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Poema

Três pequenos poemas para três tristes tristes

“O céu está nuvelado.

Também eu estou nuvelado.”

– Diz um senhor ao cão que passeia.

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Não insisto com a minha memória.

De momento, não tem nada para me dar.

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A vida são dois dias.
Três em anos bissextos.

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A coisa de dentro

Quero aviar receita. Uma prescrição, um receituário, dê-me qualquer coisa. Dê-me comprimidos, xaropes, ampolas, cápsulas, vitaminas, chás, mézinhas, promessas. Dê-me qualquer coisa que me resolva, por Deus, se for crente. Por obséquio, se não for. Por qualquer motivo que lhe pareça digno. Começou há tanto tempo que os pormenores, cobertos de cotão, já me escapam à vista. Sei dizer que começou como uma espécie de calor que virou cólica, um qualquer desarranjo progressivamente mais acentuado e ruidoso. E logo em mim, que tendo a fazer do diálogo que o corpo estabelece com a mente um monólogo. Não tenho especial prazer em ouvi-lo e menosprezo com frequência os pedidos de atenção. Acredito que a cabeça manda e eu mando qualquer suspeita de doença procurar outro poiso. Não nasci para adoecer. Mas o desarranjo adensou-se de tal forma, que comecei a procurar médicos para perguntar: nasceu-me a doença? Todos temos doenças, todos temos coisas, disseram-me. Mas eu não quero ter coisas, quero fazê-las como todos fazem. Eu sonho, planeio, tento e falho. Já fiz coisinhas. Já criei uma coisita aqui, outra ali. Todos fazem tantas coisas e eu não estou capaz de dar à luz uma que seja. Não é inveja, é aflição, porque sei que qualquer coisa está cá dentro. E está tão inquieta e violenta, que parece não caber dentro de mim.

Vá, não seja escatológico. Não desminto que no princípio parecia qualquer coisa da ordem digestiva. Quando se agravou, julguei ser patologia intestinal. Hoje, ofegante, sei que está por toda a parte.

Não é merda.

Poderá ser merda.

Queira Deus que não dê merda.

Mas revolve-se para aqui numa correria louca que me cansa o cansaço. Num dia de particular algazarra entre as miudezas, que pareciam ser recheio metálico que virou orquestra, estava já incapaz de sentir de onde vinha ou escutar para onde ia o chinfrim agudo que me tricotava por dentro. Concluí: apendicite, somavam os ais e uis que largava sem critério. Teria proferido a sentença, se estivesse capaz de vociferar mais que uns pares de vogais amarradas ao acaso. Na pontada mais profunda – que corresponderia a 9 na escala de Richter se medissem sismos nos abismos da gente – imaginei a minha apêndice a soltar-se do intestino como o desintegrar da grandiosa pangeia. Como se um cordão umbilical ligasse os dois, senti-o esticar até ao ponto de ruptura. Porque seria, efetivamente e logicamente, tecido intestinal a rasgar, milímetro a milímetro, tão lentamente.

Ciência é ciência e isto não é uma opinião médica, é um relato humano de um acontecimento desumano com todo o direito de desconcertar a pequena porção de humanidade que o ler. Finalmente o fio, que era afinal intestino, deu de si e a apêndice soltou-se como um balão da mão de uma criança. A falta de destreza da mão de uma criança traduz competentemente o fraco desempenho dos meus órgãos. Acharia o meu intestino que a apêndice era brinquedo de arremesso? O corte umbilical aliviou a dor durante ⅕ de um piscar de olhos, que foi o tempo que a ponta-mãe – a do lado do intestino – levou a regressar à base num recolher elástico tipo fisga. Muito breve. De volta à dor excruciante, quis continuar a ver o meu intestino como uma criança tola que não sabe o que faz, na esperança que a superioridade me trouxesse conforto – não trouxe. A apêndice foi-se, mas a coisa ficou-se.

Corri médicos de várias especialidades. O último garantiu que estou bem “até ver”. E depois de ver? Tanto médico para chegar a um autodiagnóstico. Mais barato, mas nem por isso menos doloroso. Queria consultar-me, inventar um tratamento ou eventual cura. Persegui o diagnóstico numa corrida coxa e longa, enquanto improvisava e testava automedicação. Eis que uma pareceu funcionar. Primeira toma: apneia reduziu.

Escrever é o remédio, mas estancou-se-me a torrente de ideias. Não as tenho, desejo-as como a fome deseja uma côdea de pão e uma sopa quente. Tremo sem elas como um nu ao frio deitado sobre a calçada gelada. Choro se as não tenho, como chora quem enterra um amor. Não durmo direito, como aqueles que as insónias erguem para lhes espancar a paciência noite fora. Inspiro num esforço deficiente que só desenrasca, porque são as ideias que abrem, em mim, a porta ao ar que vem de fora.

O corpo dói-me, o que me faz acreditar que são elas, as ideias, que me fazem funcionar por dentro. O ego chora baixinho porque quer ser um ego de uma criadora, mas mais não vê que abortos sucessivos de qualquer criação que ameace nascer. E se acabarem as ideias? Findo-me com elas.

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Km e Km

Da minha cabeça,

Já fiz quilómetros e quilómetros.

Apesar de agora escrever de corpo inerte,

Em pé perdido na divisão mais pequena do mundo,

Na minha cabeça,

Já fiz quilómetros e quilómetros.

Apesar de agora arrancar letras à frustração,

Em pé perdido neste quarto sem janela,

Pela minha cabeça,

Já fiz quilómetros e quilómetros.

Apesar de agora não saber decorar dores,

Também não sei se dói, ou se faço de conta que sinto.

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“Somos pedaços de pessoas recortados e colados ao acaso”, alguém me disse

Volto a ouvir o barulho desta cidade que se torna mais suportável aqui de cima. Da varanda, digo. O telefona toca e é um amigo, sempre um amigo. O peso da vida recai-se sobre mim como um daqueles cobertores da casa da avó que mal conseguíamos agarrar de tão pesados. Mas da mesma maneira que criavam peso, reconfortavam. Faziam-nos acreditar que tudo estava bem e só precisávamos de uma boa noite de sono.
E era verdade.
Com o peso da vida é parecido; cai-nos em cima e uma boa noite de sono ajuda. Ou uma boa música, um bom vinho, uma boa companhia, um incenso, sei lá. É só que às vezes as boas noites de sono são escassas. Nem sempre por maus motivos, atenção; pode ser apenas por me perder a ouvir o barulho desta cidade aqui de cima.

Com o tempo vai-se aprendendo o que é isto de andarmos por aqui com as cabeças para baixo e cada um no seu mundo. Com o tempo vai-se compreendendo que o teu mundo é o meu mundo e por isso cuido dele. Com o tempo vamos sentindo o toque, e alguns serão corajosos o suficiente para deixar que se entranhe na pele. E aqueles com mais receio, com o tempo aprenderão.

“Somos pedaços de pessoas recortados e colados ao acaso”, alguém me disse

19/03/2021

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A Gratidão Triste de uma Existência Quase Possível

Ela sempre tinha tido uma dificuldade enorme em tomar decisões. Seria talvez por insegurança, exigência, altruísmo, falta de amor próprio – não auto-estima (porque embora não quisesse admitir, sabia o valor que tinha) – ou teria simplesmente consciência do verdadeiro efeito que cada pequena decisão comporta (bater das asas da borboleta e por aí fora). Era assim nas coisas pequenas, porque nas grandes debatia-se como se a sua vida dependesse disso, e às vezes dependia. Esse debate interno tinha-lhe proporcionado ferramentas que lhe possibilitavam ganhar qualquer discussão. Era, por assim dizer, uma espécie de farol metafórico na vida dos que a rodeavam. Talvez fosse por isso que os seus poderes de argumentação lhe conferiam uma maturidade muito para além dos seus anos de vida. Discretamente atenta ela foi-lhe ensinando (a ele) o poder da liberdade, do desapego e a reflexão profunda sobre a direcção que a vida vai tomando aos poucos, sem darmos conta. Onde é que de repente nos encontramos sem nos darmos conta? – perguntava muitas vezes. Dizia Cai-nos o mundo em cima, questionamos tudo e depois, com muita dificuldade e muitas dúvidas, levantamo-nos e seguimos o mesmo ou outro caminho com os mesmos ou outros obstáculos.
Curiosamente ou não, toda esta sabedoria era virada para fora. Por dentro, no silêncio, dormia uma criança atormentada por pesadelos horríveis populados de acontecimentos inomináveis. Ele quis, na sua soberba, acalentar essa criança turbulenta, solitária, desamparada e acabaram por confundir as decisões de ambos, os pesadelos dos dois. Esculpiram a vida em árvores, resgataram búzios, ganchos de cabelo, pôres-do-sol e luas cheias. Mas nunca puderam existir porque a existência dele tinha-se perdido algures e ela não tinha ainda chegado a existir, não tinha ainda decidido nascer. Por isso nunca existiram juntos e o que existiu foi apenas um choque cósmico de estrelas a muitos milhões de anos-luz que iluminou momentaneamente um pequeno recanto de uma qualquer realidade que será perdida para sempre, desenhos do artista envergonhado fechados numa gaveta. Uma existência recheada de gratidão mas perdida para todos menos para eles que serão, até ao fim, réstias dessa luz.
Foi amor.

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Dinistro & Sextra

Num vale perdido pelo horizonte das montanhas, existe uma vila muito particular. Uma vila que em muito se assemelha às vilas que todos conhecemos. Os seus habitantes vivem as suas vidas sem questionar demasiado o futuro. Há escolas, farmácias, cafés, lugares de culto e de cultura e todos disfrutam de uma certa harmonia no que toca ao seu dia-a-dia. O que torna esta vila particular é apenas e só uma pequena ocorrência: todas as pessoas têm dois pés e duas mãos direitas. Sim, por mais estranho que pareça os membros são todos direitos. Para quem vem de fora até pode parecer muito surpreendente mas, para quem nunca conheceu nada de diferente, este é o normal de quem ali vive. 

O fato de terem dois pés direitos, e ao contrário do que se possa pensar, permite que avancem com uma ligeira inclinação para o outro lado, o esquerdo. Em percursos pequenos isso não faz muita diferença, no entanto para caminhadas maiores, leva a que as pessoas completem círculos em vez de avançarem. Com o tempo a vida da vila organizou-se num grande círculo onde todos podiam caminhar na mesma direção. Da rua principal, que também é o maior círculo, saem diversas ruas menores que levam as pessoas às zonas residenciais, que, como podem adivinhar, são também círculos menores dentro do grande círculo. 

Na vida do quotidiano, ter duas mãos direitas causa situações caricatas, pois torna-se difícil agarrar um objeto, dançar ou completar simples tarefas domésticas, como lavar as mãos ou comer sem que o garfo tente sempre entrar pela bochecha. No lago que marca o centro da vila os barcos a remo rodam no próprio eixo. A tração deixa os habitantes presos no centro e com tonturas. O caminhar de forma enviesada acabava por condicionar a perspetiva das pessoas. Afinal era complicado ver as coisas de outra forma e nas raras ocasiões em que duas pessoas se poderiam confrontar (quer física quer verbalmente), ainda antes de chegarem perto uma da outra os seus pés levavam-nos para direções diferentes. “Dar uma mão” neste caso também não ajudava. Duas mãos direitas não duplicam a ajuda, apenas fazem o mesmo duas vezes. 

À medida que o número de habitantes aumentava, também a dimensão da vila. Foi assim que se começou a escavar a montanha que limitava a vila para criar caminhos circulares adicionais. Numa dessas escavações a Komatsu esbarrou uma parede de gelo, enterrada na rocha. Foi retirada a terra à volta da parede para se ter uma ideia do que realmente se tratava. A parede brilhava como um espelho e percebiam-se formas do outro lado. Inicialmente todos consideraram que era apenas o seu próprio reflexo. Dinistro, uma pessoa mais curiosa começou a lascar a parede e notou que as formas do outro lado do gelo se tornavam cada vez mais nítidas. Tentou avisar os outros habitantes mas sem efeito. Continuou a lascar a parede e a certa altura viu que a sua imagem, do outro lado do gelo, já não replicava os seus movimentos. Na verdade havia mais do que uma forma que se movimentava do outro lado e todas estas formas se tornavam cada vez mais nítidas. A esta altura, Dinistro assustou-se, deixou de lapidar o gelo chamou todos os habitantes para que lhe ajudassem a dar sentido ao que se estava a passar. Ninguém entendeu, mas aceitaram que possivelmente não se tratava de reflexos mas sim de forma autónomas.

Sem nenhuma outra referência ou objeção, Dinistro continuou a escavar. O gelo cedia a cada instante, a luz que vinha do outro lado brilhava tornando as formas mais claras. A certo momento o gelo desapareceu e a parede abriu-se. Dinistro libertou o caminho e rompeu a parede até poder passar para o outro lado e ver o que estava além. Eram outros seres, pessoas como eles, com as mesmas formas mas havia algo de ligeiramente diferente que escapava à sua compreensão.

Uma das pessoas do outro lado arriscou um aceno com a sua mão. Era Sextra, que fora designada representante. Dinistro respondeu da mesma forma. Ao aproximar-se percebeu que as pessoas do outro lado tinham também os mesmos membros que ele, mas com particularidade de, na sua perspetiva, estarem ao contrário.     

Dinistro e Sextra observam detalhadamente os seus corpos. Soltam palavras e reconhecem o mesmo idioma. Repetem o aceno inicial e compreendem que as suas mãos se completam enquanto caminham na direção um do outro, e maravilham-se quando o círculo que desenham com o caminhar, na verdade aproxima e coloca-os na órbita do outro. 

Dos dois lados da parede os restantes habitantes estão em silêncio a observar este trocar de primeiros passos. É decidido que cada vila deverá trocar impressões e aprender ao máximo sobre cada uma para ver de que forma poderiam ter mais sinergias. A parede é destruída e ambas as vilas não têm barreiras a separá-las. 

Para Dinistro e Sextra os dias são de autoconhecimento e descoberta. Quer nos corpos um do outro quer em cada vila. Sextra, como os habitantes da sua vila, tem dois pés e duas mãos esquerdas. Quando caminham, caminha enviesada para a direita e na sua vila os círculos estão organizados na direção contrária da de Dinistro. Com o tempo as tarefas que lhes pareciam impossíveis tornam-se viáveis e novos caminhos são desvendados. Até o navegar no lago do centro era uma atividade que finalmente fazia sentido. Em vez de círculos, era finalmente possível navegar em linha reta. 

É impressionante que em todos estes anos duas vilas, praticamente reflexos de si mesmas, nunca tenham tido conhecimento da existência do outro, apesar de estarem tão próximos.  

Do conhecimento e do tempo que Dinistro e Sextra passaram juntos surgiu uma criança. Esta criança nasceu com um pé direito e um pé esquerdo. Ao verem as suas mãos também notaram que tinha tanto uma mão direita como uma mão esquerda. Ao contrário de Dinistro e Sextra, os os habitantes de ambas as vilas entraram em choque. Nunca se tinha visto tal coisa. O que seria de uma criança que não pertencia a nenhuma das vilas?  

A criança cresceu e quando caminhava, avançava. Não tinha enviesamentos, apenas caminhava para a frente. Para o futuro.

Com mais crianças, os habitantes puderam ver que os seus jovens corpos, frutos da partilha das duas vilas, faziam as coisas de forma diferente. Tinham mãos que se lavavam uma à outra, caminhavam lado a lado e podiam entrelaçar e perder os seus dedos nos dedos do outro.      

Este percurso das duas vilas permitiu um mudar de atitude e de perspetiva. Conseguiu-se deslumbrar um futuro onde a sociedade não andava aos círculos, com cada um a falar para o seu lado, mas onde a troca de experiências se podia fazer face a face, lado a lado e caminhando para a frente.

As crianças destas duas vilas eram assim a semente de uma sociedade que dava os seus primeiros passos e estabelecia formas diferentes de se relacionar. No final, apenas uma questão inquietava os habitantes das duas vilas: depois de anos a falar, interagir e a viver cada um do seu próprio lado, estavam agora a aprender a ter mãos e pés esquerdos e direitos. Algo novo. 

Mas quão saudável e extraordinário seria viver numa sociedade onde todas as pessoas pudessem, sem exceção, ter uma mão direita e uma mão esquerda, assim como um pé esquerdo e um pé direito para caminhar, pensar, trabalhar e resolver os seus problemas como um todo e não de forma enviesada?  Para estas vilas, que sempre tiveram uma visão parcial dividida por uma parede de gelo, estas mãos e estes pés, permitem uma coisa entre muitas outras: caminhar para a frente e deixar de andar às voltas. 

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Tempo, esse velho de barbas brancas

O Tempo está muito cansado, visto que ele cura tudo. Nem imaginam como são tantas as dores de cabeça que um mundo inteiro de gente com problemas por resolver coloca em cima do Tempo! Este mar de gente está portanto a contar com o Tempo para que ele mesmo resolva. Talvez por isso, ele agora tem uma única cor: branco. Ele é branco nas barbas, no cabelo, e até as brancas que se lhe aparecem sobre as memórias são em branco. 

Vive num sótão onde mais espaço para ele se mover, não há. O Tempo é colecionador de dores, certo também que tem alegrias pelo sótão. Coleciona memórias de todo o tipo, mas o espaço, começa a escassear e  por ser tão acumulador as memórias encaixam-se umas em cima das outras causando alguns apagões, o pior é que com tanto caos o Tempo já se arrasta, não lhe é possível processar os dados com a mesma rapidez, o espaço é curto e a memória disponível também. 

Sendo que o Tempo, gosta de tomar conta de tantos, ele fica então sem mãos a medir. Por vezes acontece que encontra cacos ao seu redor e com muita calma e paciência junta caco a caco para voltar a fazer o vaso. Ainda assim o vaso nunca mais é como dantes, o Tempo fica triste e essa tristeza faz-se sentir nas suas barbas que sendo brancas, sem ponta de cor pelo meio, acabam por crescer. Então o Tempo agora é um velho de barbas e cabelos brancos, extremamente gigantes. 

A dado momento o Tempo tropeçou num molhe de cartas de amor, dois jovens de 15 anos eram as figuras das cartas, por estranho que pareça, ele só tinha um remetente e um recetor, cartas de uma só via. O Tempo perguntou-se: “Porque é que seria que a um molhe cheio de cartas de amor não se lhe apresentava resposta alguma?”. Possivelmente as respostas estariam perdidas naquele sótão pejado de feridas à espera de ser curadas. Visivelmente estas cartas de amor tinham muito por onde querer sarar. Entre encontros marcados e não acontecidos, até vergonhas alheias a impedir manifestações de amor e claro a típica timidez do primeiro amor.

A última carta surgia também ela incompleta:

Querido Jorge:

Hoje, não consigo falar porque as palavras ficaram presas na poça de lágrimas que surgiu na festa de finalistas. Estava feliz, disso eu lembro, até ler as palavras que me escreveste, com elas não vejo o futuro…

Esta última carta fica-se por aqui e o Tempo ficou desesperado porque não via mais cartas. Foi à procura delas no sótão, por todo o lado, remexeu até em factos menos distantes, porém, nada de encontrar o fio à carta. O Tempo não sabia o que lhe fazer, também não sabia como ajudar nesta situação. Com tanto trabalho para fazer, curas para apresentar, outras memórias e factos para arrumar naquele imenso sótão, o Tempo ficou sem movimentos pela carta de amor de Maria para Jorge, dois amados de primeira viagem. 

Entre uma carta e outra o Tempo resolveu brincar ao tempo e acabou por baralhar datas, baralhou-as de tal forma que o encontro marcado para 2000-10-03 acabou por ficar marcado para 20-01-30. Este acontecimento foi ao acaso, contudo, aconteceu. Foi então que finalizado este deslize temporal que ao olhar para o seu lado o Tempo encontrou uma carta que não existia até então. Era Jorge que a escreveu a Maria, o que dizia nessa carta, o Tempo não me revelou, disse porém: “Mais uma que o Tempo curou.”.    

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As aulas de natação de Narciso

Narciso sobreviveu. Após o susto, que apanhou quando caiu no rio, viu-se obrigado a ter aulas de natação, pois não iria deixar de ver o seu belo rosto refletido nas águas que quase o engoliram. 

Revelou-se, desde início, um péssimo aluno, e nadador. A começar pela recusa diária do uso de touca e óculos de natação, dizia que lhe desfiguravam a face, que não se reconhecia quando olhava para o seu reflexo. 

 Nos balneários, exigiu o cacifo mais próximo dos lavatórios com espelho para se ver enquanto trocava de roupa, ou se secava. E o mesmo com os chuveiros, esquecia de se lavar pois ficava a olhar para a sua cara no ralo do duche. E não vamos falar do tempo que ele despendia na casa de banho, pois distrai-se com a sua face na água da sanita. 

Narciso mostrava ser capaz de nadar. Estava rodeado daquilo que o distraía e que quase o matou. Recusava-se até a fazer os exercícios, como os que envolviam nadar debaixo de água, pois deixava de ver o reflexo da sua cara na piscina, e era essa a sua única motivação. 

O pior, principalmente para a equipa, eram quando treinavam mergulho a partir da prancha, Narciso ficava simplesmente a olhar-se, de um muito melhor ângulo do que quando estava na água. 

Narciso desistiu da natação. Aprendeu apenas o suficiente para sobreviver futuros afogamentos. E levou consigo uma boia. 

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São lonjuras, Senhores


São lonjuras, Srs. 

Sentia saudades de tudo, o que a deixava descansada, significando que ainda tinha memória, embora começasse a ser frequente esquecer-se de coisas tão simples como chegar à cozinha sem saber por quê. Não se preocupava com esses pequenos sinais do início precoce de uma demência senil. Cada vez tinha mais saudades e por curiosidade consultou a sua definição.

1. Lembrança grata de pessoa ausente, de um momento passado, ou de alguma coisa de que alguém se vê privado.

2. Pesar, mágoa que essa privação causa.

A primeira definição encaixava na perfeição – gratidão e privação – que nalguns casos levava ao ponto dois, a mágoa.

Era grata pela quantidade de memórias que tinha amealhado: da sua mãe, com os dentes da frente separados “dentes de malandra” como ela dizia – que deixaram de ser (até nisso a sua mãe contrariava a natureza) e das viagens realizadas com a mãe ao longo de tantos anos no lancia Delta preto onde ouviam a TSF e depois Joan Baez ou Paul Simon. O mesmo carro que albergava qualquer pessoa que a mãe visse a andar a pé em esforço; das vésperas de Natal e do cheiro a pinhões; do pão quente com queijo fresco que a mãe fazia questão de comprar todos os dias; das festas que organizava sozinha, quando parecia que mais de cem pessoas o estavam a fazer; das suas mãos delicadas, com os dedos tão finos que usava para fazer broas e cujo cheiro invadia toda a rua; dos enfeites que criava para todas as ocasiões que considerava especiais; e dos mimos que recebia das mãos da mãe. 

Estas saudades, gratas, matava sempre que visitava os pais e seguramente originariam muitas mais. Djavan relembrava-a com a sua música, “…é doce morrer nesse mar de lembrar e nunca esquecer…. Isso sim, pra mim é viver “, a importância destas saudades.

Já as saudades de privação agonizavam-na a ponto de não saber se era melhor lembrar ou esquecer, quando sabia ser impossível apagar parte da sua vida. 

Escrevia cartas, mesmo que em vão, numa tentativa de obter respostas que nunca chegavam. Gostava de escrever desde que se lembrava de ser gente e ainda guardava numa grande caixa cartas trocadas com metade da sua vida. Essa caixa, bem como a sua memória olfativa, ajudavam-na construir o passado. Podia viajar para qualquer sítio que quisesse e a partir daí reconstruir uma história – por exemplo o cheiro a eucalipto, que a levava para grandes campos cheios de arvores verdes, onde andava a cavalo com o seu irmão, ou o cheiro a madeira que remontava para a casa onde nasceu.

Conhecia também o odor de cada pessoa que amava e se, acaso fora de alguém que já não estava na sua vida, largava-se em lágrimas e recordava Denison Mendes (dizem que atribuído erroneamente a Caio F. Abreu) com a sua frase:

“O médico perguntou: — O que sentes? E eu respondi: — Sinto lonjuras, doutor. Sofro de distâncias”.

Hoje sentia-se muito doente, padecia de lonjuras, sofria de distâncias.

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A televisão comeu a minha avó

Não sabemos bem como aconteceu, foi certamente enquanto ninguém estava na sala. Ninguém viu. Desconfiamos que não foi numa dentada só, mas antes aos poucos. Lenta e sorrateiramente, para não percebermos de imediato aquilo que a televisão se preparava para lhe fazer. Aliás, para nos fazer, porque a avó é nossa. Quando digo nossa, digo do nosso coração. Ser mesmo, ela é lá dela e só dela. Deus nos livre de questionar de quem é. Se há senhora de si, é a avó.

A avó foi-se entretendo. A televisão era uma companhia quase dispensável, depois começou a preencher o silêncio e o vazio que o avô deixou. O avô foi comido pelo próprio coração. Até hoje fazemos contas de cabeça como raio coube todo, inteirinho, dentro do próprio coração, que estava ali arrumado num canto – canto bonito, é certo, mas com as naturais limitações físicas e espaciais da caixa de arrumos onde tinha lugar, que calha ser a caixa toráxica. Depois de alguns anos a desenvolver e testar hipóteses, concluo que o coração seria certamente muito maior do que a ciência nos permite calcular. Se coube, havia espaço e se havia espaço para tanto avô, então era uma coração maior ainda que a sua barriga. E sabemos que barriga de avô cresce para guardar mais amor.

A da avó também. Foi crescendo à frente da televisão, sobre o sofá e entre mantas. Parece que a cada vez que a avó carrega num botão do comando a barriga cresce um pouco e televisão rouba-lhe mais um pedaço. E a avó carrega muitas vezes em muitos botões. Quando se engana no comando, vira uma verdadeira teclista. Acho que a televisão percebeu que essa seria uma boa forma de a engolir sem darmos conta. Cria confusão, a avó responde atacando os botões todos onde as mãos chegam e a televisão vai levando mais e mais dela. Percebo a tentação porque a avó é pequenina, dá vontade de agarrar e embrulhar num abracinho e continua a minguar aos poucos, o que aguça a vontade. Os médicos dizem que é natural com a idade, mas eu sei que a televisão não é inocente. 

As duas foram ficando mais amigas. A televisão começou por roubar a atenção da avó, depois os acenos e beijinhos também. Juro. Ficou amiga da televisão e das pessoas dentro dela. Diz mesmo que a vêem, mas não nos deixa olhar para ela. Ou não nos vê olhar para ela. 

Se antes se sentava a ouvir televisão enquanto fazia crochet, palavras cruzadas ou mil e uma outras atividades que exigiam paciência, não demorou a largar tudo para se dedicar inteiramente à nova amizade. Tal como fez com a atenção, a televisão começou a comer também a paciência que a avó tinha para tudo o que havia fora daquela moldura brilhante e barulhenta. Podemos afirmar, com certeza, que a televisão planeou isto com muito mais detalhe do que acharíamos possível.

Julgamento de intenções à parte, o que é certo é que a televisão trabalhou muito nesta sua missão. Acorda com a minha avó e só dorme depois de ela se deitar. A televisão começou a dominá-la e agora, as duas juntas, dominam a casa onde estiverem. 

Começámos a desconfiar das intenções do quadrado-mágico-trágico quando a avó deu os primeiros sinais de mergulho. Podemos estar mesmo ao lado dela mas, estando uma televisão ligada, entramos num duelo pela sua atenção. E perdemos cada vez com mais frequência. Os beijinhos deixaram de aterrar nas nossas bochechas e passaram a voar em direção ao ecrã. O mesmo com acenos, a atenção e a paciência. 

Demos a atenção e paciência como desaparecidas. As buscas deixaram-nos descobrir para onde foram, mas não estamos a ser capazes de negociar o resgate. A avó continua a minguar. Só a barriga e o cabelo escapam a esta tendência. O mais notório minguar, cuja responsabilidade podemos atribuir diretamente à televisão, é o dos olhos. Os olhos da avó estão cada vez mais pequeninos e escondidos. Como a televisão se reflete nas lentes gastas dos óculos que insiste em não mudar, fica ainda mais difícil ver os olhos da avó. Antes de os vermos, vemos a televisão. E mesmo quando parece olhar para nós, não são raras as vezes em que o raio da televisão está lá pelo meio.

O frio que a avó sente não vem da rua, vem das temperaturas que vê anunciar na televisão, das tempestades batizadas com nomes humanos que encharcam os ecrãs. O sol que a queima não lhe pousa em cima, entra-lhe pelos olhos e aquece-lhe o medo e a paciência. O frio que a televisão lhe conta arrefece-lhe a coragem e enterra-a no sofá. A avó, que passou tanto tempo sob chuva, sol, granizo, neve – o que fosse – a trabalhar, hoje tem tanto medo do calor como do frio e tanto medo do dia como da noite. Tem medo do tempo que já nem quer sentir.

Não se enganem, a avó tem mais saúde do que a televisão lhe diz, mas não a vê. Para ela, a idade não é só um número. É mais a cada número, é pior a cada número. Tem de ser sinónimo de velhice e a velhice, por sua vez, tem de ser sinal de doença e proximidade do fim. Mesmo que todas as análises, medições e exames lhe gritem que está bem. Ouve mais os médicos da televisão do que os que lhe abrem a porta do consultório.

Já não quer ir à casa dela. A senhora mais dona de si, já não tem saudades da sua casa. Imagino que de alguma forma a televisão se tenha feito casa. Qualquer televisão, menos a dela. Acreditam que mandou tirar a televisão de casa? Podíamos assumir que é por não lhe dar assim tanta importância, mas é precisamente por sabermos que a televisão a engoliu que entendemos que isto é parte da estratégia que as duas montaram para ela não voltar a casa. A decisão de não voltar foi tomada tirando de lá a televisão. Foi a confirmação e assim não há dúvida, porque onde não há televisão, não pode haver avó. 

Ainda faz da janela uma televisão, mas depressa se aborrece, porque não pode mudar de canal. Passeia sentada no sofá, vê pessoas e interage, tudo sem sair do lugar. A avó tem medo até da comida, do mal que lhe pode fazer. Já pouco se importa com o bem que lhe sabe. É sempre o medo. Priva-se de tanto por medo. O medo, o medo, o medo. 

A avó tem medo de morrer, mas está constantemente a encontrar morte na televisão. Mal ela se apercebe que antes de a morte a roubar de nós, já a televisão a está a levar. Pergunto-me se nos ouviria melhor se lhe falássemos de dentro da televisão. A avó tem tanto medo de morrer que não vive.

A televisão comeu a minha avó. Com medo de um caixão, prendeu-se dentro de uma caixa.