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Crónica

O que é feito dos panfleteiros?

As ruas voltam a ocupar-se de gente que respeita o, mais do que seu contrário, desconfinar. Nos próximos tempos, vários locais de trabalho voltam a abrir, para prazer de alguns e sobrevivência de outros. Quero falar aqui de um trabalho que me tem inquietado: os panfleteiros. 

Em tempos pré-pandémicos, os panfleteiros eram quase uma espécie de saco de boxe, onde os stressados transeuntes descarregavam a raiva acumulada através de um “Não.” e suas variantes, ou de um simples, mas agressivo levantar de mão que impossibilita o contacto. É possível comparar um panfleteiro a um/a amado/a, ambos veem o nosso pior lado. E de uma maneira ou de outra não julgam. 

Ser panfleteiro não é fácil. Muito menos em tempos pandémicos, em que o contacto e a proximidade são evitáveis, e devem-se evitar objectos de outrem. A taxa de engajamento é, presumo eu, ainda mais baixa. Se, outrora, a recusa de um panfleto ou informação era por desinteresse (ou mau carácter), actualmente é por segurança (ou desinteresse ou mau carácter). Eu próprio vejo-me a questionar se aqueles panfletos estão desinfetados, ou até como poderia (ser persuadido a) aderir à nova rede tarifário, se o indivíduo terá de me explicar as condições no mínimo a um metro de distância de mim. Dou por mim a passar na rua e a ter pena – aquele sentimento terrível – deles porque, apesar de tudo, vivemos tempos em que aquilo que têm para nos oferecer é do nosso interesse. 

É do maior interesse de todos ter neste momento, em que vivemos permanentemente online, um serviço de internet com mais gigas, com fibra, e todos esses adjectivos que podem ser reduzidos a “rápida”. A internet nunca foi tão preciosa, sobretudo para os teletrabalhadores e os telealunos que passam o dia em reuniões ou aulas online. Contrariamente, é ótimo ter-se internet lenta, pois já ninguém suporta mais do que uma hora de Zoom; quem sofre com isto são os telealunos cujos professores já não acreditam no novo “O meu cão comeu o trabalho de casa” que é “Stora, tou com a câmera desligada porque a net tá lenta.”. Ainda no departamento das telecomunicações e multimédia, aquele absurdo de ter vários pacotes de canais – dos filmes, dos desenhos animados, das viagens, da culinária, da bricolage, da música, etc – são, agora, úteis. Já não basta os três canais nacionais que passam o dia a transmitir notícias e informações sobre o “elefante na sala”. É necessário saber o que vai acontecer à “Patrulha Pata”, o que comem os noruegueses, como procriam os cavalos marinhos ou recordar as músicas dos anos oitenta. 

Vivemos tempos de esperança, e não existem melhores distribuidores de esperança do que aqueles panfleteiros de uma determinada religião que se instalam numa esquina aleatória de uma rua não menos aleatória com um stand a proclamar o fim do mundo e como seremos poupados por um salvador. Quero nomear também nesta categoria todos os professores, especialistas dos trabalhos ocultos, e que resolvem todos os problemas de variadas áreas da vida profissional e pessoal de cada um. Até esses fazem falta.

E os que distribuem folhetos de cadeias de novos restaurantes fast-food que abrem, a cada semana, numa zona nova? Foram sempre subvalorizados, com os seus cupões e promoções, agora fiquemo-nos pelos serviços de entrega com taxas de entrega altas e condições de trabalho precárias.

Não esquecer os panfleteiros políticos e humanitários. Sempre souberam que vivíamos em modelos políticos em ruína, ninguém quis saber e agora vão para rua, como eles sempre fizeram, para reclamar o uso de máscara. 

Finalmente, os que mais engajamento conseguem: os panfleteiros de festas. O seu habitat natural é nas portas dos liceus ou universidades, em horas de intervalo ou de término de aulas; onde anunciam aberturas de novos bares ou festas temáticas, citando todo o cardápio de bebidas que tem de oferta um shot. Fazem falta as festas. E eles também. 

Agora, mais do que nunca, são necessários panfleteiros e, como qualquer amado/a, precisam da nossa atenção. Da próxima vez que vir um panfleteiro, aceite o que ele tiver para lhe dar, nem que depois deite no caixote do lixo mais próximo, como sempre se fez. 

Por Afonso Abreu

nasceu no Funchal, em 1999. Aos dezoito anos, decidiu mudar-se para Lisboa para estudar teatro; estando a terminar a licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema. A sua presença em palco é tão forte que em vez de estar a fazer um espetáculo, está a escrever contos para uma publicação. Gosta demasiado de doces, talvez por influência do avô pasteleiro, mas tem medo de se tornar diabético, como o avô pasteleiro. No secundário descobriu que tinha apetência para roubar chocolates na máquina de snacks. A última coisa que roubou, há dois anos, foram elásticos de cabelo numa loja de roupa barata que explora crianças no Bangladesh.

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