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Poema

O tal do facto

poderia dizer que seria melhor que não tivesse acontecido

mas estaria a mentir com quantos dentes tenho na boca

com quantas células tenho no meu corpo

com quantos fios de cabelo tenho no meu couro cabeludo

com quantas vezes bateu o meu coração 

entre uma eternidade e outra

porque de facto é melhor a saudade 

do que a inexistência

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Crónica

Estou-me nas Tintas

Estou-me nas tintas!

Juro, nunca me soube tão bem materializar palavras como me está a saber com estas. 

Sabe tão bem que vou repetir: estou-me nas tintas. 

Nunca percebi bem porque é que estar nas tintas para algo é: não querer saber de todo sobre esse algo. Mas o facto é que é exatamente isso que quer dizer, assim sendo: estou-me nas tintas com muito orgulho. 

Estou-me nas tintas para o comportamento adequado, para o que pensam de mim, para o que devo ou não fazer. 

Descobri que a vida é curta, talvez porque olhei para a minha em perspetiva e falta-me tanto! Se morresse amanhã não teria cumprido o meu propósito e aproveitado este corpo para sentir o tanto que desejo. 

Se morresse amanhã, não teria estado o tempo que deveria com a minha família, teria ficado tanto por viver. 

Deixei a praia para amanhã, jantar fora para amanhã, a garrafa de champanhe para amanhã também. E descobri que se morresse amanhã poderia não conseguir executar toda a lista de coisas que deixei para amanhã. 

Que importa então o que pensam os outros de mim? Ou se me julgam interesseira, eles mesmos se interessaram por mim porque lhes fui útil e quando deixei de ser (por momentos que fosse) se desinteressaram. 

Quero saber do respeito pelo outro, está-me no sangue. Quero também saber do respeito por mim que nunca circulou neste corpo. Por tudo isto e tanto mais: estou-me nas tintas! 

Quero a experiência sensorial da vida: a própria vida! 

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Confessa-te

Confessa-te. 

Confessar faz bem à alma, mas paga para isso.

Infelizmente, bem tarde na vida percebi que é essencial ter uma hora por semana para nos confessarmos. 

Porém, ao contrário da religião católica, que só se interessa pelos pecados, aqui a ideia é vomitar em cima de alguém coisas que não passam da garganta para baixo, mas também não deslizam para cima. Prender palavras é bem mais perigoso do que ficar constipado, eu diria que mais grave que otite. Em principio otite trata-se com antibiótico e ao fim de três dias passa. Palavras presas causam cancro de alma. 

Frequentemente o Ser Humano acaba por vomitar palavras para cima de um amigo próximo, daqueles que chama de melhor amigo. As vizinhas também serviram esse propósito em tempos. Sendo que, era pouco aconselhável e hoje em dia dificilmente acontece porque vivemos em caixotes com portas blindadas à comunicação. 

Podemos, ainda fazer o que possivelmente eu mesma estou a fazer aqui, escrever um texto e vomitar essas palavras que estão a cultivar infeções de alma, no entanto, posso certificar-vos que já fiz disso tantas vezes e é necessário mais do que um texto para desinfetar ou mesmo curar o cancro de palavras presas. Medicina não é o meu forte, perdoem-me aqueles que se possam ofender com a minha comparação. 

Confesso que ficaria bem mais preocupa antes, há uns tempos, porque qualquer coisa que escrevesse, ficava eternizada e eu cultivava outra coisa para além de prisão de palavras: medo das palavras soltas dos outros. Sobretudo das que se impunham contra mim. 

Penso que palavras presas e diarreia de palavras possam ser doenças interligadas, mas esta espécie de crónica serve apenas para falar sobre os benefícios de uma garganta livre de palavras usando uma hora por semana para o ato de confissão. Sobre isto, estamos entendidos que é necessário manter a garganta livre de palavras, não queremos jamais ficar com infeções ou cancros de alma provocados por palavras encravadas. 

O último ponto e com esta me vou, é: paga, porque a vizinha do lado ou o melhor amigo/ a melhor amiga nunca se sabe quando se passará para o outro lado levando as tuas palavras com ele ou ela. Se pagares, pagas também o silêncio. 

Confessa-te e paga para isso, ficarás mais leve da carteira, da alma e da garganta!

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Poema

Timeline

 

tens ganas de me ver 

noutra vida

fazes-te sentir nesta

e agendas novo encontro

para a tal

próxima vida

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Carta ao Amor Paralelo

Amor Paralelo:

Vi-te pela primeira vez num dia de sol, estavas encostado a um muro e o sol entrava por uma frincha que te iluminava o rosto. Ao de leve. O sol. Tu não. 

Tu, refletiste o raio e irrompeste-me alma dentro para ficar para sempre. Porque o amor fica. O amor serena. Encontrei em ti paixão, fogo e foi quando isso aconteceu que me destruíste ao ponto de correr mar dentro para ver se salvava alguma parte do corpo que incendiaste. E as ondas levaram as chamas trazendo a serenidade. Pensei, juro, que nesse dia fosse com o mar aquele raio de sol que te iluminou e com o qual me irrompeste. Porém, a luz ficou. Serenei e aceitei-te na minha vida de uma forma estranha, tão estranha que só pode pertencer a outro mundo. Neste, não há lugar. 

Aceitei e fui transparente. Aceitei e nenhuma dor mais aconteceu até hoje, o raio continua lá tu estás iluminado com ele, mas ao contrário daquele dia já não o refletes. Absorves, e eu não compreendo. 

Onde está a transparência que me fez aceitar? 

“A minha alma caiu partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.”

E eu?

Fiz-me “(…) em mais pedaços que a loiça que havia no vaso.”.

(Álvaro de Campos) 

É quando reparo isto, que saio desse mundo paralelo que nós criámos para juntar os pedaços. Quando saio, o portal fechou, tal qual triângulo das bermudas, só abre quando a magia acontece, como o raio de sol que te iluminou e refletindo esse raio o portal abriu. 

Entretanto, estou ocupada a juntar os pedaços da loiça. O amor ficou, estou com a mesma serenidade a juntar os pedaços da loiça até ver. 

Da sempre tua

Ilusão 

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Ao Coração

Caro Coração:

Percebeste agora que o amor tem várias formas e que nele cabem tantos seres. Não é tarde, mais vale agora do que quando parares de bater.

Percebeste que aceitar essas tantas formas te sossega, te faz encontrar mais motivos para continuar a bater. 

Sabes agora, que não precisas de estar em contato físico com o pé para o sentires contigo, porém que amas as suas mensagem que chegam através do sangue, o tal do mensageiro perfeito que nunca desilude nem deixa menagens por entregar. Não há falta de rede que lhe pegue, nem problemas tecnológicos, porque ele é orgânico. 

Felizmente, Coração, percebeste que orgânico é viver cada um dos momentos plenamente, em estado de graça. Sem estados de culpa. Felizmente, estás em paz com as pontas do corpo que não tocam mas sentes, com a alma que te alimenta e com as ideias que outrora pareceram turvas, confusas e que te faziam trabalhar num ritmo que já não estavas a aguentar e por isso ameaçaste parar. 

Sabes agora, que se parares afetas tantos, que nem mesmo passam por ti todos os dias. Sabes também que esses são parte de ti e te serenam, mesmo que longe e aparentemente sem contato. 

Meu Coração. 

Da tua Alma

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Poema

Não tenho feitio para conversas sobre o tempo

não tenho feitio 

para conversas sobre o tempo

mesmo que o tempo seja bom

ou se por outro lado

tão mau que possa ser notícia

não tenho absolutamente feitio 

para conversas sobre o tempo

prefiro senti-lo

fazer dele um bom partido

e concretizá-la em ações


de boas conversas 

está o mundo cheio

ou será de intenções?

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Poema

Uma coisa banal como o reflexo

um instante

num instante 

num abrir e fechar de olhos 

encontro-me 

e percebo que já não me reconheço 

nesse instante 

abro e fecho os olhos 

incrédula por me ver

em me ver 

em me encontrar 

em instantes 

olho novamente 

observo 

e fecho os olhos para ver melhor

instantaneamente 

percebo que me ignorei 

voltei a ignorar 

e segui ignorando-me 

tantas vezes 

demais

por demais 

ao ponto de já não mais me reconhecer 

quando me vejo

revejo 

ou melhor 

quando abrindo os olhos

fecho 

para ver melhor

nesse instante 

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Conto

Sobreviver

“Vais conseguir sobreviver se um dia deixarmos de falar?” disse ele. O que ele não sabe é que já sobrevivi. 

Ouvi, incrédula, as suas palavras. Gostava de ter uma conta certa sobre quantos anos desde o dia em que me encostou à parede e me deixou sem ar, porém, são tantos que já nem mesmo consigo contar. Para ele, nitidamente parece que foi ontem, para mim sei que já nem mesmo pelos dedos se conta as vezes que estivemos juntos. Certo, contudo, que são vezes esporádicas, momentos sem compromisso, momentos de loucura. No entanto, são momentos, vários, muitos, diversos, demais, demasiados para serem ignorados. 

Sei precisamente como começou, onde começou, o que senti. Sei precisamente as palavras que se seguiram: “Pena que não se repita este momento por mais vezes.”. Ironicamente, anos volvidos, acabei de ouvir esta mesma frase. Desta vez acompanha por: “Vais conseguir sobreviver se um dia deixarmos de falar?”. A quem se dirigia esta pergunta? A mim ou a ti? A quem queres que ressoe? Em mim, ou em ti? A quem queres convencer do término destes encontros intensos, loucos e inebriantes? 

Vamos ver se nos entendemos de uma vez por todas, no dia em que te recusaste a descer do teu apartamento porque tinhas que cuidar do gato. Parece ridículo e é. Foi, para mim, portanto muito esclarecedor. Podes, agora, dizer que o gato foi operado. Podes ainda acrescentar que ele precisava de supervisão, que tinha medicação, que uma série de procedimentos seriam necessários. Ainda assim, não vais dizer que não poderias descer de tua casa para me acompanhar num café, no café do lado. Vais, portanto, dizer que nunca saías de casa, para nada. Absolutamente nada? Para mim foi o momento em que disse adeus à paixão que sentia por ti. De então para agora posso dizer-te que mudou uma coisa: aquilo que sinto por ti com relação àquilo que seria “nós”. 

Perguntaste-me, há alguns anos, num daqueles dias em que sabias que terminaríamos para sempre estes encontros “O que vês no futuro para nós?”. Disse e repito: não há nós, apenas momentos e uma ligação que nenhum de nós consegue explicar e que num raio de proximidade funciona como um íman. Ponto. 

Estou clara quanto a isto. Não gostas da forma como me tratas, eu agradeço que me trates desta forma, distante, isso mantém a distância. Não gostas que aconteça, apenas e só depois de acontecer, entendo, estamos na mesma página. Desagrade-me plenamente que aconteça, porém, apenas e friso apenas depois de acontecer. Porque nos falta transparência? Temos vindo a trabalhar na transparência, sendo que, gostava de dizer que vamos chegar lá, mas sinceramente não sei. Ainda assim, somos partes de um nós que nunca existiu e vamos caminhando paralelamente com desvios perpendiculares, numa equação matemática impossível e numa propriedade física inerente à nossa situação. 

O gato mia e eu sobrevivi. 

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Conto

Nó na garganta

Estava com um nó na garganta tão grande que me fui confessar e acabei com mais um pecado na lista. 

A verdade, sim, porque eu só conto a verdade, nós mulheres honradas e honestas só contamos a verdade, a verdade é que já não podia mais com este nó na garganta. Eu queria tanto falar com alguém e não podia, quero dizer: não conseguia. 

Eu tenho três grandes amigas, todos os dias tomamos chá às 5 horas da tarde. Todos os dias quando o sino da igreja aqui da vila toca as 5 badaladas eu e as minhas amigas saímos das nossas respetivas casas e vamos até ao banco do jardim. Todos os dias levamos o nosso cesto com o lanche das 5, cada uma está responsável por uma parte do lanche. A Adelaide leva o chá de limonete, a Juzefina leva o pão, a Maria das Dores traz bolachinhas e eu os doces e a manteiga. Não somos muito gulosas, seria um pecado exercer o pecado da gula. 

O banco é um pouco pequeno para quatro, felizmente o presidente da junta que nos vê lá sentadas, apertadas e sem condições nenhumas para lanchar mandou fazer outro banco em frente e agora somos quatro, duas em cada banco umas em frente das outras. Somos tão amigas que até combinamos na roupa. Almas gémeas, assim como irmãs de outra mãe que nunca, mas mesmo nunca se traíram. Ainda assim, quando chegou o dia de ter um nó na garganta não consegui falar com elas, tive realmente de me ir confessar ao padre da igreja da nossa querida vila, onde somos todos tão felizes. 

Cheguei e disse: “Senhor padre, perdoe-me porque pequei.”. 

Do outro lado, respondeu-me: “Sim, filha, qual o teu pecado?”. 

Bom, era tão difícil falar, por isso é que tinha um nó na garganta, se fosse fácil não teria a garganta apertada, não é? Era tão difícil, mas tão difícil que só assim consegui começar:

“Ai que me dói a garganta só de pensar.” – e assim que terminei esta frase suspirei de alívio. 

O senhor padre, contudo, não estava muito feliz, disse que doer a garganta não era pecado algum e que estava ali para ouvir pecados, se eu não tivesse nenhum para revelar que me pusesse a andar. Achei indelicado, porém aceitei e prontamente, como uma flecha de palavras a sair pela boca fora disse: “Eu só estarei feliz no dia em que souber que a Adelaide, a Juzefina e a Maria das Dores estiverem infelizes.”. 

Como assim infelizes? Pensei eu para mim, como terei eu conseguido dizer tal coisa? Sei, que sou boa pessoa, vivi a vida inteira a dar tudo de mim a todos, incluindo a elas e agora, quero tanto que elas sejam INFELIZES!

O senhor padre, naquele momento levantou-se e saiu do confessionário, com a cabeça baixa, parecia não aprovar as minhas palavras. Contudo, não é para isso que ele lá está para nos penitenciar e assim fazer desaparecer o meu pecado? Eu só quero ver-me livre desta culpa de pensar mal para elas. Se depois acontecer novamente, quero cá voltar e voltar a sentir o castigo que me liberta. E ele foi. Não podia deixá-lo ir. Fui atrás dele como uma sombra, segui-o chamando-o: “Senhor padre, senhor padre…”. E nada! Nem um sinal de perdão. 

Entrou naquilo que é a sua sala, olhou para uma estátua de Nossa Senhora, ali ficou durante uns segundos, com um olhar devoto e virou-se para mim. Eu cheia de medo do castigo que dali viria baixei a cabeça. Ele levantou-me pelo queixo e saiu o beijo mais intenso e penetrante que alguma vez provei.