Nasceu perfeita. Parto fácil, hora curta e uma mãe forte o suficiente para fazer crescer no ventre tantos mais filhos quantos vierem. Contaram-lhe os dedos das mãos e dos pés: um dedo, dois dedos, mais um dedo e outro dedo e outro e outro e conta certa. Os três cabelos que irrompiam do topo da cabeça prometiam uma cabeleira forte e lustrosa. Parecia tão bonita. O rosto avermelhado visto num ápice parecia resolver-se com o primeiro banho, mas não era sangue, era barro.
Nasceu perfeita, com um rosto de barro. A pele não era pele. Os ossos ainda moles do rosto – e, quem sabe, a carne – cobriam-se de terra alaranjada e quente, incandescente ou em brasa, como a que se vê nos postais de lugares longínquos, abafados e pintados a cores que parecem nem existir.
A mãe acolheu-a nos braços com o mesmo orgulho com que qualquer oleiro ergue as obras que lhe saem das mãos. Fê-la de barro sem intenção, mas fê-la tão bonita. A mãe era a mais calma da sala que, em chamas, lhe gritava todos os inconvenientes:
O banho desfez a expressão da recém nascida.
A mãe não teme, molda de novo com o coração na ponta dos dedos.
A criança não chorou enquanto nascia.
A mãe não teme, compreende que não chora porque o choro desfaz. E quando chorar, pode esculpir-se tal como era de novo. A expressão pode dispensar a lágrima, a menina pode cravá-la no rosto sem a chorar, pode crescer capaz de chorar para dentro sem corroer a carne que se cobre de barro.
Alguém grita E A CHUVA?
A mãe não teme, promete ser abrigo enquanto viver – e depois. Ser mãe é ser abrigo e será mãe para sempre.
Mas a água ameaça o barro mais sólido.
A mãe não teme, o que a água molha o calor enxuga e o sol endurece o barro. À falta de abrigo ou calor, há verniz que repele a água. Pode ser o que quiser, até casco de barco, se encher o peito de ar.
Vai viver com medo.
A mãe não teme, não conhece quem viva sem ele.
A menina temeu a água como quem teme a morte, com medo que a pele que não o era se deixasse desfazer até ruir ossos abaixo. A mãe não temeu. A menina aprendeu a moldar-se de novo depois do chuveiro e da chuva. Perdeu o medo de se esquecer como era antes. Deixou-se molhar com e sem intenção, soube envernizar-se quando o vento fintou o abrigo, soube moldar-se de novo sempre que se deixou desfazer e aprendeu a esculpir apenas as rugas que a desenham também por dentro. Todas contam uma história e é ela quem as escreve.