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2023

O meu 2023 estava sob aviso amarelo, quando ainda vivia os resquícios de 2022. Dois mil e vinte e dois, escrito letra a letra é um ano que o papel (ou, melhor, o ecrã) me devolve em desamparo. Nunca me hei-de habituar ao passar do tempo, tão rápido passa que depressa parece tão distante. Talvez por isso tenha sentido a necessidade estranha de escrever isto neste preciso momento. Deveria estar a trabalhar, mas não tiro muito tempo para refletir no que aconteceu ou tem acontecido. Tenho a tendência para me deitar à margem do que acontece, sem observar com grande atenção o que se dá nas correntes daquilo que se passa. Talvez possamos começar por aqui com o que esteve de errado em 2023, ou talvez possa prolongar um pouco mais esta introdução. 

Terei de escolher a segunda opção, lamentavelmente. A verdade é que não poderei avançar sem antes avisar que, neste ponto, não poderei fazer promessas ou garantias sobre o que irei escrever a seguir. Nem sequer consigo assegurar que é para alguém que escrevo, pois quem sabe este não acabará por ser mais uma tentativa falhada de reatar a minha paixão pela escrita. Por esse motivo, peço apenas paciência ao longo desta reflexão, poderei perder-me ou até mesmo perder o sentido, e não quero que se assustem porque hoje, a 29 de dezembro de 2023, estou bem. 

Gostava de ter algo a que me agarrar para começar este texto, mas não mantenho diários e tenho tido uma vida demasiado corrida para apontar os meus pensamentos em algum lugar para além das notas de voz do telemóvel. Um facto curioso sobre estas gravações é que elas ficam automaticamente guardadas com os nomes das ruas, avenidas e lugares em que estou quando as gravo. Por exemplo, uma das primeiras notas que gravei este ano data o dia 1 de janeiro e ficou guardada com o nome de um restaurante de sushi em Alvalade. Nela, tenho a voz cansada das celebrações todas que a essa altura do ano dizem respeito e, apesar de não me recordar das suas circunstâncias específicas, sei que ansiava muito por ir para casa repousar. Ao gravar, cantei uns versos românticos sobre querer passear à margem do rio, abraçar e beijar a pessoa que eu amo – ele mora ali perto e havíamos passado muitos dias na companhia um do outro. Cantava porque 2022 tinha terminado numa nota de amor e eu começava um novo ano com o coração em transbordo do que há de melhor.

Mais à frente, numa nota de catorze de fevereiro, na Avenida das Forças Armadas, ouço-me cantar no carro. Também tinha a voz cansada mas, neste caso, cantava em suspiro, num daqueles tons que sei que me levam a torcer a cara em dor. No meu canto, perguntava:

Cadê a fonte de beber, a fonte de sonhar, a fonte de viver 

Cadê a fonte em que bebi, a fonte em que sonhei, a fonte que eu perdi.

Foi por volta desta altura que deixei de dormir. Se não me engano, esse foi precisamente o dia em que levava mais de 48 horas sem desligar o cérebro. Foram dias em que eu chegava à noite com perguntas e ela devolvia-me horas para pensar. 

Tinha passado os meses anteriores a adiantar o Estado da Arte da minha tese de mestrado, sem grandes saídas ou convívios que me pudessem distrair e recordar que a vida tem coisas que valem mais a pena que um diploma. Tinha-me proposto a fazer um projeto visual, do qual fazia também parte uma componente teórica e, nessa altura, estava a desenvolver o storyboard daquilo que viria a ser o meu projeto. Estava entusiasmado porque nunca tinha tido grandes dificuldades nos estudos e, ao longo de todo o ciclo, tinha tido resultados suficientes para me acamar em seguranças.

Eu queria falar de como vejo a sociedade de trabalho em que estava inserido. Tinha muito interesse em explorar a dualidade entre querer contribuir artisticamente para um mundo em que se mede sucesso pelas palpitações cardíacas. Curiosamente, foi neste processo que descobri que o meu coração tinha deixado de bater da mesma forma. As insónias chegaram no frame específico de um plano, em que me desenhava sentado à secretária, num cenário que simulava um escritório. Foi nesse desenho que me dei conta de como me via, inserido na vida que tinha escolhido para mim, mas que eu insistia que me tinha escolhido ela a mim. Foi também nesse desenho que me dei conta que o que eu queria contar no meu projeto era uma história altamente defeituosa e que a minha visão para ela não era nada mais, nada menos, que ilusória. Foi nesse desenho que deixei de dormir.

Se me perguntarem por onde andei entre fevereiro e abril, a verdade é que não sei responder. Recorreria às minhas notas de voz para me auxiliarem mas, ao que parece, foi um período bastante silencioso. Sei que em fevereiro fiz uma viagem a Malta com família e talvez o saiba porque tenho fotografias disso e guardo na memória a palete de cores desses dias: o céu azul e o castanho terra dos edifícios. Sei também que, nesse período, deixei de mexer na tese porque a queria tirar da cabeça, para que pudesse descansar em paz. Contudo, cada canto do meu cérebro estava absolutamente contaminado com a minha imagem à secretária, com os autores do Estado da Arte e com o trabalho que queria cantar. 

Trabalho, trabalho, trabalho. 

Foi o que fiz, ao fim e ao cabo, nesses meses. Tinha acumulado clientes e mantinha o meu emprego a tempo inteiro. Procurava ir ao ginásio e ocupava todo o meu tempo livre a conviver nos bares, nos cafés, nas ruas e nas cidades que tinham bares, cafés e ruas. Ao contrário do que canta o B Fachada, não me sobrava tempo nenhum para cantar. Nesse período, o avanço da tese não estava a correr bem e a cama de confiança que as minhas boas notas me tinham feito parecia quebrada. Revirava-me nela pela noite e acordava acelerado a cada vinte minutos em que o meu coração parecia deixar de saber bater. Quando não tentava dormir, tentava estar acordado para trabalhar ao longo de todas as minhas horas longe da cama. 

Algo curioso sobre este ano é que, apesar de o guardar em mim como, possivelmente, o ano mais difícil da minha vida, poucas são as vezes que me recordo de chorar. Em abril, sei que me emocionei numa viagem que fiz a Itália, destinada ao passeio e ao namoro. Olhando para trás, esses dias foram um ilhéu no meu ano, no qual pude adormecer sem antecipar e acordar sem adiar. Outras vezes que me recordo de chorar estiveram maioritariamente relacionadas com a minha interação com a arte, como ouvir o álbum Javelin do Sulfjan Stevens, ver o filme Past Lives ou até ver a morte da princesa Diana na série The Crown. Contudo, por muito difícil que tenha sido o ano, sei que chorei pouco por ele.

Tenho uma nota de voz de abril, gravada na Avenida Doutor Mário Soares 35. Eu perguntava numa canção o que é que existia entre a luz e aquilo que mais me doía, uma vez que a luz era o que eu procurava e o que mais me doía eu sabia mais ou menos o que era. O que me importava saber era o que separava as duas coisas e que distância teria de percorrer para ir de uma para a outra – sair da noite para o dia, ou da madrugada para a alvorada, como falava no meu projeto. Ou mesmo como ir da Avenida Doutor Mário Soares 35, onde trabalhava, para o palco – da secretária para o espetáculo. 

Estas gravações são úteis agora precisamente por isto. Não só algumas delas se tornaram composições a sério e estão agora no forno para se tornarem músicas, como me ajudam a perceber por onde andava o meu corpo e por onde andava a minha cabeça, ao longo do ano. Assim, consigo saber que, a 1 de junho, enquanto passava pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cantava sobre como a vida é múltipla, é um trabalho com retalho, um pastiche desorganizado, sem lei nem regra. Há de tudo um pouco. Um dia estou a rastejar pela semana sem conseguir dormir, no outro estou em Alvalade ou no Campo Grande a passear de mão dada, como se fosse o 25 de abril.

Ou, por exemplo, a 6 de julho, numa nota com o nome Avenida Maj Gen Machado de Sousa, emulava um canto a pedir ao meu amor que me pegasse na mão e visse como estou incompleto – o patchwork estava com retalhos em falta. Nesta altura, estava na fase de filmagens do meu projeto, o momento era de duvidar de qualquer capacidade ou potencial que ele pudesse ter. Desgastava-me a retrospectiva e as prévias do resultado final, com elas subiam à superfície perguntas que pensava ter tão escondidas, que nenhum ecrã me poderia responder. Começava a entender que a pouca fé no meu sucesso tinha raízes tão fortes que, quando desenterrava o projeto do abismo daquilo que tinha para dizer, elas teimavam em vir atreladas. Esse era o abismo entre a luz e o que me doía, e o que me doía era a visão que tinha sobre mim mesmo. 

Foi à volta desse dia que eu me despedi. 

Dois meses mais tarde, a 6 de setembro, um dia depois de começar a trabalhar num novo lugar, numa nota chamada Lisboa Santa Apolónia, cantava o seguinte: 

Acho que descobri a razão da minha tristeza

Foi nunca ter-me conhecido em profundeza,

Achava que estava bem só a estar

Afinal faz falta o que faz o coração acelerar.

Apesar do improviso, têm sentido estas palavras. Na mudança do trabalho, consegui puxar o fiozinho da tristeza até encontrar de onde se criava, ao longo de cinco anos, aquele pequeno incomodar. Aparentemente, de tanto jogar pelo seguro, acabei por nunca me aventurar verdadeiramente no conhecimento daquilo que verdadeiramente me fazia feliz – que é aquilo que me dá ritmo ao coração. Ritmo sendo exatamente a palavra certa, uma vez que é de música que estamos a falar. E eu tinha encontrado esta resposta a 31 de agosto, em Santarém, quando dei o meu primeiro concerto. Foi, nas palavras da minha psicóloga, um momento “estrelar”, em que tudo parecia fazer sentido. Tinha ido da secretária ao palco e, durante 45 minutos, soube o que realmente me importava. A partir daí, tudo foi diferente.

Sei que vamos apenas em setembro, mas pouco gravei no que restou deste ano. Pelo menos, pouco que tenha relevância para o que vos vim aqui contar. Tirando alguns casos, como a 5 de outubro, numa gravação de voz que tem o nome de um restaurante em Queluz, que musicava um poema que me ocorria: 

Estou tão cansado que o corpo é uma frase sem gramática, 

Quero pontuar o que ainda resta, 

Dar sentido ao que presta 

E saber o que há em mim.

Outras gravações dizem respeito a ideias para composições musicais mais ritmadas ou a notas sem enunciação de palavras, para futuros trabalhos. Não quero com isto dizer que setembro foi o meu final feliz, mas a verdade é que foi quando voltei a dormir e a temer um pouco menos a noite. Não arranjei um trabalho dedicado à música, ou sequer à arte, mas os saborosos ares da mudança restauraram em mim o que pensava há muito estar morto. Reuni-me com detalhes que pensei serem dispensáveis, como apresentar-me de novo pelo primeiro e último nome, associar um novo cheiro à rotina, chegar a casa a horas diferentes, tocar em diferentes partes do mundo ao rir com alguém novo e estranho, entre outros. Detalhes como estes curaram o desgaste de um dia-a-dia passado e algo em mim sarou ao estar com quem não sabia a minha data de nascimento, que não como queijo e que canto. Fez-me lembrar Berlim.

Berlim. Berlim. Berlim.

Sempre que consegui dormir este ano, sonhei contigo. Cantei sobre ti, escrevi sobre ti e tinha-te na mente quando defendi a minha tese a 12 de dezembro. Sempre que fecho um ciclo, é em ti que penso. Apesar de não planear voltar, guardo de ti a mais bonita memória de liberdade e talvez por isso seja a ti que recorra quando me sinto encurralado. Quando terminei o ciclo da tese, ouvia as palavras finais do júri como se caminhasse pelas ruas de Kreuzberg, sozinho a um sábado à noite. E o cheiro da vida noturna era a liberdade a aproximar-se, o fim da insónia contínua que tinha assombrado o meu 2023. Todo o ano me tinha levado até àquele ponto e, por fim, pude dormir com um pouco mais de paz. 

Para o ano que vem, será difícil concretizar tudo, mas quero deixar escrito aquilo que desejo. Nem sequer costumo fazer este tipo de listas mas, uma vez que escrevi isto como uma nota para o futuro, mal não fará ter algo a que recorrer quando me sentir aborrecido. Segue a lista: quero escrever, compor, produzir e lançar música, ler dez livros, escrever um texto por mês, aprender mais sobre som, voltar a ter aulas de canto, aprender alemão, fazer voluntariado, sair da europa, escrever um guião, celebrar os 50 anos do 25 de abril, ler a obra poética de José Afonso, ler a obra poética de José Saramago, quero voltar a sonhar com música, quero acreditar no que sou, ter paciência, ser bondoso, fazer rir, fazer pensar, dar amor e saber receber.  

Claro que nem todas estas metas podem ser medidas de forma concreta, mas servem de pequeno lembrete para aquilo que penso que me faltou mais este ano. Registado aqui em jeito de 12 passas o que mais desejo para este novo ano. 

Agora, está na minha hora. Não consegui prometer nada no início deste texto mas, a mim mesmo, jurei que seria sincero. E, nesse sentido, devo confessar que pensava que vinha aqui desabafar. Esperava mesmo inserir umas frases poéticas sobre o meu 2023, embelezar tudo um pouco da forma como gosto, mas acabou por vir tudo em jeito de história. Peço desculpa aos desapontados. Mas a verdade é que neste ano relembrei-me que, quando era pequeno, ambicionava viver a minha vida de forma a que desse uma boa história para contar – de forma a que ela em si fosse uma obra de arte. Tinha-me esquecido disso e talvez este texto seja uma forma de resgatar esse desejo. 

Antes que vá embora, quero dizer que este texto não é um aviso, nem tem moral nem serve para nada mais se não documentar o ano em que fui apenas o meu cansaço. Talvez queira reler um dia para não repetir determinados erros, ou talvez sirva apenas para estar à mercê do aborrecimento de quem se cruzar com ele. De todos os modos, acabou. 

PS: Ao soar da meia noite de 2023, não consegui evitar chorar. Ao início pensava que seria um pequeno emocionar pela beleza que é ver foguetes no céu, mas os minutos passaram e, simplesmente, não conseguia evitar o soluço. Afinal, chorei por 2023. 

Por Francisco Neto

Nasceu na Amadora, na meia noite de vinte e nove para trinta de dezembro de 1996. Passa a maior parte do seu tempo a cantar e sem saber o que quer ou onde quer ir, tendo assim concluído um curso de Marketing e Publicidade no IADE, sem qualquer razão em particular. Apesar da sua indecisão patológica, nunca teve dúvidas de que não suportava o sabor a queijo e que esse era um facto que qualquer pessoa teria de saber, se quisesse participar na sua vida. Tende a pedir dezenas de conselhos para solucionar os mais pequenos problemas da vida, apenas para os ignorar olimpicamente e decidir por si só o que há-de fazer. Precisamente por essa razão, decidiu que deveria apostar a sua vida na escrita e na música, as duas artes pelas quais nutre uma maior paixão. Não sabe escrever coisas sérias a menos quando escreve canções. Aí, é inconsolavelmente fatalista. Evidentemente, graças à sua indecisão, continua a trabalhar a full time em todas as outras artes existentes, para poder sobreviver neste mundo.

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