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Elefante

O elefante dourado que costuma estar em cima da mesa mãe está deitado ao meu lado a desenhar-me o infinito na pele.

Pela minha janela entram os primeiros raios de sol. Gosto dessas horas em que ainda não é dia nem noite. A Noa hoje não dormiu comigo. Estranho… Ainda não abri os olhos. As drogas continuam o seu efeito quotidiano e eu tento dormir mais um bocado. Sinto um toque na pele e… um toque?! Estou sozinha. Abro os olhos naquele estilo drogado e dou um salto, ou melhor dizendo, mando-me da cama abaixo. O elefante dourado que costuma estar em cima da mesa mãe está deitado ao meu lado a desenhar-me o infinito na pele.

 – Que raio estás tu aí a fazer?! ­– Ainda não percebi se acreditei ou não no que estou a ouvir. Dou uma estalada em mim própria para garantir que não é efeito das drogas. Afinal, já tive Sir Anthony Hopkins de kilt na minha sala. Nop, é um elefante! Sim, estou de olhos abertos. Consigo ver as paredes rosa onde ele está encostado, o édredon de flores em tons frios, a bicicleta estática ao fundo, o guarda-fatos mel com baixos relevos de flores. Sim, estou acordada.

 Repeti para me convencer que ele estava ali – Que raio estás tu aí a fazer?!

-Vim te fazer uma visita, não posso?!

-É assim, filho! Se tens ideias de vir espalhar fertilidade, temos pena, já trouxeste um Siddhartha ao mundo, e eu não tenho vocação para criar o próximo Guru da Humanidade!

Num misto de curiosidade e incredulidade, comecei a admirar-lhe as decorações espalhadas pelo corpo, um lótus na testa, uma mandala no dorso, uma miríade de cores realçadas com o ouro. O bichinho era bonito.

 -Explica-me lá que vieste cá fazer?! Não queres fazer yoga, pois não? E podes contar que já tenho os chacras alinhados. Trazes sorte?! Dava jeito!

-Não…ouvi dizer que precisavas de memória. Posso-ta oferecer.

– Mas por que raio é que me haverias de oferecer memória, se me podes dar prosperidade, sucesso, sabedoria, proteção… se já te vi debaixo dum globo a suportar o mundo, se segundo os hindus até tinhas asas e brincavas nas nuvens? Não estou a perceber!

– Já ouviste a expressão “memória de elefante”? É verdade! Lembro-me de tudo e mais alguma coisa, desde o dia em que nasci até agora. Não gostavas de te lembrar da tua irmã, dos primeiros passos, de como estava o mar no dia em que te levaram para casa, do olhar da tua avó todas as vezes que te viu?

-Gostar até gostava! E como propões que faça isso? Injeção, comprimido, inalação?! Já levei de tudo!

-Fecha os olhos!

 Contrariada fechei os olhos, senti o som leve duns sinos, um pó que aposto seria dourado a cair levemente na minha pele e, numa fração de segundos, vi vários instantes da minha vida. As conversas com a minha irmã ainda na barriga da mãe, roubarem-na de mim, as tardes na esplanada com a avó, o gesso até ao pescoço, voltar a andar outra vez…todas as dores e alegrias da minha vida até este momento vieram até mim.

  Abri os olhos, não estava diferente, não me lembrava de tudo, só do Amor. O Elefante tinha razão. Ele já tinha desaparecido, mas eu não duvidei, nem por um momento, ele tinha-me dado o melhor presente de sempre.

Por Li Viana

Li Viana (Liliana Andreia Ribeiro Viana), gémea prematura, nascida a 3 de Maio de 1983. Nasceu numa casa a dois passos do mar, numa família emigrante literalmente espalhada pelo mundo. Com ela aprendeu a gostar de comida e de a cozinhar. A família do pai tem raízes na Sé do Porto, cidade onde estudou História da Arte e Ciências da Comunicação, na Faculdade de Letras. Gosta de dançar em bicos de pés na cozinha ao fazer o pequeno almoço, de ir à praia ao fim da tarde, quando não está lá ninguém, e ficar para ver o pôr do sol. Diz poesia onde a deixam, a poesia já lhe salvou a vida muitas vezes, como a arte tem por hábito. Não passa sem café, nem chocolate, nem cinema. Viaja para descobrir os locais que só conheceu nos livros. Gosta de fazer aquilo que lhe dizem que não pode e de cantar sozinha na rua. Não vive sem abraços. Usa uma estrela de David ao pescoço. Desde que se lembra sonha mudar o mundo, e é isso que tenta fazer todos os dias. É portadora de Paralisia Cerebral.

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