinte: 

Acho que descobri a razão da minha tristeza

Foi nunca ter-me conhecido em profundeza,

Achava que estava bem só a estar

Afinal faz falta o que faz o coração acelerar.

Apesar do improviso, têm sentido estas palavras. Na mudança do trabalho, consegui puxar o fiozinho da tristeza até encontrar de onde se criava, ao longo de cinco anos, aquele pequeno incomodar. Aparentemente, de tanto jogar pelo seguro, acabei por nunca me aventurar verdadeiramente no conhecimento daquilo que verdadeiramente me fazia feliz – que é aquilo que me dá ritmo ao coração. Ritmo sendo exatamente a palavra certa, uma vez que é de música que estamos a falar. E eu tinha encontrado esta resposta a 31 de agosto, em Santarém, quando dei o meu primeiro concerto. Foi, nas palavras da minha psicóloga, um momento “estrelar”, em que tudo parecia fazer sentido. Tinha ido da secretária ao palco e, durante 45 minutos, soube o que realmente me importava. A partir daí, tudo foi diferente.

Sei que vamos apenas em setembro, mas pouco gravei no que restou deste ano. Pelo menos, pouco que tenha relevância para o que vos vim aqui contar. Tirando alguns casos, como a 5 de outubro, numa gravação de voz que tem o nome de um restaurante em Queluz, que musicava um poema que me ocorria: 

Estou tão cansado que o corpo é uma frase sem gramática, 

Quero pontuar o que ainda resta, 

Dar sentido ao que presta 

E saber o que há em mim.

Outras gravações dizem respeito a ideias para composições musicais mais ritmadas ou a notas sem enunciação de palavras, para futuros trabalhos. Não quero com isto dizer que setembro foi o meu final feliz, mas a verdade é que foi quando voltei a dormir e a temer um pouco menos a noite. Não arranjei um trabalho dedicado à música, ou sequer à arte, mas os saborosos ares da mudança restauraram em mim o que pensava há muito estar morto. Reuni-me com detalhes que pensei serem dispensáveis, como apresentar-me de novo pelo primeiro e último nome, associar um novo cheiro à rotina, chegar a casa a horas diferentes, tocar em diferentes partes do mundo ao rir com alguém novo e estranho, entre outros. Detalhes como estes curaram o desgaste de um dia-a-dia passado e algo em mim sarou ao estar com quem não sabia a minha data de nascimento, que não como queijo e que canto. Fez-me lembrar Berlim.

Berlim. Berlim. Berlim.

Sempre que consegui dormir este ano, sonhei contigo. Cantei sobre ti, escrevi sobre ti e tinha-te na mente quando defendi a minha tese a 12 de dezembro. Sempre que fecho um ciclo, é em ti que penso. Apesar de não planear voltar, guardo de ti a mais bonita memória de liberdade e talvez por isso seja a ti que recorra quando me sinto encurralado. Quando terminei o ciclo da tese, ouvia as palavras finais do júri como se caminhasse pelas ruas de Kreuzberg, sozinho a um sábado à noite. E o cheiro da vida noturna era a liberdade a aproximar-se, o fim da insónia contínua que tinha assombrado o meu 2023. Todo o ano me tinha levado até àquele ponto e, por fim, pude dormir com um pouco mais de paz. 

Para o ano que vem, será difícil concretizar tudo, mas quero deixar escrito aquilo que desejo. Nem sequer costumo fazer este tipo de listas mas, uma vez que escrevi isto como uma nota para o futuro, mal não fará ter algo a que recorrer quando me sentir aborrecido. Segue a lista: quero escrever, compor, produzir e lançar música, ler dez livros, escrever um texto por mês, aprender mais sobre som, voltar a ter aulas de canto, aprender alemão, fazer voluntariado, sair da europa, escrever um guião, celebrar os 50 anos do 25 de abril, ler a obra poética de José Afonso, ler a obra poética de José Saramago, quero voltar a sonhar com música, quero acreditar no que sou, ter paciência, ser bondoso, fazer rir, fazer pensar, dar amor e saber receber.  

Claro que nem todas estas metas podem ser medidas de forma concreta, mas servem de pequeno lembrete para aquilo que penso que me faltou mais este ano. Registado aqui em jeito de 12 passas o que mais desejo para este novo ano. 

Agora, está na minha hora. Não consegui prometer nada no início deste texto mas, a mim mesmo, jurei que seria sincero. E, nesse sentido, devo confessar que pensava que vinha aqui desabafar. Esperava mesmo inserir umas frases poéticas sobre o meu 2023, embelezar tudo um pouco da forma como gosto, mas acabou por vir tudo em jeito de história. Peço desculpa aos desapontados. Mas a verdade é que neste ano relembrei-me que, quando era pequeno, ambicionava viver a minha vida de forma a que desse uma boa história para contar – de forma a que ela em si fosse uma obra de arte. Tinha-me esquecido disso e talvez este texto seja uma forma de resgatar esse desejo. 

Antes que vá embora, quero dizer que este texto não é um aviso, nem tem moral nem serve para nada mais se não documentar o ano em que fui apenas o meu cansaço. Talvez queira reler um dia para não repetir determinados erros, ou talvez sirva apenas para estar à mercê do aborrecimento de quem se cruzar com ele. De todos os modos, acabou. 

PS: Ao soar da meia noite de 2023, não consegui evitar chorar. Ao início pensava que seria um pequeno emocionar pela beleza que é ver foguetes no céu, mas os minutos passaram e, simplesmente, não conseguia evitar o soluço. Afinal, chorei por 2023. 

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4am

Durmo sobre o telemóvel.
Vestido, só do corpo
E das âncoras nas mãos
Que me prometem à terra
Aberta a receber-me.

Durmo entre o ecrã
E o relógio das quatro da madrugada.
Arrasto os ponteiros para me poder tapar,
Mas nem a matéria me cobre,
Nem eu a satisfaço.

Durmo por cima de todas as horas
Que perco dentro da caixinha preta,
Onde se esticam na vertical
Como plasticina que acelera o coração.

Deixo-me acordado,
A medir do corpo o que me falta,
Para esticar o que valho
Até tapar a luz desse monitor.

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a menina do vestido bonito

O dia em que a ouvi ser apelidada “A Menina do Vestido Bonito” não foi o dia mais feliz da sua vida, mas foi um dos primeiros em que lhe ouvi uma gargalhada sem rebentos de dor. Era Verão e ela plantava flores na roupa, um vestido que a cobria até pouco abaixo dos joelhos bronzeados; no rosto, levava um sorriso germinado como se estivesse a reaprender a sorrir como gente. Era lindo, de facto, o jardim que levava posto – as flores cor-de-rosa, laranja, amarelo e até azul tinham tanto a dizer que se atropelavam no falatório, mas tudo bem, o caos também pode ser bonito.


Mesmo não falando, todos sabiam da busca incessante a que ela se havia dedicado nos meses anteriores. Acordada, a menina do vestido bonito passava as noites à procura de si mesma – atrás da cómoda, debaixo da cama, entre as roupas penduradas no roupeiro, etc. – não estava no seu sem fim de coisas que, por muitas que fossem, não havia meio de lhe encherem a casa . Quando se olhava ao espelho, via uma sombra e, quando via a sua sombra, não se via a si. Tocava-lhe para perceber se era ela que estava a ser projetada contra a parede, se a falta de luz tinha feito dela a própria sombra, mas não se sentia do outro lado do toque. Não se sentia ninguém, presa num trânsito mental, à espera da sua vez de ser. Trocou a noite pelo dia, sem se aperceber. Era na cama que se escondia nas longas horas do sol e era à noite que saia do seu lugar confortável e retomava a sua busca – quem sabe, evitava a luz para evitar a sombra.


Não se lembrava de si, mas o seu problema não era de memória. Estava doente do tipo de tristeza que se aloja no coração e por aí fica a libertar veneno continuamente, de espinhos afundados no existir, até que ele deixe de o ser. Não sabia o que fazer ao corpo que sobrava de si, nem em que momento exato lhe tinham assaltado o templo e roubado as janelas, as portas e todas as saídas.


Ainda que triste, procurou por si nesse corpo que tinha deixado para trás – tinha todas as camadas que precisava para funcionar e, acima de tudo, as mãos e os músculos intactos. Pensou que, se pusesse a sua maquinaria interior a trabalhar, talvez ganhasse vida por dentro e, desse modo, aos poucos, foi conquistando o dia. Começou a pedir à noite para vir mais tarde, porque precisava da luz do sol para ver onde punha as mãos enquanto as sujava com argila e construía pequenas peças de cerâmica. Tinha medo de se estar a iludir com a dedicação mas, com a primeira peça que terminou, não quis acreditar no que via. Naquela pequena obra, a menina do vestido bonito viu-se a si – ou parte de si. Olhou de todos os ângulos, viu como era opaca, forte e impenetrável, tinha uma beleza simples mas que impunha respeito e, acima de tudo, estava completa.


Foi como se desenterrasse o mais valioso dos tesouros, a menina não parou mais de explorar o funcionar da sua máquina. Ouvia-se pelo dia o seu motor interno a trabalhar, como se se esforçasse para iluminar uma cidade inteira – e era isso mesmo o que fazia, ladeava as estradas suas com os mais altos candeeiros, para não deixar qualquer canto escuro. No fundo, é assim que se combatem sombras. Aos poucos, com o malabarismo gracioso entre a argila e a água, descobria novos pedaços de si – alguns deles, já se tinha esquecido que existiam, outros estavam à espera por nascer.


Juntou cada uma das suas obras bem perto do seu coração, amontoadas num pequeno caos emocional que era tão bonito e tão fértil, que não deixou de aumentar. Assim, a menina cresceu tanto que estranhava tudo – a cama, a roupa, a casa, a chuva, a terra –, tudo lhe parecia pequeno e estreito. À medida que se encontrava, também as pessoas pareciam vê-la pela primeira vez. Tornou-se tão grande e visível, que era maior que o mundo – já nem a roupa lhe servia. Com tanta cerâmica para consertar o coração, não tinha mangas que lhe passassem nos braços, golas que lhe passassem na cabeça, nem botas que lhe assentassem nos pés. Decidiu-se, então, a fazer a sua própria roupa e começou por plantar um jardim. Estava ainda na fisioterapia do riso quando o vestiu pela primeira vez e foi nesse dia que lhe chamaram aquilo pelo que a conhecemos hoje. A menina do vestido bonito, cujo nome não deve ser confundido por fraqueza. O vestido tem flores mas também tem raízes e espinhos – para que não se esqueçam que não se pode partir um coração coberto de flores.


Já não tem dívidas de amor, nem medo das sombras – de tal forma, que pintou as paredes de amarelo para as ver melhor – assim não se perdia no escuro. Diziam-lhe que não era bom dormir com cores frenéticas nas paredes, que não combinavam com a mobília, que era demasiado para a vista, “experimenta um bege”, diziam. Mas ela não se importava. Como ela tinha aprendido, também o caos podia ser bonito.

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A Fome

Sempre vivi a sair da mesa de prato meio vazio. É uma falta de educação, eu sei, sou um mal educado, na verdade. Mas tenho bom coração, prometo, e tudo isto teve um bom motivo para começar.


Comecei esta mania aos dez anos, quando ainda levava para a escola “tupperwares” de um plástico já bronzeado, numa lancheira azul e pesada que dividia com o meu irmão. Num desses dias, chamaram-me gordo e eu decidi que estava cheio para todo o sempre. Naquela altura, aquecia a comida em microondas comunitários numa sala que cheirava a sopa, onde putos escondiam os macacos que tiravam do nariz debaixo da mesa, e contínuas corriam atrás deles com cordas vocais afiadas e já cansadas. Gritavam porque havia puré de batata na parede e não no estômago de alguma criança; gritavam porque havia uma maçã escondida por baixo do lavatório, já em fase cinco de degradação, gritavam porque os tênis se colavam ao chão, pelas mãos da magia de algum resto de almoço entornado há três dias; e, comigo, gritavam porque não queria comer.


Chamaram-me gordo um dia e eu decidi que queria deixar de ver em tudo uma forma de me encher. Queria deixar de esconder o coração na dispensa, e de partir as jarras de vidro onde guardava as bolachas porque não podia esperar nem mais um segundo para matar aquele animal que tinha dentro. A verdade é que saía caro: se cada jarra custasse dois euros no IKEA, e se eu tivesse um destes ataques duas vezes por dia, eram quatro euros diários que saíam em jarras e uns quantos quilos de gordura que entravam. No fim das contas, o fluxo de caixa não compensava o prejuízo, dado que a carne que acumulava não tinha valor no mercado. De maneira que tirei das bolachas o poder de me encher, e os meus maxilares deixaram de ser músculo do coração.
A minha sorte foi ter sempre um parceiro que comesse aquilo que eu deixava para trás. Em todas as fases da minha vida – na escola, na faculdade ou no trabalho -, encontrei sempre alguém que terminasse a refeição por mim. Assim, quando chegava a meio, começava a fazer o frete e ele já sabia. Era só passar-lhe o termo e o nosso trato estava selado. Levava para casa um tupperware vazio, e em mim deixava um espaço por encher que faria de tudo para que não me voltassem a magoar.


Queria deixar metade da comida no prato, até eu ser metade do que era. E, quando cheguei a esse ponto, quis deixar três quartos. Queria deixar de comer até desaparecer, ficar vazio por dentro para que não tivessem carne para atacar, quando se virassem para mim com palavras pontiagudas.


O que eu não sabia, era que alimentava um monstro maior que aqueles miúdos do refeitório que faziam guerras de esparregado sem dó nem piedade. Por cada prato que deixava com comida, era uma refeição completa com que alimentava o bicho da fome que crescia em mim. Não me apercebia que o fazia, mas foi assim que permiti que tomasse posse de todo o meu tamanho, como uma nova camada interior, que começava a agir em meu nome.


Quando eu falava, era a fome que falava por mim e, quando cantava, era ela a gritar, a pedir que a alimentassem. Fiquei sem saber como a matar. Não podia voltar a comer os cinco croquetes que me enviava a minha mãe, ou a terminar um bife sozinho sem o partilhar. Não tinha em mim a força para encostar o garfo à faca no fim de uma refeição, sem ter partilhado o prato com a solidariedade de algum companheiro. Não, não voltaria a terminar uma refeição, por isso, tudo o que fiz foi ignorar. Acostumei-me aos roncos do meu estômago – passei a falar com eles e, para minha surpresa, não eram má companhia.


Acomodei o vazio dentro de mim e a fome nunca passou. Na verdade, é ela que vos escreve agora. É também ela que me faz escrever.

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Não Chorei Quando Nasci

Não chorei quando nasci. Não é que me lembre, mas é um daqueles factos que ouvimos tantas vezes em reuniões familiares, que os acabamos por carregar connosco como se formassem uma espécie de cognome incrustado à nossa existência.


A minha mãe, apesar das suas vontades em ter um parto natural, cuspiu-me para este mundo num silêncio adormecido, enquanto lhe retiravam o bicho ensanguentado pela fissura aberta do seu ventre. O médico e enfermeiras estavam num estado tão profundo de concentração naquele turno da madrugada, que nem um esgar soltaram no momento solene em que entrei de pé esquerdo nesta realidade. No bloco operatório, até os sons sintomáticos do hospital se pareciam ter feito diminuir numa espera inconcebida pelo choro normal de um nascimento.


O silêncio acompanhou-me, assim, a vida toda. Os meus pais dizem até hoje que era uma maravilha de bebé, chorava tão pouco que se esqueciam que me tinham. Quando comecei a escola, era tão calado que me tentaram diagnosticar mais de dez vezes com diferentes problemas de foro psíquico, nenhum deles acabou por estar certo. Parecia apenas que não tinha palavras trocadas na carteira, e as que tinha, requiriam esforços sobrehumanos para serem puxadas cá para fora.


Aos catorze anos, já tinha andado em quatro psicólogos e dois terapeutas da fala. Contudo, apesar de grandes e longas análises, nunca ninguém soube perceber a razão do meu silêncio e, quando me perguntavam, simplesmente encolhia os ombros, sem nada para dizer. Não o fazia por provocar, simplesmente, não sabia o que dizer. Nunca.

Com a idade, fui percebendo que levava comigo este silêncio denso e pesado. Era como uma massa negra à minha volta, que pesava no ambiente, sem deixar espaço para palavras. Comecei a pensar que, quando me colheram do ventre da minha mãe, colheram também um irmão gémeo esquecido, carregado nas minhas costas que fez calar todo o hospital.


Tentei visualizar várias vezes esta massa negra que me rodeava, talvez se percebesse a sua forma, a conseguisse expulsar. Pensei que fosse um polvo gigante, pousado no alto da minha cabeça oca de palavras, que levava o desconforto nos tentáculos, para tapar a minha boca e a de toda a gente que me abeirasse. Teria a aparência e o destino de um vilão da Disney – invariavelmente determinado a vencer-me, mas condenado a uma eventual derrota sobre o domínio da minha palavra. Contudo, quando os anos começaram a passar sem que levassem consigo os tentáculos, comecei a desacreditar-me do rato Mickey e das histórias de embalar.


Esse foi o momento em que comecei a pensar que talvez esta massa fosse um Anjo da Guarda que me protegia das palavras, guardando-as numa caixinha preciosa, apenas aberta nos momentos oportunos. Queria acreditar que o fazia para me proteger das esquinas afiadas das letras, mas também o meu silêncio me começava a magoar. Quanto mais tempo passava sem saber o que dizer, mais pequeno me tornava, mais me escondia pelos cantos, e mais sozinho fui ficando. Pelo que concluí que, quem me roubava as palavras não seria um anjo da guarda.


Comecei, então, a deixar de procurar causas externas para a atmosfera silenciosa e sufocante que carregava comigo e passei a crer que o silêncio vinha de mim. Eu tinha a massa dentro de mim, densa e corrosiva, a deixar-me a cabeça doente e cansada, atolada só das palavras que me faziam mal. Cambaleavam dentro do meu cérebro por horas, deixando feridas na sua passagem e sem nunca saírem para ver a luz do dia.


Tinha o silêncio na roupa que vestia e na pele que a suportava também. O silêncio estava nas minhas pestanas e unhas, escondido por entre cabelos e dedos, que se entrelaçavam sem ruído. Tinha-o nos lençóis à noite e nas toalhas de manhã. Nos cadernos em que tentava escrever e nos desenhos que falhava em completar. Entendi que o silêncio não só arrombava as portas e janelas do meu bem-estar, como também era ele a casa e as paredes contra as quais cambaleava à procura de equilíbrio.


Quando tive esta realização de que eu era o meu próprio silêncio, chorei como nunca o tinha feito. Chorei pela vez que não chorei ao nascer, e por todas as outras que me mantive demasiado calado para poder exprimir qualquer emoção. Tinha nas minhas lágrimas dor e confusão – toda a minha vida tinha culpado o universo por este meu problema, mas aparentemente, eu era o problema. Foram dias a chorar, inundei a casa e o tejo entrou-me pela sala e quarto sem autorização.
Estou ainda a limpar os estragos deste meu entendimento mas, já que não chorei quando nasci, espero nascer agora que chorei.



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Ócio

Ócio.
Oh, se o odeio.

Meu velho amigo,
És bonito no mês de Agosto –
Serias bonito em qualquer altura,
Se não tivesse de vestir estes ossos.

Ócio.
Oh-sim-o meu amigo,
Deita a cabeça no meu colo
Dá-me carne para vestir os ossos –
Ósseo.

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O Homem que não conseguia tirar férias

Sei que não tenho órgãos para isso, mas vou ao médico todos os meses. Não é que seja hipocondríaco, é que, de quando em vez, tenho dores que não sei etiquetar e, para quem sabe um pouco de mim, sabe que adoro rótulos. Não sei porquê mas trazem-me alguma calma e o meu médico arranja sempre um nome para aquilo que me doi, por isso, gosto de o visitar com frequência, qual dose mensal e cavalar de ansiolíticos.  

Geralmente tenho consulta dia 15, mas às vezes (muitas vezes) atrasa-se. Começa comigo a sentar-me na minha cadeira que rodopia – passo os primeiros minutos a distrair-me com as suas funcionalidades giratórias. Quando me aborreço, encaro o meu médico de olhos brilhantes a olhar-me diretamente na alma. Nesse momento, sei que já me está a analisar, à procura nas minhas entranhas da dor mensal que me trouxe ali. Evidentemente, eu começo com uma piada, à qual se segue um silêncio no qual ficamos a olhar um para o outro sem qualquer expressão fácil.

Não se ri das minhas piadas, mas eu gosto do meu médico. Ele sabe tudo, não só da verdade, mas da mentira. Ele sabe usar aquelas palavras que mais ninguém se lembra de usar, como “prostrado”, “catatónico” ou “berlinada”. Gosto de aprender essas palavras com ele, são mais rótulos que guardo para me trazer calma. E eu preciso de muita calma. Preciso tanto de calma que, por vezes, invento dores só para poder ir ao médico assegurar-me que, caso um dia tenha uma dor daquelas, já saberei o seu nome.

Este mês, contudo, a consulta está a ser bastante dececionante, sem rótulos ou nomes ou títulos ou prognósticos. Comecei por dizer “Não consigo tirar férias” e ele, como de costume, tentou analisar-me e auscultar-me as emoções. Já estamos a dia dezoito e eu sinto o tempo a passar para lá do nosso contrato mensal, de maneira que há alguma pressa a pairar nesta consulta. A culpa é minha, eu é que adiei três ou quatro vezes, mas a verdade é que não arranjei tempo para me sentar com ele antes. E, mesmo aqui sentado, estou de estômago vazio, porque esta seria a minha hora de comer. No restante tempo do dia, são as horas que me comem a mim.

Contudo, nesta consulta, o tempo também me parece consumir como uma iguaria psicótica. O médico já me analisou e agora ficámos a olhar um para o outro há minutos sem fim. O meu estômago ronca de vez em quando, eu fungo porque estou a ficar constipado e, quando os minutos se somam em horas, começo também a bocejar. O tempo passou e entretanto já é de noite, quase dia dezanove e eu ainda sem saber o nome disto que me doi.

Só sei que me dói aquilo que arrasto. Tudo depende de mim. A fome depende de mim. O descanso depende de mim. O corpo depende de mim. A pele depende de mim. A felicidade depende de mim. Eu! Eu dependo de mim. Mas eu queria depender da minha mãe. Do meu amor, de quem me ama. Não queria ter de ser forte e emancipado para estar do lado certo do jogo. Queria ser fraco e deixar-me ir, desistir de vez em quando e assumir derrotas como já assumi um namorado – que assumir derrotas seja tão célebre como um namorado assumir um namorado! Que viver não seja estar no lugar da frente de uma filinha pirilau de dependências que badalam e pendem agarradas a nós, arrastadas pelo chão  a chamar o nosso nome constantemente.

É isso que me dói este mês. Se é verdade, se é mentira, não sei. Mas com ou sem rótulo, esta foi uma boa consulta, obrigado.

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Km e Km

Da minha cabeça,

Já fiz quilómetros e quilómetros.

Apesar de agora escrever de corpo inerte,

Em pé perdido na divisão mais pequena do mundo,

Na minha cabeça,

Já fiz quilómetros e quilómetros.

Apesar de agora arrancar letras à frustração,

Em pé perdido neste quarto sem janela,

Pela minha cabeça,

Já fiz quilómetros e quilómetros.

Apesar de agora não saber decorar dores,

Também não sei se dói, ou se faço de conta que sinto.

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Mudanças

Quando tinha quinze anos, ponderei pela primeira vez se teria um futuro feliz. Dei-me conta que não estava no caminho certo para me tornar uma estrela rock internacional, e procurei alento na minha avó que, por muito que nunca tenha alcançado o estrelato que tanto protagonizava os meus sonhos, tinha passado metade da sua vida a cantar. A outra metade dividiu-se entre ouvir trautear o meu pai e tio e, mais tarde, ouvir-me a mim evocar Variações na cave da sua moradia gigante. Mas adiante. Naquela conversa, ensinou-me que os quinze anos eram a idade mais fértil para os sonhos – que cresciam como ervas daninhas nos cantos mais recônditos das nossas cabeças. Notar que nem todas as ervas daninhas são feias ou dispensáveis, muitas delas até são úteis para aparar as quedas no alcatrão. A minha avó também me avisou das quedas e disse-me que, a partir dos quinze anos, deixavam de deixar feridas nos joelhos e cotovelos e começavam a chegar a sítios mais escondidos. Contudo, fez notar que aquela era a melhor altura para admirar a vida e para colher dela os melhores instrumentos para imaginar.  “A vida consegue ser tão linda”, disse-me.

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Hoje – dez anos depois – sujei as mãos, arranhei a garganta e enfraqueci as costas a tentar fazer caber essa vida linda em caixas de cartão. Esvaziei o sótão, limpei o pó e deixei espaço para quem quiser vir vaguear para este lote, uma vez que estou de saída. Encaixotei a música e as primeiras notas que cantei, junto com os poemas e os textos em que me perguntava onde ia. Houve espaço para as minhas viagens à boleia pelos céus – os meus sonhos de Kerouac, de dias em que fazia as malas, prometia não voltar e desfazia de seguida. Empacotei a varanda onde fumava às escondidas, a ver a serra de Sintra, na procura de abrandar uma adolescência em foguetão. Até consegui encolher as paredes deste quarto, os cantos húmidos, os momentos em que foram as minhas únicas amigas – houve espaço para todos os nossos segredos. Quanta barulheira ficaria dentro daquelas caixas quando as fechasse, perguntava-me. Talvez se ouvissem as tuas palavras avó, pois encontrei um postal de aniversário escrito por ti, com conselhos e votos de um próspero futuro – pôs-me a pensar o que tenho de próspero agora, e onde estarás tu.

“A vida consegue ser tão linda”, dizia no cartão. Talvez seja, avó. Com tanta música, poemas, textos, sonhos, viagens para lado nenhum, malas feitas e desfeitas que não saem do quarto, não há como não o ser. Eu talvez tenha demorado o meu tempo a ver isso – ainda não precisava de óculos na altura em que te pedia conselhos. Agora não tenho quem me ouça quando canto sozinho na cave e nem mesmo com este meu novo par de lentes te consigo ver a espreitar, na curiosidade de saber que canção cantarei a seguir. 

Arranjei várias formas de me sentir menos só, mas nenhuma me impediu de encher a casa de tralha. É irónico, porque é agora que está vazia que me sinto mais acompanhado e concretizado. Afinal de contas, não tinhas razão numa coisa – eu continuo a sonhar como se tivesse quinze anos. Mas noutra coisa estavas certa – a vida consegue ser tão linda. Pensava que a podia guardar em caixas e sótãos, mas ela está por aí. Tu estás por aí, avó. 

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Não eram Margaridas

Conduzimos para fora da lei
Naquele teu dia de anos.
A quarenta minutos da cidade,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber de nada.
Ninguém tinha de saber de nada.
Dei-me por feliz por termos chegado até ali.

O tempo deu-nos permissão,
E nós demos-lhe propósito,
Onde, encontrados num campo de margaridas,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber as nossas canções.
Ninguém sabia que eram nossas as canções.
E eu dei-me por feliz por ter chegado até ali.