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Carta ao Amor Paralelo

Amor Paralelo:

Vi-te pela primeira vez num dia de sol, estavas encostado a um muro e o sol entrava por uma frincha que te iluminava o rosto. Ao de leve. O sol. Tu não. 

Tu, refletiste o raio e irrompeste-me alma dentro para ficar para sempre. Porque o amor fica. O amor serena. Encontrei em ti paixão, fogo e foi quando isso aconteceu que me destruíste ao ponto de correr mar dentro para ver se salvava alguma parte do corpo que incendiaste. E as ondas levaram as chamas trazendo a serenidade. Pensei, juro, que nesse dia fosse com o mar aquele raio de sol que te iluminou e com o qual me irrompeste. Porém, a luz ficou. Serenei e aceitei-te na minha vida de uma forma estranha, tão estranha que só pode pertencer a outro mundo. Neste, não há lugar. 

Aceitei e fui transparente. Aceitei e nenhuma dor mais aconteceu até hoje, o raio continua lá tu estás iluminado com ele, mas ao contrário daquele dia já não o refletes. Absorves, e eu não compreendo. 

Onde está a transparência que me fez aceitar? 

“A minha alma caiu partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.”

E eu?

Fiz-me “(…) em mais pedaços que a loiça que havia no vaso.”.

(Álvaro de Campos) 

É quando reparo isto, que saio desse mundo paralelo que nós criámos para juntar os pedaços. Quando saio, o portal fechou, tal qual triângulo das bermudas, só abre quando a magia acontece, como o raio de sol que te iluminou e refletindo esse raio o portal abriu. 

Entretanto, estou ocupada a juntar os pedaços da loiça. O amor ficou, estou com a mesma serenidade a juntar os pedaços da loiça até ver. 

Da sempre tua

Ilusão 

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4am

Durmo sobre o telemóvel.
Vestido, só do corpo
E das âncoras nas mãos
Que me prometem à terra
Aberta a receber-me.

Durmo entre o ecrã
E o relógio das quatro da madrugada.
Arrasto os ponteiros para me poder tapar,
Mas nem a matéria me cobre,
Nem eu a satisfaço.

Durmo por cima de todas as horas
Que perco dentro da caixinha preta,
Onde se esticam na vertical
Como plasticina que acelera o coração.

Deixo-me acordado,
A medir do corpo o que me falta,
Para esticar o que valho
Até tapar a luz desse monitor.

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Ao Coração

Caro Coração:

Percebeste agora que o amor tem várias formas e que nele cabem tantos seres. Não é tarde, mais vale agora do que quando parares de bater.

Percebeste que aceitar essas tantas formas te sossega, te faz encontrar mais motivos para continuar a bater. 

Sabes agora, que não precisas de estar em contato físico com o pé para o sentires contigo, porém que amas as suas mensagem que chegam através do sangue, o tal do mensageiro perfeito que nunca desilude nem deixa menagens por entregar. Não há falta de rede que lhe pegue, nem problemas tecnológicos, porque ele é orgânico. 

Felizmente, Coração, percebeste que orgânico é viver cada um dos momentos plenamente, em estado de graça. Sem estados de culpa. Felizmente, estás em paz com as pontas do corpo que não tocam mas sentes, com a alma que te alimenta e com as ideias que outrora pareceram turvas, confusas e que te faziam trabalhar num ritmo que já não estavas a aguentar e por isso ameaçaste parar. 

Sabes agora, que se parares afetas tantos, que nem mesmo passam por ti todos os dias. Sabes também que esses são parte de ti e te serenam, mesmo que longe e aparentemente sem contato. 

Meu Coração. 

Da tua Alma

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Conto

A Máscara

No Carnaval ninguém (ou melhor, quase ninguém) leva a mal.

O facto de se reservar um fim de semana em Fevereiro para poder andar camuflado no meio da multidão igualmente camuflada sempre me fascinou. Mais que não seja porque a tolerância para a brincadeira é maior e vigora a amnistia do disparate. O Carnaval na Europa é, regra geral, frio. Há um incentivo maior para sacudir o corpo para o aquecer. O futuro reserva-nos um clima um pouco mais ameno para os próximos Fevereiros. Isto tudo para dizer que as pessoas que desfilam na rua, bravando a chuva e o vento sempre me impressionam. 

Mas pelo que eu realmente esperava e me deixava desperto pela noite fora era a transmissão do desfile do Sambódromo do Rio. 

Sambódromo.  

O sufixo “dromo”, grego, significa “lugar onde se corre”. Por isso temos o Aeródromo – lugar onde os aviões “correm” para voar, o Autódromo – lugar onde os carros correm, o Hipódromo – onde os cavalos correm, o Velódromo – onde as bicicletas correm, para citar os mais conhecidos. Também temos o Salsódromo, onde se “corre” para dançar Salsa, uma palavra que nos chega da Colômbia onde a Salsa é Rainha e, num registo ligeiramente diferente, a Síndrome, onde várias coisas (o)correm ao mesmo tempo no corpo. No entanto para além de Sambódromo – lugar onde se corre para Sambar, o Brasil deu-nos também o Fumódromo – lugar onde se corre para fumar e decididamente o meu “dromo” favorito: Namoródromo: o lugar onde se corre para namorar. Este é o espaço, normalmente num dos cantos mais recatados da casa, interior ou exterior, onde se encontra o sossego para namorar em paz e em boa companhia (de preferência). Para mim pode ser ao lado de uma janela com uma vista serena e um chão almofadado. Se é sempre bom ter um porto seguro para nos refugiarmos, porque não para namorar?  

Mas divago… 

A forma de festejar o Carnaval difere de país para país: no Rio usa-se pouca roupa, em Nova Orleães cada um interpreta a versão mais devassa e satânica da sua figura histórica preferida; nas ilhas do Atlântico pinta-se o corpo de negro; em Ivrea as pessoas atiram laranjas umas contra as outras; em Colónia dá-se vida às fadas e aos duendes e, em Veneza cobre-se de fatos exuberantes que só não tapam os lábios e o nariz (para mais informações ver o filme Eyes Wide Shut).   

Usar uma máscara no Carnaval permite ocultar a identidade e ser um outro alguém. Entre o divino e o profano a escolha é farta e vasta. Por vezes as pessoas acreditam terem poderes como os super-heróis. No entanto, eu preocupo-me com as máscaras que usamos no dia-a-dia e que não esperam pelo Carnaval para aparecer: aquelas que estão permanentemente à vista de todos. O meu argumento é que uma máscara funciona como um atributo que permite atrair a atenção para outra coisa que não seja o teu aspeto físico. 

Eu explico: usar uma mala (do Michael, do Louis, da joaninha ou do cavalo anão), um casaco, um relógio, um perfume ou mesmo um Caniche/Chihuahua (ou qualquer outro animal de colo que caiba na bolsa) faz com que as pessoas se fixem no que lhes retém a atenção e de repente qualquer inabilidade fica invisível. 

Imaginemos alguém que vai começar a surfar e como não quer estar “out” desde o início vai comprar o melhor equipamento possível (normalmente reservado e apreciado por praticantes de longa data) e assim dará a impressão que já tem tudo: o clássico exibicionista. Ainda antes de molhar o pé já é o centro das atenções. 

Isto funciona para quase tudo e permite de um lado que uma conversa se inicie e que a primeira impressão seja de algo de interesse comum. Se a prosa for suficiente hábil nem é preciso molhar os pés… tenho uma amiga que repara nestas coisas e consegue sempre identificar os relógios mais raros que estão à nossa volta. Com isso inicia as conversas mais inesperadas. Common ground, o segredo para ultrapassar a primeira impressão e quebrar o gelo. O familiar atrai o que lhe é próximo para ficar tudo em família.

Para mim, que nunca aprendi a apreciar relógios a esse ponto, lembro-me sempre do meu amigo Oríadeu, que tinha a dança como máscara. Tímido e discreto, falava pouco e demorava-se até abrir a boca para deixar sair algo que não fosse um “Errrrr” hesitante e sem consequência através de um sorriso desmaiado. A máscara que usava fazia sair toda uma nova personalidade. Assim que ouvia as primeiras batidas da sua música preferida, atacava a pista com passos sincronizados ao ritmo da música desafiando a gravidade. Todas as suas imprecisões tornavam-se invisíveis pois apenas se via o bailarino a arrepiar a pista.  

Vendo-o dançar, vi de tudo: gritos, suspiros, aplausos, arrepios, lágrimas, sustos e abraços. Pessoas que assistiam nas laterais levantavam-se das cadeiras em aplausos e acorriam para agradecer a “exibição”. Na Universidade houve pessoas que decidiram aprender a dançar depois de o ver na pista, qual instrumento de evangelização à causa da dança. Se num casamento foi aclamado como “Cidadão Latino Honorário”, tal foi a forma como homenageou a América do Sul, noutro foi designado como “impróprio para consumo”, tal foi o abuso na pista. Houve pessoas que se transformaram, parcerias que se formaram, barreiras que se romperam e portas que se abriram. Num momento supremo ensinou um amigo a dançar para que este, ao surpreender a namorada, conseguisse salvar a sua relação. E conseguiu.

Oríadeu dança onde, quando e sempre que pode. Em casa, na sala de aula, nos corredores do trabalho, ao ar livre e sempre que a música começava a tocar. Para estar sempre pronto tinha uma muda de roupa e sapatos na bagageira do carro e num armário do escritório. Uma vez cruzei-me com ele no aeroporto: um grupo de músicos latino-americanos, acabados de chegar de uma viagem de longo-curso aproveitaram para fazer um concerto espontâneo enquanto esperavam pelas suas bagagens. Oríadeu lá estava, a convidar passageiras desprevenidas a dar uns passos antes de cruzar a alfândega e a susterem as suas vidas por uns momentos antes de seguirem para outros braços que não os seus. Os seus passos entranham-se nos corpos de quem com ele partilha uma dança ou um momento. No fundo, é apenas isso que ele oferece, um parêntesis de abstração antes do resto, antes da continuação. 

No entanto o que as pessoas esqueciam era que para Oríadeu, o ato de Dançar era apenas e somente sobre dançar. Era sobre essa partilha, sobre esses momentos. E sempre foi assim.

Até o dia em que ela, a Profetisa, apareceu. Para quem se ocupou em converter gente pagã à dança durante tanto tempo, Oríadeu voltou a ser discípulo. Naquele tempo, vê-los bailar era como observar dois corpos a conversar, onde cada gesto era uma pergunta e cada passo uma resposta. De certa forma era inspirador e mostrava ao que nós, os demais, poderíamos almejar. 

Com o passar do tempo e apesar de ter sido avisado, Oríadeu deixou de conseguir conter os seus anseios e, tal como Ícaro voou demasiado perto do Sol, queimando a sua máscara duma vez por todas.   

Desmascarado e com a boca descoberta, Oríadeu deu-se conta que há fôlegos que só se retomam quando dois corpos se juntam. E que há anseios que só se saciam quando duas bocas se amam.