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A Máscara

No Carnaval ninguém (ou melhor, quase ninguém) leva a mal.

O facto de se reservar um fim de semana em Fevereiro para poder andar camuflado no meio da multidão igualmente camuflada sempre me fascinou. Mais que não seja porque a tolerância para a brincadeira é maior e vigora a amnistia do disparate. O Carnaval na Europa é, regra geral, frio. Há um incentivo maior para sacudir o corpo para o aquecer. O futuro reserva-nos um clima um pouco mais ameno para os próximos Fevereiros. Isto tudo para dizer que as pessoas que desfilam na rua, bravando a chuva e o vento sempre me impressionam. 

Mas pelo que eu realmente esperava e me deixava desperto pela noite fora era a transmissão do desfile do Sambódromo do Rio. 

Sambódromo.  

O sufixo “dromo”, grego, significa “lugar onde se corre”. Por isso temos o Aeródromo – lugar onde os aviões “correm” para voar, o Autódromo – lugar onde os carros correm, o Hipódromo – onde os cavalos correm, o Velódromo – onde as bicicletas correm, para citar os mais conhecidos. Também temos o Salsódromo, onde se “corre” para dançar Salsa, uma palavra que nos chega da Colômbia onde a Salsa é Rainha e, num registo ligeiramente diferente, a Síndrome, onde várias coisas (o)correm ao mesmo tempo no corpo. No entanto para além de Sambódromo – lugar onde se corre para Sambar, o Brasil deu-nos também o Fumódromo – lugar onde se corre para fumar e decididamente o meu “dromo” favorito: Namoródromo: o lugar onde se corre para namorar. Este é o espaço, normalmente num dos cantos mais recatados da casa, interior ou exterior, onde se encontra o sossego para namorar em paz e em boa companhia (de preferência). Para mim pode ser ao lado de uma janela com uma vista serena e um chão almofadado. Se é sempre bom ter um porto seguro para nos refugiarmos, porque não para namorar?  

Mas divago… 

A forma de festejar o Carnaval difere de país para país: no Rio usa-se pouca roupa, em Nova Orleães cada um interpreta a versão mais devassa e satânica da sua figura histórica preferida; nas ilhas do Atlântico pinta-se o corpo de negro; em Ivrea as pessoas atiram laranjas umas contra as outras; em Colónia dá-se vida às fadas e aos duendes e, em Veneza cobre-se de fatos exuberantes que só não tapam os lábios e o nariz (para mais informações ver o filme Eyes Wide Shut).   

Usar uma máscara no Carnaval permite ocultar a identidade e ser um outro alguém. Entre o divino e o profano a escolha é farta e vasta. Por vezes as pessoas acreditam terem poderes como os super-heróis. No entanto, eu preocupo-me com as máscaras que usamos no dia-a-dia e que não esperam pelo Carnaval para aparecer: aquelas que estão permanentemente à vista de todos. O meu argumento é que uma máscara funciona como um atributo que permite atrair a atenção para outra coisa que não seja o teu aspeto físico. 

Eu explico: usar uma mala (do Michael, do Louis, da joaninha ou do cavalo anão), um casaco, um relógio, um perfume ou mesmo um Caniche/Chihuahua (ou qualquer outro animal de colo que caiba na bolsa) faz com que as pessoas se fixem no que lhes retém a atenção e de repente qualquer inabilidade fica invisível. 

Imaginemos alguém que vai começar a surfar e como não quer estar “out” desde o início vai comprar o melhor equipamento possível (normalmente reservado e apreciado por praticantes de longa data) e assim dará a impressão que já tem tudo: o clássico exibicionista. Ainda antes de molhar o pé já é o centro das atenções. 

Isto funciona para quase tudo e permite de um lado que uma conversa se inicie e que a primeira impressão seja de algo de interesse comum. Se a prosa for suficiente hábil nem é preciso molhar os pés… tenho uma amiga que repara nestas coisas e consegue sempre identificar os relógios mais raros que estão à nossa volta. Com isso inicia as conversas mais inesperadas. Common ground, o segredo para ultrapassar a primeira impressão e quebrar o gelo. O familiar atrai o que lhe é próximo para ficar tudo em família.

Para mim, que nunca aprendi a apreciar relógios a esse ponto, lembro-me sempre do meu amigo Oríadeu, que tinha a dança como máscara. Tímido e discreto, falava pouco e demorava-se até abrir a boca para deixar sair algo que não fosse um “Errrrr” hesitante e sem consequência através de um sorriso desmaiado. A máscara que usava fazia sair toda uma nova personalidade. Assim que ouvia as primeiras batidas da sua música preferida, atacava a pista com passos sincronizados ao ritmo da música desafiando a gravidade. Todas as suas imprecisões tornavam-se invisíveis pois apenas se via o bailarino a arrepiar a pista.  

Vendo-o dançar, vi de tudo: gritos, suspiros, aplausos, arrepios, lágrimas, sustos e abraços. Pessoas que assistiam nas laterais levantavam-se das cadeiras em aplausos e acorriam para agradecer a “exibição”. Na Universidade houve pessoas que decidiram aprender a dançar depois de o ver na pista, qual instrumento de evangelização à causa da dança. Se num casamento foi aclamado como “Cidadão Latino Honorário”, tal foi a forma como homenageou a América do Sul, noutro foi designado como “impróprio para consumo”, tal foi o abuso na pista. Houve pessoas que se transformaram, parcerias que se formaram, barreiras que se romperam e portas que se abriram. Num momento supremo ensinou um amigo a dançar para que este, ao surpreender a namorada, conseguisse salvar a sua relação. E conseguiu.

Oríadeu dança onde, quando e sempre que pode. Em casa, na sala de aula, nos corredores do trabalho, ao ar livre e sempre que a música começava a tocar. Para estar sempre pronto tinha uma muda de roupa e sapatos na bagageira do carro e num armário do escritório. Uma vez cruzei-me com ele no aeroporto: um grupo de músicos latino-americanos, acabados de chegar de uma viagem de longo-curso aproveitaram para fazer um concerto espontâneo enquanto esperavam pelas suas bagagens. Oríadeu lá estava, a convidar passageiras desprevenidas a dar uns passos antes de cruzar a alfândega e a susterem as suas vidas por uns momentos antes de seguirem para outros braços que não os seus. Os seus passos entranham-se nos corpos de quem com ele partilha uma dança ou um momento. No fundo, é apenas isso que ele oferece, um parêntesis de abstração antes do resto, antes da continuação. 

No entanto o que as pessoas esqueciam era que para Oríadeu, o ato de Dançar era apenas e somente sobre dançar. Era sobre essa partilha, sobre esses momentos. E sempre foi assim.

Até o dia em que ela, a Profetisa, apareceu. Para quem se ocupou em converter gente pagã à dança durante tanto tempo, Oríadeu voltou a ser discípulo. Naquele tempo, vê-los bailar era como observar dois corpos a conversar, onde cada gesto era uma pergunta e cada passo uma resposta. De certa forma era inspirador e mostrava ao que nós, os demais, poderíamos almejar. 

Com o passar do tempo e apesar de ter sido avisado, Oríadeu deixou de conseguir conter os seus anseios e, tal como Ícaro voou demasiado perto do Sol, queimando a sua máscara duma vez por todas.   

Desmascarado e com a boca descoberta, Oríadeu deu-se conta que há fôlegos que só se retomam quando dois corpos se juntam. E que há anseios que só se saciam quando duas bocas se amam. 

Por Dário Muhamudo

Nasceu em Moçambique e passados 7 meses foi convidado a sair. Chega a Portugal depois de 10 horas de avião, uma experiência que o marcou e desde então vive com os olhos virados para o céu. No Seixal arriscou um pouco de teatro como ator e dramaturgo. 18 anos depois chega à Guarda, onde inicia a sua formação académica. Descobre a essência e a paixão pelas coisas originais e recomeça a escrever como jornalista. Sai de Portugal para continuar os estudos em Inglaterra e combina os seus interesses maiores: comunicação e economia. A vida trocou-lhe as voltas e continuou fora de Portugal. Gosta de viajar (especialmente para Itália), de vulcões, da imensidão do oceano e da Eurovisão. Cumpriu um dos seus maiores sonhos quando tirou o brevet de piloto. É Economista dos Media, tenta ser diplomata e acredita no poder de uma Serenata. Atualmente pode ser encontrado em Genebra, a cidade a que chama de casa.

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