Categorias
Todas

Ode aos Pés

Acordar e levar comigo,

Acordar, mais um dia 

Eu comigo

A levar comigo

Os meus pés, sempre comigo.

Levantar e pôr-me de pé

Embora, sou eu e eu

O dia todo

Vamos, estou cansada

Deitar.

Calça os meus sapatos,

Agora

Anda com eles

Não têm salto

Calço os teus sapatos

Agora

Ando com eles

Não têm salto

Magoam.

Categorias
Todas

Cama 213

Diogo vivia como na música de Cazuza: “Vida louca, vida breve “, levando o melhor dela; boa comida, vinho, pesca e amor. 

A mãe alertava-o para os excessos que fazia, lembrando-lhe que tinha que preparar-se para o futuro. Diogo anuía com a cabeça e dias depois surpreendia a mãe com uma viagem, um carro novo ou uma sopa de trinta euros.

Diogo era pai, marido, filho e irmão de muitos irmãos.

Sendo ateu não agradecia  nem pedia nada a uma divindade superior. Em vez disso apelava e agradecia à sua mãe, sobretudo quando o Sporting  estava a perder . Quando estes apelos não eram suficientes (e foram  inúmeros os fracassos nessa  área) exclamava “Oh Mãe!!“! 

Quando se sentia triste era também pela sua mãe que chamava, na esperança que isso conseguisse resolver todos os problemas no mundo. A mãe explicava-lhe que o melhor que podia fazer era rezar, mas Diogo não o conseguia fazer. Ao invés disso consolava-se a abraçar a filha.

Quando refletia sobre o mundo, e discutia as suas preocupações com os amigos mais chegados no que dizia respeito ao “problema do mal” ouvia alguns deles, religiosos, argumentar que para o homem ser feliz necessita de executar ações e atos de caridade e de heroísmo que não aconteceriam se não houvesse… “o mal”. Não os contrariava, mas estava seguro que não era necessário a existência de maldade para que existisse bondade. Para ele, tratava-se do acaso, da sorte ou do azar. E, acima de tudo, de sermos bons. Nisso acreditava com o afinco.

Foi num domingo que se sentiu mal. Achou que seria uma gripe ou, ainda mais provável , uma intoxicação por algum crustáceo ou molusco que tivesse despachado na véspera. Os sintomas não só não  passavam  como iam aumentado e acabou  por ceder à vontade da sua mulher de o levar a um hospital.

Nesse dia, ao ouvir o médico falar-lhe na doença que tinha e na gravidade da mesma, sentia que estava num tribunal. Tinham-se enganado no arguido e sentenciaram-no com pena de morte. 

Não se  rendeu à sentença, nem à doença, mesmo que isso implicasse estar meses longe das pessoas que amava, pois tratar-se implicava estar internado na cama 213 do IPO. 

Numa espécie de analogia com o Filme “ La Haine”, de Mathieu Kassovitz, lembrava-se da célebre frase “Até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem. Mas aquilo que conta não é a queda. É a aterragem.”, pois era na queda que se sentia dormente, com medo e sozinho. 

Quando se conseguia levantar costumava visitar os outros condenados, onde já se faziam piadas sobre a sentença de cada um, e onde foram construídos laços de amor e amizade. Nestes laços destacava-se uma ligação muito forte com António, que apesar de mais velho que o Diogo, António também tinha um filho com dez anos, adorava pescar e quando era mais novo tinha sido boxeur.  O que os distinguia era o facto de António ser  Católico , insistindo várias vezes para Diogo o acompanhar à capela. coisa que nunca fez  dizendo-lhe que preferia acompanhá-lo quando dali saíssem, numa saída de pesca.

Diogo esteve em isolamento dois meses a recuperar de um tratamento inovador, que já mostrava alguns sinais de melhoria na doença. Assim que o autorizaram a sair do quarto foi procurar António para lhe dizer que o dia de pesca estaria para breve, mas ao deparar-se com a cama que 217 vazia, realizou que esse dia nunca iria acontecer. Não quis falar com nenhuma enfermeira para lhe dizerem o que ele já sabia e ao invés disso foi à capela.  Sentou-se, lembrou-se do livro do Woody Allen que o irmão lhe tinha deixado com o título “Se Deus existir, espero que Ele tenha uma boa desculpa” e falou num tom triste, mas forte : “ Se existires não te desculpo! “.

Voltou para a sua cama a sentir-se fraco e nesse dia decidiu que não queria voltar a sair do quarto até estar curado, não queria conhecer mais “Antónios”. Queria focar-se na sua filha, mulher e irmãos, para as poder voltar a abraçar, tocar, amar e cuidar.

Deram-lhe alta passado um mês, não porque estivesse curado, mas para que pudesse cumprir os seus desejos embora que de uma forma ainda fraca.

Esteve com todos cada minuto que lhe foi permitido, expressando a cada um o que amor que tinha por eles. 

Foi quando se sentiu pior que se relembrou que se apercebeu que o tal momento da aterragem estava a chegar. 

E foi a planar que aterrou. Deixou o mundo mais pobre e triste deixando também uma herança de amor e de vida que qualquer um desejaria ter deixado.

                                               Para a Nocha e para o Jó

Categorias
Todas

São lonjuras, Senhores


São lonjuras, Srs. 

Sentia saudades de tudo, o que a deixava descansada, significando que ainda tinha memória, embora começasse a ser frequente esquecer-se de coisas tão simples como chegar à cozinha sem saber por quê. Não se preocupava com esses pequenos sinais do início precoce de uma demência senil. Cada vez tinha mais saudades e por curiosidade consultou a sua definição.

1. Lembrança grata de pessoa ausente, de um momento passado, ou de alguma coisa de que alguém se vê privado.

2. Pesar, mágoa que essa privação causa.

A primeira definição encaixava na perfeição – gratidão e privação – que nalguns casos levava ao ponto dois, a mágoa.

Era grata pela quantidade de memórias que tinha amealhado: da sua mãe, com os dentes da frente separados “dentes de malandra” como ela dizia – que deixaram de ser (até nisso a sua mãe contrariava a natureza) e das viagens realizadas com a mãe ao longo de tantos anos no lancia Delta preto onde ouviam a TSF e depois Joan Baez ou Paul Simon. O mesmo carro que albergava qualquer pessoa que a mãe visse a andar a pé em esforço; das vésperas de Natal e do cheiro a pinhões; do pão quente com queijo fresco que a mãe fazia questão de comprar todos os dias; das festas que organizava sozinha, quando parecia que mais de cem pessoas o estavam a fazer; das suas mãos delicadas, com os dedos tão finos que usava para fazer broas e cujo cheiro invadia toda a rua; dos enfeites que criava para todas as ocasiões que considerava especiais; e dos mimos que recebia das mãos da mãe. 

Estas saudades, gratas, matava sempre que visitava os pais e seguramente originariam muitas mais. Djavan relembrava-a com a sua música, “…é doce morrer nesse mar de lembrar e nunca esquecer…. Isso sim, pra mim é viver “, a importância destas saudades.

Já as saudades de privação agonizavam-na a ponto de não saber se era melhor lembrar ou esquecer, quando sabia ser impossível apagar parte da sua vida. 

Escrevia cartas, mesmo que em vão, numa tentativa de obter respostas que nunca chegavam. Gostava de escrever desde que se lembrava de ser gente e ainda guardava numa grande caixa cartas trocadas com metade da sua vida. Essa caixa, bem como a sua memória olfativa, ajudavam-na construir o passado. Podia viajar para qualquer sítio que quisesse e a partir daí reconstruir uma história – por exemplo o cheiro a eucalipto, que a levava para grandes campos cheios de arvores verdes, onde andava a cavalo com o seu irmão, ou o cheiro a madeira que remontava para a casa onde nasceu.

Conhecia também o odor de cada pessoa que amava e se, acaso fora de alguém que já não estava na sua vida, largava-se em lágrimas e recordava Denison Mendes (dizem que atribuído erroneamente a Caio F. Abreu) com a sua frase:

“O médico perguntou: — O que sentes? E eu respondi: — Sinto lonjuras, doutor. Sofro de distâncias”.

Hoje sentia-se muito doente, padecia de lonjuras, sofria de distâncias.

Categorias
Poema

Um Coração ou Qualquer coisa semelhante

No nosso coração 
 
o que ouvimos
 
Nos olhos 
 
o que sentimos
 
Nos ouvidos 
 
O que lemos
 
 
Na alma
 
Com várias portas
 
da frente, que tem código
 
das traseiras que se trepa
 
da cave que é pequena e rastejamos
 
Por onde se entra?
 
Não há portas
 
Arrombamos e deitamos abaixo
 
Ficam as janelas
 
Espreitamos
 
Saltamos
 
Somos.
 
 
 
 
Contenta-te contigo
 
Atenta-te a ti 
 
Ao amor que não deve ser gratuito
 
Ao amor que não se agradece
 
Ao amor que não me pertence
 
Onde te falo com o meu silencio
 
E toco-te com a nossa distância
 
Choro-te
 
Por ti
 
Por nós
 
Por quem não sou
 
Por quem não podemos ser
 
Contento-me contigo
 
Atento-me a ti
 
Amo-te 
 
Agradeço-te


 


Nós em nós
 
Não entendo
 
apenas sinto
 
Procurei-te onde não me achava
 
Achei-te 
 
como num plágio de mim 
 
Achei-me
 
como num plágio de ti.




 
Sentes os meus olhos?
 
Se os sentires
 
Poderás ver bem o meu coração
 
Cheiras os meus olhos?
 
Se os cheirares
 
Poderás cheirar a Primavera.
 
Ouves os meus olhos?
 
Se os ouvires
 
Poderás ouvir o mar
 
Vês os meus olhos?
 
Se os olhares
 
Poderás ver o amarelo. 



 


		
Categorias
Todas

A alma devia ser um órgão

A alma devia ser um órgão

Como é o coração ou o fígado

A alma é ser

Precisa de mais espaço

A alma pesa pouco

Quando na verdade

A alma pesa muito.

A alma quer ser órgão

Não toca

A alma grita.

A alma

Precisa de um medico

Eu e tu

À vez

Os Almologistas.

Categorias
Poema Todas

Nós em Nós

Não entendo

apenas sinto

Procurei-te onde não me achava

Achei-te 

como num plágio de mim 

Achei-me

como num plágio de ti.

Categorias
Todas

Princípio da Parcimónia

Conquistei a parcimónia, essa palavra que podia ser um princípio.

Onde não se complica o que é simples.

Onde se encontra magia no que de parco,

afinal, de parco nada tem.