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Conto

Sobre Aceitar (ou não)

Uma coisa é certa, só escrevemos ficção.

Nem a nossa história sabemos bem.

Cláudia Lucas Chéu

Chamo-me Maria, como aliás a maior parte das mulheres em Portugal. 

E dito isto, passo para a coisas que ninguém sabe. 

Quero falar sobre mim, mas não quero que saibam nada de mim. Parece uma loucura, é possível que seja que seja, de facto já nem mesmo estou aqui para julgar se é loucura ou não. Para mim há uma moda nova na minha vida: aceitar. 

Tudo começou quando nasci. 

Oiço poemas sobre mulheres que rimam, e gosto pouco. Tudo isto porque me faz lembrar dos poemas que eu fazia e rimavam. Ninguém nunca aplaudiu, pelo contrário: “Cala-te menina, tu não sabes o que dizes nem sabes o que fazes.”.

Mas eu não aceitei, abri a boca e continuei a escrever poemas que rimavam, sendo que às vezes colocava a variável de poemas sem rima. Não sei porquê, mas aconteceu. 

Entretanto, percebi que a música estava no corpo, e como a palavra sempre teve um encanto para mim eu fazia palavras encaixarem-nas nas músicas de outros. Mas ninguém achou piada, sendo que mais tarde vi tantos a fazer o mesmo e andaram aí nos palcos da vida. Pior, em adulta vi quem encaixasse muito mal as palavras na melodia e era aplaudido, reconhecido e a conta bancária ficava recheada por fazer, mal, aquilo que eu sempre fiz bem e que me pediram para calar. 

E eu?! Não aceitei.

Falei, sempre achei que tinha uma voz e que um , sim, isso mesmo, um dia iria ser ouvida e faria sentido para alguém. 

Mas deixei de cantar letras criadas por mim em músicas criadas por outros em alto e bom, possivelmente para não ferir o ouvido de alguém. 

Eu sentia que valia a pena continuar. 

E por isso, nunca calei. 

E fui por aí a escrever tentando acertar, a cantar sem ninguém ouvir e com isto arranjei uma missão: mostrar o quão importante era ser-se autêntico! 

Expliquei que autenticidade te leva ao sucesso, trouxe a importância de ter uma mensagem pessoa, uma marca, uma vontade, um desejo, um caminho e uma direção. 

Pus-me ao caminho no meu caminho e ouvi vezes sem conta que era demasiado bom para ser falado. 

Escutei. 

E pela primeira vez: calei-me de vez. 

Aceitei.

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A Máscara

No Carnaval ninguém (ou melhor, quase ninguém) leva a mal.

O facto de se reservar um fim de semana em Fevereiro para poder andar camuflado no meio da multidão igualmente camuflada sempre me fascinou. Mais que não seja porque a tolerância para a brincadeira é maior e vigora a amnistia do disparate. O Carnaval na Europa é, regra geral, frio. Há um incentivo maior para sacudir o corpo para o aquecer. O futuro reserva-nos um clima um pouco mais ameno para os próximos Fevereiros. Isto tudo para dizer que as pessoas que desfilam na rua, bravando a chuva e o vento sempre me impressionam. 

Mas pelo que eu realmente esperava e me deixava desperto pela noite fora era a transmissão do desfile do Sambódromo do Rio. 

Sambódromo.  

O sufixo “dromo”, grego, significa “lugar onde se corre”. Por isso temos o Aeródromo – lugar onde os aviões “correm” para voar, o Autódromo – lugar onde os carros correm, o Hipódromo – onde os cavalos correm, o Velódromo – onde as bicicletas correm, para citar os mais conhecidos. Também temos o Salsódromo, onde se “corre” para dançar Salsa, uma palavra que nos chega da Colômbia onde a Salsa é Rainha e, num registo ligeiramente diferente, a Síndrome, onde várias coisas (o)correm ao mesmo tempo no corpo. No entanto para além de Sambódromo – lugar onde se corre para Sambar, o Brasil deu-nos também o Fumódromo – lugar onde se corre para fumar e decididamente o meu “dromo” favorito: Namoródromo: o lugar onde se corre para namorar. Este é o espaço, normalmente num dos cantos mais recatados da casa, interior ou exterior, onde se encontra o sossego para namorar em paz e em boa companhia (de preferência). Para mim pode ser ao lado de uma janela com uma vista serena e um chão almofadado. Se é sempre bom ter um porto seguro para nos refugiarmos, porque não para namorar?  

Mas divago… 

A forma de festejar o Carnaval difere de país para país: no Rio usa-se pouca roupa, em Nova Orleães cada um interpreta a versão mais devassa e satânica da sua figura histórica preferida; nas ilhas do Atlântico pinta-se o corpo de negro; em Ivrea as pessoas atiram laranjas umas contra as outras; em Colónia dá-se vida às fadas e aos duendes e, em Veneza cobre-se de fatos exuberantes que só não tapam os lábios e o nariz (para mais informações ver o filme Eyes Wide Shut).   

Usar uma máscara no Carnaval permite ocultar a identidade e ser um outro alguém. Entre o divino e o profano a escolha é farta e vasta. Por vezes as pessoas acreditam terem poderes como os super-heróis. No entanto, eu preocupo-me com as máscaras que usamos no dia-a-dia e que não esperam pelo Carnaval para aparecer: aquelas que estão permanentemente à vista de todos. O meu argumento é que uma máscara funciona como um atributo que permite atrair a atenção para outra coisa que não seja o teu aspeto físico. 

Eu explico: usar uma mala (do Michael, do Louis, da joaninha ou do cavalo anão), um casaco, um relógio, um perfume ou mesmo um Caniche/Chihuahua (ou qualquer outro animal de colo que caiba na bolsa) faz com que as pessoas se fixem no que lhes retém a atenção e de repente qualquer inabilidade fica invisível. 

Imaginemos alguém que vai começar a surfar e como não quer estar “out” desde o início vai comprar o melhor equipamento possível (normalmente reservado e apreciado por praticantes de longa data) e assim dará a impressão que já tem tudo: o clássico exibicionista. Ainda antes de molhar o pé já é o centro das atenções. 

Isto funciona para quase tudo e permite de um lado que uma conversa se inicie e que a primeira impressão seja de algo de interesse comum. Se a prosa for suficiente hábil nem é preciso molhar os pés… tenho uma amiga que repara nestas coisas e consegue sempre identificar os relógios mais raros que estão à nossa volta. Com isso inicia as conversas mais inesperadas. Common ground, o segredo para ultrapassar a primeira impressão e quebrar o gelo. O familiar atrai o que lhe é próximo para ficar tudo em família.

Para mim, que nunca aprendi a apreciar relógios a esse ponto, lembro-me sempre do meu amigo Oríadeu, que tinha a dança como máscara. Tímido e discreto, falava pouco e demorava-se até abrir a boca para deixar sair algo que não fosse um “Errrrr” hesitante e sem consequência através de um sorriso desmaiado. A máscara que usava fazia sair toda uma nova personalidade. Assim que ouvia as primeiras batidas da sua música preferida, atacava a pista com passos sincronizados ao ritmo da música desafiando a gravidade. Todas as suas imprecisões tornavam-se invisíveis pois apenas se via o bailarino a arrepiar a pista.  

Vendo-o dançar, vi de tudo: gritos, suspiros, aplausos, arrepios, lágrimas, sustos e abraços. Pessoas que assistiam nas laterais levantavam-se das cadeiras em aplausos e acorriam para agradecer a “exibição”. Na Universidade houve pessoas que decidiram aprender a dançar depois de o ver na pista, qual instrumento de evangelização à causa da dança. Se num casamento foi aclamado como “Cidadão Latino Honorário”, tal foi a forma como homenageou a América do Sul, noutro foi designado como “impróprio para consumo”, tal foi o abuso na pista. Houve pessoas que se transformaram, parcerias que se formaram, barreiras que se romperam e portas que se abriram. Num momento supremo ensinou um amigo a dançar para que este, ao surpreender a namorada, conseguisse salvar a sua relação. E conseguiu.

Oríadeu dança onde, quando e sempre que pode. Em casa, na sala de aula, nos corredores do trabalho, ao ar livre e sempre que a música começava a tocar. Para estar sempre pronto tinha uma muda de roupa e sapatos na bagageira do carro e num armário do escritório. Uma vez cruzei-me com ele no aeroporto: um grupo de músicos latino-americanos, acabados de chegar de uma viagem de longo-curso aproveitaram para fazer um concerto espontâneo enquanto esperavam pelas suas bagagens. Oríadeu lá estava, a convidar passageiras desprevenidas a dar uns passos antes de cruzar a alfândega e a susterem as suas vidas por uns momentos antes de seguirem para outros braços que não os seus. Os seus passos entranham-se nos corpos de quem com ele partilha uma dança ou um momento. No fundo, é apenas isso que ele oferece, um parêntesis de abstração antes do resto, antes da continuação. 

No entanto o que as pessoas esqueciam era que para Oríadeu, o ato de Dançar era apenas e somente sobre dançar. Era sobre essa partilha, sobre esses momentos. E sempre foi assim.

Até o dia em que ela, a Profetisa, apareceu. Para quem se ocupou em converter gente pagã à dança durante tanto tempo, Oríadeu voltou a ser discípulo. Naquele tempo, vê-los bailar era como observar dois corpos a conversar, onde cada gesto era uma pergunta e cada passo uma resposta. De certa forma era inspirador e mostrava ao que nós, os demais, poderíamos almejar. 

Com o passar do tempo e apesar de ter sido avisado, Oríadeu deixou de conseguir conter os seus anseios e, tal como Ícaro voou demasiado perto do Sol, queimando a sua máscara duma vez por todas.   

Desmascarado e com a boca descoberta, Oríadeu deu-se conta que há fôlegos que só se retomam quando dois corpos se juntam. E que há anseios que só se saciam quando duas bocas se amam. 

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Sobreviver

“Vais conseguir sobreviver se um dia deixarmos de falar?” disse ele. O que ele não sabe é que já sobrevivi. 

Ouvi, incrédula, as suas palavras. Gostava de ter uma conta certa sobre quantos anos desde o dia em que me encostou à parede e me deixou sem ar, porém, são tantos que já nem mesmo consigo contar. Para ele, nitidamente parece que foi ontem, para mim sei que já nem mesmo pelos dedos se conta as vezes que estivemos juntos. Certo, contudo, que são vezes esporádicas, momentos sem compromisso, momentos de loucura. No entanto, são momentos, vários, muitos, diversos, demais, demasiados para serem ignorados. 

Sei precisamente como começou, onde começou, o que senti. Sei precisamente as palavras que se seguiram: “Pena que não se repita este momento por mais vezes.”. Ironicamente, anos volvidos, acabei de ouvir esta mesma frase. Desta vez acompanha por: “Vais conseguir sobreviver se um dia deixarmos de falar?”. A quem se dirigia esta pergunta? A mim ou a ti? A quem queres que ressoe? Em mim, ou em ti? A quem queres convencer do término destes encontros intensos, loucos e inebriantes? 

Vamos ver se nos entendemos de uma vez por todas, no dia em que te recusaste a descer do teu apartamento porque tinhas que cuidar do gato. Parece ridículo e é. Foi, para mim, portanto muito esclarecedor. Podes, agora, dizer que o gato foi operado. Podes ainda acrescentar que ele precisava de supervisão, que tinha medicação, que uma série de procedimentos seriam necessários. Ainda assim, não vais dizer que não poderias descer de tua casa para me acompanhar num café, no café do lado. Vais, portanto, dizer que nunca saías de casa, para nada. Absolutamente nada? Para mim foi o momento em que disse adeus à paixão que sentia por ti. De então para agora posso dizer-te que mudou uma coisa: aquilo que sinto por ti com relação àquilo que seria “nós”. 

Perguntaste-me, há alguns anos, num daqueles dias em que sabias que terminaríamos para sempre estes encontros “O que vês no futuro para nós?”. Disse e repito: não há nós, apenas momentos e uma ligação que nenhum de nós consegue explicar e que num raio de proximidade funciona como um íman. Ponto. 

Estou clara quanto a isto. Não gostas da forma como me tratas, eu agradeço que me trates desta forma, distante, isso mantém a distância. Não gostas que aconteça, apenas e só depois de acontecer, entendo, estamos na mesma página. Desagrade-me plenamente que aconteça, porém, apenas e friso apenas depois de acontecer. Porque nos falta transparência? Temos vindo a trabalhar na transparência, sendo que, gostava de dizer que vamos chegar lá, mas sinceramente não sei. Ainda assim, somos partes de um nós que nunca existiu e vamos caminhando paralelamente com desvios perpendiculares, numa equação matemática impossível e numa propriedade física inerente à nossa situação. 

O gato mia e eu sobrevivi. 

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Nó na garganta

Estava com um nó na garganta tão grande que me fui confessar e acabei com mais um pecado na lista. 

A verdade, sim, porque eu só conto a verdade, nós mulheres honradas e honestas só contamos a verdade, a verdade é que já não podia mais com este nó na garganta. Eu queria tanto falar com alguém e não podia, quero dizer: não conseguia. 

Eu tenho três grandes amigas, todos os dias tomamos chá às 5 horas da tarde. Todos os dias quando o sino da igreja aqui da vila toca as 5 badaladas eu e as minhas amigas saímos das nossas respetivas casas e vamos até ao banco do jardim. Todos os dias levamos o nosso cesto com o lanche das 5, cada uma está responsável por uma parte do lanche. A Adelaide leva o chá de limonete, a Juzefina leva o pão, a Maria das Dores traz bolachinhas e eu os doces e a manteiga. Não somos muito gulosas, seria um pecado exercer o pecado da gula. 

O banco é um pouco pequeno para quatro, felizmente o presidente da junta que nos vê lá sentadas, apertadas e sem condições nenhumas para lanchar mandou fazer outro banco em frente e agora somos quatro, duas em cada banco umas em frente das outras. Somos tão amigas que até combinamos na roupa. Almas gémeas, assim como irmãs de outra mãe que nunca, mas mesmo nunca se traíram. Ainda assim, quando chegou o dia de ter um nó na garganta não consegui falar com elas, tive realmente de me ir confessar ao padre da igreja da nossa querida vila, onde somos todos tão felizes. 

Cheguei e disse: “Senhor padre, perdoe-me porque pequei.”. 

Do outro lado, respondeu-me: “Sim, filha, qual o teu pecado?”. 

Bom, era tão difícil falar, por isso é que tinha um nó na garganta, se fosse fácil não teria a garganta apertada, não é? Era tão difícil, mas tão difícil que só assim consegui começar:

“Ai que me dói a garganta só de pensar.” – e assim que terminei esta frase suspirei de alívio. 

O senhor padre, contudo, não estava muito feliz, disse que doer a garganta não era pecado algum e que estava ali para ouvir pecados, se eu não tivesse nenhum para revelar que me pusesse a andar. Achei indelicado, porém aceitei e prontamente, como uma flecha de palavras a sair pela boca fora disse: “Eu só estarei feliz no dia em que souber que a Adelaide, a Juzefina e a Maria das Dores estiverem infelizes.”. 

Como assim infelizes? Pensei eu para mim, como terei eu conseguido dizer tal coisa? Sei, que sou boa pessoa, vivi a vida inteira a dar tudo de mim a todos, incluindo a elas e agora, quero tanto que elas sejam INFELIZES!

O senhor padre, naquele momento levantou-se e saiu do confessionário, com a cabeça baixa, parecia não aprovar as minhas palavras. Contudo, não é para isso que ele lá está para nos penitenciar e assim fazer desaparecer o meu pecado? Eu só quero ver-me livre desta culpa de pensar mal para elas. Se depois acontecer novamente, quero cá voltar e voltar a sentir o castigo que me liberta. E ele foi. Não podia deixá-lo ir. Fui atrás dele como uma sombra, segui-o chamando-o: “Senhor padre, senhor padre…”. E nada! Nem um sinal de perdão. 

Entrou naquilo que é a sua sala, olhou para uma estátua de Nossa Senhora, ali ficou durante uns segundos, com um olhar devoto e virou-se para mim. Eu cheia de medo do castigo que dali viria baixei a cabeça. Ele levantou-me pelo queixo e saiu o beijo mais intenso e penetrante que alguma vez provei. 

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Conto

Chamada

“Sou chamada à Terra sempre que o voo vai alto demais.” – disse Clarice num belo dia de sol na esplanada enquanto tomava o seu Gin preferido. 

Importa dizer que ao certo nem me recordo qual o contexto desta citação, lembro apenas dela e das imagens que me surgiram. Para além do óbvio, do Gin fresco no copo grande e largo, das gotas de água a deslizar pelo vidro, sinto gotas na minha testa. Não são os 40 graus que se fazem sentir, é aquele frio na barriga que faz escorregar as gotas na testa. 

Vá-se lá saber porquê, mas Clarice trouxe-me memórias que queria apagar e podem crer, quanto bebi para que acontecesse um apagão geral dentro de mim. Mas o álcool apaga apenas o que deve ficar. Bebi quase até destruir as células que há em mim, e ainda assim, manteve-se o frio que me faz derreter. 

Não tenho motivos para transgredir limites, também prefiro não definir todos os limites, muito menos pormenorizadamente. Quanto mais sei o que fazer, menos quero saber. Mais me floresce a vontade de transgredir e sou chamada à Terra cada vez que perto estou de passar esses limites. Quais? Nem mesmo sei. Sendo que os há, há. Se um dia ao acaso os passar, posso sempre justificar que não sabia. Ou será que terei a mesma resposta que o governo português dá aos seus cidadãos: “Não é permitido alegar desconhecimento da lei.”. Tenho eu o direito de alegar desconhecimento se nunca definir limites, se nunca os colocar num edital? Possivelmente. Para qualquer um dos lados. 

Sou chamada à Terra cada vez que as gotas me escorrem e os movimentos se descontrolam. Sou chamada à Terra quando por perto, por tão perto não ultrapasso o limite. E se bem que me perguntei qual é o limite, terei o cuidado de não o pronunciar, nem aqui nem em lado algum, para que nunca possa ser dito que foi fixado. Caso contrário não poderei declarar desconhecimento. Sou chamada portanto no momento no momento em que Clarice diz que é chamada à Terra sempre o que o voo é alto demais. 

E se por momentos eu até me deixo voar. O telemóvel toca. Como agora. Trimmm.

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Conto Poema

Lisboa

Cidade maior, que Ulisses quis para si, porto de abrigo para quem se espalha na tua costa e para onde o Tejo corre despedindo-se da vida. Tens a luz única dos iluminados.   

Lisboa, 

és mãe, madrasta, viúva e filha. Mãe para quem acolhes, madrasta para quem teve de partir e viúva de quem não mais voltou. És a filha esquecida que se tornou mulher e a quem a idade com ouro cobiça as tuas partes mais desejadas. 

Na pena do MEC, cada avião que te deixa faz birra e vira-te as costas. Na verdade, quem foge prefere não olhar para trás. 

Acolhes quem te procura e te conserta por dentro. Mesmo assim segues obra imperfeita e inacabada.

Deixas que outras línguas te pisem para seres um mero caso, um affair de fim de semana ou o quer que seja enquanto lhes serves tesouros em forma de nata.

És Santa Maria, Maior e de todos os santos que vagueiam pelas tuas sete colinas entre pecados e virtudes. Cada um com a sua agenda, a sua história, a sua verdade. Cada um procurando uma razão para ficar. Uma razão para voltar. 

Tens porta aberta para o Atlântico e daí para o mundo e deste o nome ao Santo que Pádua recusa nomear.

Há mais de seis séculos que recebes cheiros e sabores do mundo, num gesto simples, repetido a cada dia quando temperas com caril, canela e açafrão. 

De Belém a Santa Apolónia, cavalos de ferro atravessam e cruzam a floresta branca levando quem mudou o futuro e deixou alguém a encharcar as calçadas de sal por esperar tantas e tantas vezes. 

Por mais que o Tejo lute contra o mar, por mais que o chão trema, por mais que o Sul esteja à distância de um Cacilheiro, segues segura e serena, caminhando sem cair, navegando sem naufragar.

Lisboa, 

és a obra maior que se constrói dia a dia. Podem deixar-te, amar-te, agredir-te, mas ninguém te consegue resistir. 

Segues de braços abertos para cada visita, para cada regresso. Para cada recomeço.

Lisboa,

parti enquanto dormias, envolta no sossego da noite e no embalo do Tejo.

Atravessei-te antes que acordaras e me disseras para ficar.

Ao rasgar o céu vi o sol nascer do ar.

Disse-lhe: já vens tarde.

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Kumquat

Há pouco tempo pediram-me ajuda. Quando alguém pede ajuda, não vejo o porquê de a recusar. Seria desrespeitoso e nada gentil. Neste caso específico a minha amiga procurava ajuda para algo em que estava bloqueada há muito tempo e de onde não conseguia sair: encontrar uma nova palavra segura (vulgo safe word). É corrente, e sobretudo dependente do contexto, ter uma palavra que se possa usar de forma a interromper uma ação que possa estar a passar dos limites. De tanto usarmos o positivo/negativo (“Sim, Sim”, “Não, Não”), o ambíguo pára/arranca (“não, pára! Não pares!”) ou de invocarmos o divino: “Ó céus!”, “Meu Deus, meu Deus!” (que também pode passar por elogio) ou o “Jesus não olhes, Jesus não olhes!” que estas palavras e expressões caíram em desuso e já pouco surpreendem.

Mas voltemos ao pedido inicial. Como primeira sugestão de palavra segura disse: “Albatroz”. Essa ave de asas enormes que rareia nas nossas costas certamente que é capaz de chamar a atenção nos momentos em que ela, a atenção, é mais necessária. A sua reação não foi a esperada uma vez que tendo em conta o contexto essa palavra pode levar a uma interpretação de “dar asas” ou de expandir a situação atual. 

A minha segunda sugestão foi “Crisântemo. Uma vez mais a reação foi fria. Apesar de elevar o ambiente para um clima floral que aguça os sentidos da visão e do olfato, a proximidade com a palavra “Cris-to” levaria para outras solenidades invocando uma vez mais o divino para atividades pagãs. 

Pensei em “Unicórnio”, esse ser mitológico alado que deixa um rasto de arco-íris por onde passa, seja no chão ou no ar e que, de acordo com a lenda, apenas pode ser domado por alguém jovem e ainda não tocada pelo pecado original. Mas a esse termo, disse-me ela, falta um pouco de substância…   

Seguiu-se a palavra “Paralelepípedo”. Não sei como esta palavra vos soa ao ouvido, mas o simples facto de mencionar uma forma geométrica transporta-me a aulas de expressão visual e de matemática, coisas que nada têm a ver com o contexto em questão, logo propícias à pausa e reflexão. Também não consegui fazer vingar o meu ponto de vista. A palavra segura, disse-me ela, não se pode referir a algo tão frio e esquemático que não deixe espaço para uma possível continuação se assim for o caso. Essa palavra deve ser um parêntesis fonético que obrigue a uma pausa momentânea. 

Estava prestes a desistir quando dei a minha quinta e última sugestão: “Kumquat”! Ainda que intrigada, a palavra não foi descartada de imediato. É uma palavra inusitada que está fora de todo e qualquer contexto, que surpreende, mas ainda assim deixa água na boca.

Pensem bem nesta palavra: “Kumquat”. Podem repeti-la e sentir a forma como aproxima os lábios, enrola a língua e por fim abre-nos o céu da boca. Sempre pensei que era alguém, a falar depressa e a tentar dizer “como qual”. Mas não, é apenas o nome de um fruto perfumado e cítrico. Uma laranja japonesa. Ou melhor, uma laranja-anã japonesa. 

Das palavras dizemos sempre que o vento as leva. É verdade, mas esquecemo-nos que esse mesmo vento também nos trouxe muitas palavras, quer empurrando velas ou soprando as asas de um avião. O Kumquat foi uma dessas. Chegou e ficou por cá. Quer nos campos quer a decorar varandas arejadas e ensolaradas. Está longe de casa, mas ainda assim acostumou-se a estas costas e por aqui ficou. Como tudo o que é novo há sempre uma desconfiança inicial (normal quando não se conhece) mas o tempo transforma a distância do desconhecido numa proximidade familiar. Hoje podemos encontrá-lo em quase todas as lojas de jardinagem e bricolage e sobretudo nos bares e cocktails da moda, onde o mini está “In”! 

Como fruta de pequeno porte, o Kumquat esconde poucos segredos para além do sumo e das sementes. Perde apenas para o morango – o único fruto que tem as sementes do lado de fora. Se pusermos de lado o seu tamanho, tem quase tudo para passar por uma laranja. Cortando-a ao meio a cor, a casca e o aspeto do gomo são quase os mesmos. Porém, há que ter cuidado para que as aparências não nos enganem. Neste pequeno fruto a doçura está na casca e não nos gomos. Muito pouco se pode tirar do seu interior. Pode ser comido por inteiro (o tom mais alaranjado deixa antever o grau de maturação) uma vez que o suco é mínimo e sorvido rapidamente pelos recantos mais escondidos da boca. A semente, no entanto, tem o mesmo tamanho e gosto amargo que a sua prima maior. A evitar. 

Custa habituar-se ao Kumquat. Quer à palavra, quer ao fruto. Não faz sentido ter uma laranja daquele tamanho, que dá tanto trabalho e que se come por inteiro, só para enfeitar. Sem falar que vindo do Japão não posso descartar que fosse uma pancada do tipo meter um gato dentro de um frasco de vidro para o ver crescer de forma “transparente” ou de plantar um morango a tal ponto perfeito que se pode vender ao preço de um cristal de edição limitada da Swaroski. O Kumquat tem o seu espaço e o seu valor. Prova disso é que hoje encontramo-lo em todo o lado.

Ela escutou a minha longa explicação e vi a sua cara desenhar um sorriso. As virtudes do Kumquat, palavra e fruto, foram reconhecidas.  

Ela agradeceu o exercício, considerou “Paralelepípedo” uma escolha “estranha”, arrumou as suas coisas e, antes de bater com a porta perguntou-me onde era o mercado mais próximo. Para usar a palavra de consciência tranquila é necessário tomar conhecimento (e gosto) de causa.

O Kumquat agradece. 

PS: Para descobrir outras palavras trazidas pelo vento, visite a página do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (disponível em: https://voc.cplp.org/index.php) onde encontram todas as palavras que o vento trouxe para aqui e para o mundo. 

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O Vazio

Ela perdeu um amante e esse era o vazio mais difícil de preencher.

Margarida passou uma década a trabalhar. Não tinha marido, nem filhos e estava feliz com isso. Era sua ambição ter uma carreira. Estava decidida e nada a abalava. 

Não a abalou as vezes que lhe perguntaram porque não tinha filhos, nem mesmo as que lhe disseram “Vais-te arrepender se não os tiveres”. Nada de abalos por ouvir que não era madura o suficiente por não ser mãe, ou mesmo quando as perguntas eram: “E marido? Para quando?”. 

Tudo o que interessava a Margarida era a carreira. Então, de facto, era abalada quando não lhe davam o valor que merecia. Quando a ultrapassavam, ou se por acaso levavam os louros que lhe pertenciam. Aí sim, Margarida virava fera. Não era para menos. Tinha 26 anos, nunca reprovou um ano, fez licenciatura, mestrado, doutoramento, recebeu bolsas de mérito e passou todos os segundos da sua vida dedicados ao laboratório.

Pesquisou para aprender. Defendeu uma tese e uma outra pesquisa, defendeu ainda outra tese e uma nova pesquisa só não se soube defender. 

Durante uma carreira exemplar foi dando o seu trabalho, ideias, suor, lágrimas e até as suas alegrias em prol da ciência. Achava desde de muito nova que seria uma cientista reconhecida. Queria de facto ajudar o mundo com as suas descobertas. Certo, que queria uma carreira, mas também a queria com significado: ajudar o mundo. 

Aos 26 continuou de bolsa em bolsa desta vez por sistema, investigação em investigação. Sentia-se muito sozinha, porém, a certa altura, um colega de trabalho aproximou-se e passaram a partilhar os seus dias.

Dos dias, passaram a partilhar trabalho, ideias e sucessos. Tudo parecia perfeito. Uma dupla infalível, um casamento perfeito: dois cientistas em prol da ciência com carreiras em ascensão. 

A dado momento, e porque não eram só as carreiras que cresciam, também as partilhas aumentaram. Os dias de Margarida e Diogo passaram a ser mais do que trabalho, ainda que Margarida se mantivesse fiel a si mesma: nada de amor/ casamento e muito menos filhos. 

10 anos passaram num abrir e fechar de olhos. E aos 36 Margarida percebeu que Diogo desapareceu de um dia para outro, levando com ele os louros de todo um trabalho. 10 anos dos quais, 8 juntos, voaram com Diogo. 

Ela, com 36 anos, certa das suas decisões, certa de que faria tudo de novo estava num buraco do qual não via fundo. É claro que não faltaram dedos a apontar: tivesses filhos estarias feliz, estás velha para arranjar marido agora, coitada da triste Margarida que escolheu ser infeliz a ter família. 

Enganam-se as más línguas. Margarida estava sim no meio do vazio, porque perdeu 10 anos, trabalho, embora não de conhecimento, um amigo, ou pelo menos assim compreendia e um amante. Sentia-se pior ainda porque era o vazio do amante que mais difícil estava de preencher. 

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Janela Aberta

O meu quarto foi sempre o meu maior espaço. É o espaço onde tudo me é familiar e onde mais ninguém sabe onde escondemos o que nos é mais valioso. Guardamos segredos no fundo das gavetas, por baixo de livros e cadernos antigos. Guardamos calendários, blocos e memórias de quem nos roubou o olhar. No meu quarto, jogo sempre em casa. 

Apesar de conhecer todos os recantos, a parte que mais me fascinava era a janela: a janela do meu quarto deu-me mundo. Eu sei que dava apenas para o descampado onde jogava à bola ao fim de semana, mas dessa janela eu sentia o pulso do bairro e até do país senão vejamos: conseguia ver quando é que havia fila para o supermercado pois as pessoas estavam à porta para entrar; sabia se era fim de semana pois o vizinho do prédio em frente estava a lavar o carro para depois se esticar e ler o Expresso durante o resto da manhã enquanto ouvia a rádio em alto e bom som e; também sabia se havia vento em Lisboa uma vez que os aviões sobrevoavam a minha casa de e para a pista 17 em vez de alongarem a costa do Espichel até ao Monte da Caparica. 

À minha janela chegavam os sons do primeiro centro comercial que abriu em Portugal. A música que entrava era bastante animada e claro está, decorei letra e ritmo. Quando uma vez a professora da 4ª classe me perguntou quem queria cantar alguma coisa antes de dar a aula por encerrada, cheguei-me à frente. A minha inocente consciência politica dos 9 anos não sabia o que era censura, mas assim que as primeiras notas saíram da minha garganta fiquei a conhecer pois a professora, que também vivia ao lado do dito centro comercial e ouvia a mesma música dia e noite, não era fã como eu e eis que salta da sua cadeira e pega na régua de madeira para me achatar as mãos. 

Virado para a minha janela li e estudei. Estudei, é certo, mas o meu olhar perdia-se para a rua e para o céu. Uma manhã perdi-me nas leituras e não fui ter com os meus amigos que foram à inauguração do hipermercado. Fiquei a ler em frente à janela. Enquanto lia sobre o meio-físico e social, vi as luzes das ambulâncias que foram socorrer quem levou com o telhado que ruíu com a chuva acumulada enquanto estreavam quando comprava pela primeira vez na grande superfície.    

Esta é a janela da qual me recordo mais, pois era minha. Tive outras que me davam vista para o mar, para a serra ou para o museu. Dormir embalado pelo som do Ondas do Mar foi um privilégio, se bem que o som do oceano era frequentemente abafado pelo vento. Ter a vista para a serra permitiu ver o sol a acordar atrás da montanha após largas noites a observar charcos de estrelas e ver como duas vidas podem ser condenadas numa noite. Já da janela para o museu o complicado era manter a concentração devido aos OVNI’s que por ali pairavam. Presságio ou não, anos depois esse mesmo museu foi promovido a ícone por albergar super-heróis.  

Ter um lugar à janela dá-nos uma perspetiva maior ao nosso redor. Seja no avião, autocarro expresso ou comboio, a janela tem qualquer coisa a mais (não é por acaso que um dos hashtags da CP é #Lugarajanela). A janela do comboio está sempre em movimento. Quando se podia abri-la era divertido pôr as cortinas e a cabeça de fora para sentir o vento na cara… tudo muito engraçado até aparecer um comboio em sentido inverso. Para se aproveitar a janela na linha da Beira Baixa ou do Douro há que ser estratégico: com sorte temos uma vista para o rio enquanto a linha serpenteia a água, caso contrário temos um lindo close-up do recorte da pedra. Da janela do avião há um momento muito particular: logo após a descolagem olhamos para fora para ver o que fica para trás. Eu penso que nos dá tempo para um último “até já” ou “adeus” consoante o caso. Do avião (provavelmente a minha janela de um meio de transporte preferida) deixamos de estar em pé de igualdade com a superficie. Temos perpetiva e a dimensão real das coisas. 

Há estas janelas onde somos espetadores passivos e vemos a vida a acontecer. São janelas que nos movem com elas. No entanto há janelas que requerem a nossa ação, são as janelas de oportunidade. Estas, infelizmente, nem sempre são visíveis e muitas vezes só nos apercebemos depois do momento passar. A diferença destas para as outras janelas é que não têm o vidro onde também podemos ver o nosso reflexo. Se passarmos por um um túnel de comboio ou na estrada ou se viajamos de noite de avião, temos a nossa cara a devolver-nos o olhar. Na janela de oportunidade tudo acontece, tudo se decide  e tudo se perde sem filtros. E uma vez fechada esta janela, não há forma de a voltar a abrir. 

Olhando por qualquer destas janelas, retenho a forma de como a paisagem mudou. O meu campo de futebol/basquetebol deu lugar (literalmente) a um parque de estacionamento. As folhas caem para que outras, mais fortes, brotem e cresçam dando continuidade à vida. Sempre me focalizei no que via lá fora, na distância, até que há pouco vi que o reflexo que a janela me devolve mudou e quase não reconheço aquela pessoa que tem os meus olhos. 

Engraçado, nunca tinha notado nisso. 

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IPERA

Atenção este texto contém spoilers! 

Faço uma declaração de interesses: um dos meus albúns preferidos de sempre é sem dúvida o “1° de Agosto Ao Vivo no RRV (Rock Rendez-Vous)” dos Xutos & Pontapés. Sejam vocês ouvintes da altura ou recém-chegados ao culto dos Xutos este é um album incontornável. O som leva-nos àquela noite de 1984 onde uma banda, já com 6 anos de estrada, registou um concerto que marcou um momento a caminho da consagração que chegaria mais tarde com os discos “Circo de Feras” e “88”. O álbum RRV contém aquela energia crua, eletrizante e bruta das músicas feitas para serem ouvidas com o som bem alto ou com auscultadores com redução de ruído que faz a música sobressair ainda mais. Canções incontornáveis como “O Homem do Leme”, “Se Me Amas”, “Conta-me Histórias” ou “Barcos Gregos” apareceram no RRV pela primeira vez, ainda antes de serem editadas num disco LP.

Ainda que este seja o meu disco preferido dos Xutos, há outras canções do seu repertório que me movem pelas mais diversas razões. Por exemplo não acredito que alguém consiga ouvir o “Dá um mergulho no mar” ou o “Ai se ele cai” sem que uma força sobre-humana o faça começar a saltar compulsivamente. A mesma homenagem pode ser feita à longa introdução do “N’América” onde o baixo, a guitarra elétrica e o saxofone discutem durante largos minutos sobre quem irá arriscar dar a palavra ao Tim; ou ainda ao incontornável “Para Ti Maria” que mediu o pulso ao desenvolvimento das estradas: se em 1988 demorávamos 9 horas para ir de Lisboa a Bragança, hoje em dia a mesma viagem faz-se em 4 horas e 45 minutos de carro (segundo o Google Maps) ou em menos de 1 hora de avião. E já que falamos em Marias, posso culminar com o “Avé Maria” que me era sempre dedicada em voz alta pelos colegas do Basquetebol que implicavam comigo por chegar atrasado aos treinos de Domingo porque vinha da catequese. 

Antes que me perca demasiado, queria apenas ressalvar que do reportório dos Xutos há uma música em particular que me sempre me intrigou. E isto vem de alguém que se intriga com coisas como o nome das ruas. Um pequeno parêntesis: desde cedo que me pergunto o que é que temos de fazer para dar o nome a uma rua. A primeira razão, está claro, é que já falecemos. A segunda é ter feito algo de absolutamente notável. Por essa razão, e muito antes do Wikipedia, costumava apontar os nomes das ruas e ia depois à biblioteca investigar quem eram aquelas pessoas.   

Mas voltando aos Xutos e à sua canção intrigante. Estou a falar de “As Torres da Cinciberlândia” que aparece no álbum “88”. Esta canção leva-me a um lugar místico e etéreo. Vivendo na margem sul a “Cinciberlândia” sempre me pareceu um lugar real ainda que distante. Eu, tal como narra a canção, passei largos anos à procura das ditas torres. Para mim eram torres que só poderiam servir um fim dúbio: comunicar com outros planetas (sim, a minha mente vai logo para ali). Afinal porque razão existiria um sítio tão secreto e avançado que não tivesse esse propósito? Torres que apenas brilham? As minhas suspeitas seria confirmadas alguns anos mais tarde quando apareceu a série “Ficheiros Secretos”. Se isto era possível nos EUA porque não em Portugal? Tudo bem que quando os extraterrestres visitam o nosso planeta passam primeiro pelos EUA (e isto está documentado de forma exaustiva), mas tendo Portugal ganho tantos Óscares de turismo, uma vista a este retângulo até que vale a pena! E claro está, não ajudou nada ver aquele documentário da RTP que falava dos “ficheiros secretos portugueses” e cujas amostras, que estavam guardadas no Museu Nacional de História Natural e de Ciência, desapareceram num incêndio de origem duvidosa. No fundo a minha imaginação levou-me a acreditar que as torres funcionavam como um portal para outro propósito que não a comunicação. 

Anos depois consegui enfim encontrar a Cinciberlândia, numa altura em que já tinham retirado as famosas torres que, afinal não eram mais do que antenas de comunicação. E sim, a Cinciberlândia servia outro fim que não a comunicação (Spoiler Alert): neste caso era a defesa atlântica uma vez que era um posto de comando da NATO de nome CINCIBERLANT. Hoje em dia tem outro nome: NCIA. Imagino que há uma série policial prestes a sair que relata as aventuras dos agentes secretos a trabalhar em Oeiras e a descansar entre a praia da Torre e o forte de S. Julião da Barra (fica aqui a sugestão: NCIA: Oeiras). Tudo isto para vos dizer que com esta descoberta perdi um pouco da ilusão que acompanhava a canção. Afinal o portal com que eu contava não era exatamente o esperado.

Mais tarde, a vida reservou-me o contato com um portal transdimensional. E com este sim, tive a possibilidade de o utilizar de forma frequente e fiquei a conhecer o seu nome: IPERA. Este portal está literalmente no ar (é um ponto GPS de navegação aérea) e serve tanto de entrada como de saída. Imaginem uma escadaria que nos levam a uma porta, só que a porta está a 10km de altura. Para quem viaja de avião entre a Europa e Cabo Verde este portal marca o início da descida e os 30 minutos que faltam para chegar. 

A minha primeira passagem por esse portal foi a medo. Afinal não sabia o que me esperava lá em baixo. Quando estamos no ar tudo é relativo e ao viajar deixamos tudo (incluindo os problemas) para trás. Ainda assim assustava-me ser o desconhecido e só ter como referência as histórias de quem já lá tinha estado e não me parecia possível serem todas coincidentes e positivas. Ao escutar o som dos reatores a retrairem e sentir o avião iniciar a sua descida entrei em modo “passageiro concentrado” e a pensar nos passos seguintes: haverá muita fila para o controle de passaporte, a bagagem vai chegar ou se o táxi vai demorar muito tempo. Estava eu a tentar organizar os meus pensamentos quando a senhora que está ao meu lado entrega-me o seu recém-nascido para os braços e diz-me para o segurar pois quer aproveitar o tempo que falta para ir à casa de banho. Foi aí que me dei conta: gente que confia os seus primogénitos a estranhos em aviões só podem ser seres humanos de coração aberto. 

O avião aterrou e durante os quatro anos seguintes pude comprovar que as histórias que tinha ouvido na verdade não faziam jus ao que vivenciei. IPERA tornou-se o meu ponto de chegada e de partida oficial (tecnicamente este ponto marca o inicio do espaço aéreo controlado por Cabo Verde). Nas viagens recorrentes tanto controlava a ansiedade para chegar a IPERA ou o certo aperto quando a deixava na viagem de sentido inverso. A viagem de avião sempre tinha entusiasmo, tanto ao início como ao fim. 

Passados quatro anos chegou a hora da partida definitiva. Esta iniciou-se em terra. Despedi-me no aeroporto com um abraço apertado, terno e adiado. De seguida enfrentei uma subida dolorosa até IPERA. Por alguma razão o avião voa praticamente em linha reta até sair lá em cima, como se fosse o fim de um túnel muito, muito comprido. Foi assim que cruzei o portal pela última vez.   

Como dizia o Tim, “já lá voltei e busquei o lugar” e há pouco tempo, a caminho do Atlântico Sul, passei ao lado do portal mas não desci para as ilhas da Morabeza. Ainda assim acordei uns minutos antes, servi um espumante e brindei à sua passagem.

IPERA: N20°21.91′ W20°41.98′