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Poema

Três pequenos poemas para três tristes tristes

“O céu está nuvelado.

Também eu estou nuvelado.”

– Diz um senhor ao cão que passeia.

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Não insisto com a minha memória.

De momento, não tem nada para me dar.

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A vida são dois dias.
Três em anos bissextos.

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Conto

As aulas de natação de Narciso

Narciso sobreviveu. Após o susto, que apanhou quando caiu no rio, viu-se obrigado a ter aulas de natação, pois não iria deixar de ver o seu belo rosto refletido nas águas que quase o engoliram. 

Revelou-se, desde início, um péssimo aluno, e nadador. A começar pela recusa diária do uso de touca e óculos de natação, dizia que lhe desfiguravam a face, que não se reconhecia quando olhava para o seu reflexo. 

 Nos balneários, exigiu o cacifo mais próximo dos lavatórios com espelho para se ver enquanto trocava de roupa, ou se secava. E o mesmo com os chuveiros, esquecia de se lavar pois ficava a olhar para a sua cara no ralo do duche. E não vamos falar do tempo que ele despendia na casa de banho, pois distrai-se com a sua face na água da sanita. 

Narciso mostrava ser capaz de nadar. Estava rodeado daquilo que o distraía e que quase o matou. Recusava-se até a fazer os exercícios, como os que envolviam nadar debaixo de água, pois deixava de ver o reflexo da sua cara na piscina, e era essa a sua única motivação. 

O pior, principalmente para a equipa, eram quando treinavam mergulho a partir da prancha, Narciso ficava simplesmente a olhar-se, de um muito melhor ângulo do que quando estava na água. 

Narciso desistiu da natação. Aprendeu apenas o suficiente para sobreviver futuros afogamentos. E levou consigo uma boia. 

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Crónica

O que é feito dos panfleteiros?

As ruas voltam a ocupar-se de gente que respeita o, mais do que seu contrário, desconfinar. Nos próximos tempos, vários locais de trabalho voltam a abrir, para prazer de alguns e sobrevivência de outros. Quero falar aqui de um trabalho que me tem inquietado: os panfleteiros. 

Em tempos pré-pandémicos, os panfleteiros eram quase uma espécie de saco de boxe, onde os stressados transeuntes descarregavam a raiva acumulada através de um “Não.” e suas variantes, ou de um simples, mas agressivo levantar de mão que impossibilita o contacto. É possível comparar um panfleteiro a um/a amado/a, ambos veem o nosso pior lado. E de uma maneira ou de outra não julgam. 

Ser panfleteiro não é fácil. Muito menos em tempos pandémicos, em que o contacto e a proximidade são evitáveis, e devem-se evitar objectos de outrem. A taxa de engajamento é, presumo eu, ainda mais baixa. Se, outrora, a recusa de um panfleto ou informação era por desinteresse (ou mau carácter), actualmente é por segurança (ou desinteresse ou mau carácter). Eu próprio vejo-me a questionar se aqueles panfletos estão desinfetados, ou até como poderia (ser persuadido a) aderir à nova rede tarifário, se o indivíduo terá de me explicar as condições no mínimo a um metro de distância de mim. Dou por mim a passar na rua e a ter pena – aquele sentimento terrível – deles porque, apesar de tudo, vivemos tempos em que aquilo que têm para nos oferecer é do nosso interesse. 

É do maior interesse de todos ter neste momento, em que vivemos permanentemente online, um serviço de internet com mais gigas, com fibra, e todos esses adjectivos que podem ser reduzidos a “rápida”. A internet nunca foi tão preciosa, sobretudo para os teletrabalhadores e os telealunos que passam o dia em reuniões ou aulas online. Contrariamente, é ótimo ter-se internet lenta, pois já ninguém suporta mais do que uma hora de Zoom; quem sofre com isto são os telealunos cujos professores já não acreditam no novo “O meu cão comeu o trabalho de casa” que é “Stora, tou com a câmera desligada porque a net tá lenta.”. Ainda no departamento das telecomunicações e multimédia, aquele absurdo de ter vários pacotes de canais – dos filmes, dos desenhos animados, das viagens, da culinária, da bricolage, da música, etc – são, agora, úteis. Já não basta os três canais nacionais que passam o dia a transmitir notícias e informações sobre o “elefante na sala”. É necessário saber o que vai acontecer à “Patrulha Pata”, o que comem os noruegueses, como procriam os cavalos marinhos ou recordar as músicas dos anos oitenta. 

Vivemos tempos de esperança, e não existem melhores distribuidores de esperança do que aqueles panfleteiros de uma determinada religião que se instalam numa esquina aleatória de uma rua não menos aleatória com um stand a proclamar o fim do mundo e como seremos poupados por um salvador. Quero nomear também nesta categoria todos os professores, especialistas dos trabalhos ocultos, e que resolvem todos os problemas de variadas áreas da vida profissional e pessoal de cada um. Até esses fazem falta.

E os que distribuem folhetos de cadeias de novos restaurantes fast-food que abrem, a cada semana, numa zona nova? Foram sempre subvalorizados, com os seus cupões e promoções, agora fiquemo-nos pelos serviços de entrega com taxas de entrega altas e condições de trabalho precárias.

Não esquecer os panfleteiros políticos e humanitários. Sempre souberam que vivíamos em modelos políticos em ruína, ninguém quis saber e agora vão para rua, como eles sempre fizeram, para reclamar o uso de máscara. 

Finalmente, os que mais engajamento conseguem: os panfleteiros de festas. O seu habitat natural é nas portas dos liceus ou universidades, em horas de intervalo ou de término de aulas; onde anunciam aberturas de novos bares ou festas temáticas, citando todo o cardápio de bebidas que tem de oferta um shot. Fazem falta as festas. E eles também. 

Agora, mais do que nunca, são necessários panfleteiros e, como qualquer amado/a, precisam da nossa atenção. Da próxima vez que vir um panfleteiro, aceite o que ele tiver para lhe dar, nem que depois deite no caixote do lixo mais próximo, como sempre se fez. 

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Conto

Insónias

Aconteceu-me nessa noite ter uma insónia, pois são raras as vezes que não durmo que nem uma pedra. Poderia enumerar as razões que me mantinham acordado, mas pensar nelas propositadamente iria manter-me ainda mais acordado. Assumi a minha insónia, levantei-me, vesti o roupão. Da mochila, tirei o maço de tabaco. Abri a janela da marquise da cozinha já de cigarro na mão e, nesse preciso momento, observei a coisa mais estranha que alguma vez vira. No parque-infantil – este encontra-se no jardim que serve de vista à marquise – estavam dois homens, ambos de tronco nu, a olharem-se intensamente enquanto andavam em círculo. O diâmetro do círculo ficava menor a cada volta que os homens davam. Estavam cada vez mais próximos, já a um braço de distância. Não se ouvia nada. Apenas era visível a sua respiração, quase animalesca. As suas cabeças curvavam-se para a frente, a qualquer momento poderiam se cabecear ou beijar. Um deles, não era possível distinguí-los, agarrou o outro pelo pescoço e levou-o ao encontro do seu joelho arqueado. Foi aí que ouvi um primeiro som, um gemido alto de dor, que me fez fechar os olhos por breves segundos; quando os abri, estava deitado no chão a recuperar o que acabara de levar uma joelhada; levantou-se, limpou o nariz ensanguentado com o braço e demonstrou-se de novo pronto. Estavam novamente perto, muito perto, um do outro. Alguns segundos depois, o ensanguentado vai, de punho cerrado, à garganta do outro, que a agarra enquanto tosse e respira como um asmático. O ensanguentado nem esperou pela recuperação do outro, não percebi como mas imobilizou-o rapidamente no chão com um joelho no chão e outro na caixa torácica do imobilizado, que continuava a tossir. O sangue que continuava a jorrar do nariz do imobilizador caía sobre a cara do outro. Ficaram-se naquelas posições e eu, que sustentava a respiração há algum tempo, voltei à minha realidade, percebi que tinha um cigarro na mão que não acendi. Peguei no isqueiro que já cabia dentro do maço e acendi. A chama do isqueiro chamou a atenção da visão periférica do imobilizador que agora olhava na minha direção, e eu, em pânico, fechei a janela da marquise, não querendo terminar sem camisa a lutar num parque-infantil. 

Curiosamente, nessa semana, não consegui dormir bem uma única noite; acabava por me levantar várias vezes durante a noite e ir até à marquise fumar um cigarro enquanto observava o parque-infantil. Continuo sem saber o que me manteve acordado nessa semana: se os meus problemas ou o daqueles dois homens.