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Janela Aberta

O meu quarto foi sempre o meu maior espaço. É o espaço onde tudo me é familiar e onde mais ninguém sabe onde escondemos o que nos é mais valioso. Guardamos segredos no fundo das gavetas, por baixo de livros e cadernos antigos. Guardamos calendários, blocos e memórias de quem nos roubou o olhar. No meu quarto, jogo sempre em casa. 

Apesar de conhecer todos os recantos, a parte que mais me fascinava era a janela: a janela do meu quarto deu-me mundo. Eu sei que dava apenas para o descampado onde jogava à bola ao fim de semana, mas dessa janela eu sentia o pulso do bairro e até do país senão vejamos: conseguia ver quando é que havia fila para o supermercado pois as pessoas estavam à porta para entrar; sabia se era fim de semana pois o vizinho do prédio em frente estava a lavar o carro para depois se esticar e ler o Expresso durante o resto da manhã enquanto ouvia a rádio em alto e bom som e; também sabia se havia vento em Lisboa uma vez que os aviões sobrevoavam a minha casa de e para a pista 17 em vez de alongarem a costa do Espichel até ao Monte da Caparica. 

À minha janela chegavam os sons do primeiro centro comercial que abriu em Portugal. A música que entrava era bastante animada e claro está, decorei letra e ritmo. Quando uma vez a professora da 4ª classe me perguntou quem queria cantar alguma coisa antes de dar a aula por encerrada, cheguei-me à frente. A minha inocente consciência politica dos 9 anos não sabia o que era censura, mas assim que as primeiras notas saíram da minha garganta fiquei a conhecer pois a professora, que também vivia ao lado do dito centro comercial e ouvia a mesma música dia e noite, não era fã como eu e eis que salta da sua cadeira e pega na régua de madeira para me achatar as mãos. 

Virado para a minha janela li e estudei. Estudei, é certo, mas o meu olhar perdia-se para a rua e para o céu. Uma manhã perdi-me nas leituras e não fui ter com os meus amigos que foram à inauguração do hipermercado. Fiquei a ler em frente à janela. Enquanto lia sobre o meio-físico e social, vi as luzes das ambulâncias que foram socorrer quem levou com o telhado que ruíu com a chuva acumulada enquanto estreavam quando comprava pela primeira vez na grande superfície.    

Esta é a janela da qual me recordo mais, pois era minha. Tive outras que me davam vista para o mar, para a serra ou para o museu. Dormir embalado pelo som do Ondas do Mar foi um privilégio, se bem que o som do oceano era frequentemente abafado pelo vento. Ter a vista para a serra permitiu ver o sol a acordar atrás da montanha após largas noites a observar charcos de estrelas e ver como duas vidas podem ser condenadas numa noite. Já da janela para o museu o complicado era manter a concentração devido aos OVNI’s que por ali pairavam. Presságio ou não, anos depois esse mesmo museu foi promovido a ícone por albergar super-heróis.  

Ter um lugar à janela dá-nos uma perspetiva maior ao nosso redor. Seja no avião, autocarro expresso ou comboio, a janela tem qualquer coisa a mais (não é por acaso que um dos hashtags da CP é #Lugarajanela). A janela do comboio está sempre em movimento. Quando se podia abri-la era divertido pôr as cortinas e a cabeça de fora para sentir o vento na cara… tudo muito engraçado até aparecer um comboio em sentido inverso. Para se aproveitar a janela na linha da Beira Baixa ou do Douro há que ser estratégico: com sorte temos uma vista para o rio enquanto a linha serpenteia a água, caso contrário temos um lindo close-up do recorte da pedra. Da janela do avião há um momento muito particular: logo após a descolagem olhamos para fora para ver o que fica para trás. Eu penso que nos dá tempo para um último “até já” ou “adeus” consoante o caso. Do avião (provavelmente a minha janela de um meio de transporte preferida) deixamos de estar em pé de igualdade com a superficie. Temos perpetiva e a dimensão real das coisas. 

Há estas janelas onde somos espetadores passivos e vemos a vida a acontecer. São janelas que nos movem com elas. No entanto há janelas que requerem a nossa ação, são as janelas de oportunidade. Estas, infelizmente, nem sempre são visíveis e muitas vezes só nos apercebemos depois do momento passar. A diferença destas para as outras janelas é que não têm o vidro onde também podemos ver o nosso reflexo. Se passarmos por um um túnel de comboio ou na estrada ou se viajamos de noite de avião, temos a nossa cara a devolver-nos o olhar. Na janela de oportunidade tudo acontece, tudo se decide  e tudo se perde sem filtros. E uma vez fechada esta janela, não há forma de a voltar a abrir. 

Olhando por qualquer destas janelas, retenho a forma de como a paisagem mudou. O meu campo de futebol/basquetebol deu lugar (literalmente) a um parque de estacionamento. As folhas caem para que outras, mais fortes, brotem e cresçam dando continuidade à vida. Sempre me focalizei no que via lá fora, na distância, até que há pouco vi que o reflexo que a janela me devolve mudou e quase não reconheço aquela pessoa que tem os meus olhos. 

Engraçado, nunca tinha notado nisso. 

Por Dário Muhamudo

Nasceu em Moçambique e passados 7 meses foi convidado a sair. Chega a Portugal depois de 10 horas de avião, uma experiência que o marcou e desde então vive com os olhos virados para o céu. No Seixal arriscou um pouco de teatro como ator e dramaturgo. 18 anos depois chega à Guarda, onde inicia a sua formação académica. Descobre a essência e a paixão pelas coisas originais e recomeça a escrever como jornalista. Sai de Portugal para continuar os estudos em Inglaterra e combina os seus interesses maiores: comunicação e economia. A vida trocou-lhe as voltas e continuou fora de Portugal. Gosta de viajar (especialmente para Itália), de vulcões, da imensidão do oceano e da Eurovisão. Cumpriu um dos seus maiores sonhos quando tirou o brevet de piloto. É Economista dos Media, tenta ser diplomata e acredita no poder de uma Serenata. Atualmente pode ser encontrado em Genebra, a cidade a que chama de casa.

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