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Crónica

O funeral pré-covid – uma visão

Nunca fui uma pessoa muito dada a funerais, por isso consigo lembrar-me ao detalhe daqueles a que fui. Sei exatamente o tipo de gente que flutuava em cada um e a energia de cada espaço. Foram quase todos no mesmo local o que me permite fazer uma avaliação quase académica da coisa. Num funeral em que o morto é muito amado e pobre, há um peso abismal no que diz respeito às emoções. Há muitas flores, muitos abraços, muito choro, muitos amigos que passam lá só para dizer um adeus e outros, que ficam a vigiar o caixão, enquanto os parentes vão comer qualquer coisa. E isto só varia consoante a idade ou a popularidade do morto. Nestes funerais nem temos tempo de olhar para ninguém, quanto mais avaliar se vão de preto, roxo ou cor de rosa. E, de vez em quando, aparece a vizinha, mirrada e linguaruda, que tem a lata de se aproximar dos parentes mais próximos e dizer: “Pois, é a vida! Mas olhe! Está com muito bom aspeto!”, como se fosse importante chegar ao céu bem-trajado e com a maquiagem composta. Depois do velório há toda uma procissão até ao cemitério, quais peregrinos no treze de maio, para ter a certeza que o morto fica bem, que o deixamos cuidado e bem embrulhado em sete palmos de terra, longe dos perigos da vida.

Já no funeral dum rico ou de uma figura proeminente da terra, a fila à volta da capela mortuária tem qualquer coisa de muralha da China, apresentando a cada passada os advogados engravatados, de fato preto, qualquer coisa de italiano e bem passado, que até batem continência ao chegar ao caixão; as madames que vêm arejar os visons (que ainda não são falsos porque foram comprados nos bons tempos da UE, e já estão há mais de trinta anos a conviver com as traças, fariam falta às traças); os pobres todos que foram ajudados pelo morto, e que se sentem na obrigação de vir dizer um adeus ao senhor Dr.; os inimigos do morto, que vêm ter a certeza que ele morreu mesmo, e o resto da sociedade da terra que vem mostrar que conhecia o morto e mostrar-se. 

O funeral dum rico é um drink ao fim da tarde, em que todos conversam e se mostram embora na realidade ninguém queira saber do morto. Uns trazem coroas enormes, os pobres umas rosas, pobre que é pobre não vai passar a vergonha de não levar um raminho, e os ricos não levam nada, ou são frugais ou mandam fazer o arranjo à florista mais cara dos arredores, que o vai lá entregar em mão. No fundo, só estão ali para uma reunião de negócios, para um networking. E o que falta sempre no funeral dum rico ou figura proeminente é sentimento, emoção, mas nunca falta conversa: sobre o Sr. Dr, sobre o que vamos fazer ao almoço, sobre como ganhar uns trocos. Quando acaba o velório vão, quais carneirinhos, encher a igreja para a missa e depois dispersam mal podem. Afinal o morto vai ser cremado e bom tom é regressarem a suas casas. Os poucos familiares diretos que acompanham o morto até ao crematório foram os únicos que choraram e mesmo dentre estes contam-se pelos dedos aqueles a quem o morto fará falta. As cinzas, no regresso, ficam em cima da lareira a vigiar os vivos porque, no fundo, no fundo, ninguém sabe o que lhes há-de fazer. O funeral alternativo, de enterro tradicional no cemitério, resume-se a uma fila de uns quantos gatos pingados, a distâncias bem contabilizadas, de nariz no ar, mortos que a coisa acabe para voltarem às suas vidinhas. Porque um funeral é sempre um incómodo na vida diária.

Os ricos e os pobres são muito diferentes no funeral, tanto no que levam vestido, como no sítio onde vão deitados, como na cerimónia que tiveram, como no povo que deixam. Só não são diferentes no local que os vai receber, e isso é que é importante.