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Ensaio

Ensaio sobre o Ensaio

Quando veio,

Mostrou-me as mãos vazias,

As mãos como os meus dias,

Tão leves e banais.

Pedro Abrunhosa

Vamos falar aqui de coisas banais, outras não tão banais, vamos falar de coisas que pareciam tão banais e que agora são preciosas. Sobretudo vamos, hoje, falar de uma: ensaio.

Nunca fui muito fã de dias específicos para festejar coisas como a poesia, o livro, o teatro e outros, porém nos dias que correm estou cada vez com mais vontade de festejar, porque me trazem um sabor acre e doce. Doce porque amo cada uma destas coisas que se festeja: a poesia, o livro, o teatro e cada vez que pratico e mergulho neles sinto-me viva. O mês de março é recheado de festejos, e o de abril tem outros tantos, mas os dias parecem iguais. Vazios. Vazios porque apesar de ser possível ler, já leio como forma de viver o que não é possível viver, já escrevo sobre dias iguais e ensaios parecem miragens. Mesmo que se possa ensaiar com cuidados e tal, fazemos sempre com aquela sensação que a data de apresentação acontece se acontecer, ou acontece se for possível agendar, ou mesmo se o que ficou por fazer for escoado. Com isto, percebo que estou a ensaiar sobre a possibilidade de um dia voltar a ensaiar e com o sentimento acre de quem vê o dia do teatro como um momento para festejar o passado em vez do presente e do futuro. 

Venham mais dias banais, como os dias de antes e menos dos dias banais de hoje. Venham mais ensaios ao vivo para que eu possa deixar de ensaiar sobre o ensaio, ou até ensaiar sobre agendar um ensaio. Menos dias vazios, mais dias recheados de experiências, jogos, brincadeiras, reflexões e descobertas dramáticas. Menos drama diário, mais dele no palco, menos criatividade virtual, mais dela ao vivo e a cores. Menos disto e mais daquilo. E como diria a minha filha mais nova: “Mãe, paga o ballet, porque eu quero ir para a sala, não quero estar nesta sala, a nossa.”. Ela não sabe que não é por falta de dinheiro, mas começa, pelo visto, a entender que tanto, neste mundo que vivemos, é por e sobre dinheiro. Isto faz-me perguntar, será também dinheiro que nos impede de ensaiar e me coloca neste ensaio? E com esta pergunta abro questões que gostaria de manter privadas, portanto, não me respondam ao vivo, nem por mensagem, nada de comentários na caixa, nada de emails também. Estou apenas a fazer um ensaio e como um bom ensaio que se preze, ele é cheio de experiências, perguntas, desabafos (até), mas não é para o público. Este ensaio não é publico, mesmo que o publique, não é público. 

Assim, daqui saio com mãos não tão vazias, ainda que vazias, onde os dias são, o que são, não sei se leves e banais. Sei apenas, que chegou ao fim, este ensaio. 

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Crónica

O que é feito dos panfleteiros?

As ruas voltam a ocupar-se de gente que respeita o, mais do que seu contrário, desconfinar. Nos próximos tempos, vários locais de trabalho voltam a abrir, para prazer de alguns e sobrevivência de outros. Quero falar aqui de um trabalho que me tem inquietado: os panfleteiros. 

Em tempos pré-pandémicos, os panfleteiros eram quase uma espécie de saco de boxe, onde os stressados transeuntes descarregavam a raiva acumulada através de um “Não.” e suas variantes, ou de um simples, mas agressivo levantar de mão que impossibilita o contacto. É possível comparar um panfleteiro a um/a amado/a, ambos veem o nosso pior lado. E de uma maneira ou de outra não julgam. 

Ser panfleteiro não é fácil. Muito menos em tempos pandémicos, em que o contacto e a proximidade são evitáveis, e devem-se evitar objectos de outrem. A taxa de engajamento é, presumo eu, ainda mais baixa. Se, outrora, a recusa de um panfleto ou informação era por desinteresse (ou mau carácter), actualmente é por segurança (ou desinteresse ou mau carácter). Eu próprio vejo-me a questionar se aqueles panfletos estão desinfetados, ou até como poderia (ser persuadido a) aderir à nova rede tarifário, se o indivíduo terá de me explicar as condições no mínimo a um metro de distância de mim. Dou por mim a passar na rua e a ter pena – aquele sentimento terrível – deles porque, apesar de tudo, vivemos tempos em que aquilo que têm para nos oferecer é do nosso interesse. 

É do maior interesse de todos ter neste momento, em que vivemos permanentemente online, um serviço de internet com mais gigas, com fibra, e todos esses adjectivos que podem ser reduzidos a “rápida”. A internet nunca foi tão preciosa, sobretudo para os teletrabalhadores e os telealunos que passam o dia em reuniões ou aulas online. Contrariamente, é ótimo ter-se internet lenta, pois já ninguém suporta mais do que uma hora de Zoom; quem sofre com isto são os telealunos cujos professores já não acreditam no novo “O meu cão comeu o trabalho de casa” que é “Stora, tou com a câmera desligada porque a net tá lenta.”. Ainda no departamento das telecomunicações e multimédia, aquele absurdo de ter vários pacotes de canais – dos filmes, dos desenhos animados, das viagens, da culinária, da bricolage, da música, etc – são, agora, úteis. Já não basta os três canais nacionais que passam o dia a transmitir notícias e informações sobre o “elefante na sala”. É necessário saber o que vai acontecer à “Patrulha Pata”, o que comem os noruegueses, como procriam os cavalos marinhos ou recordar as músicas dos anos oitenta. 

Vivemos tempos de esperança, e não existem melhores distribuidores de esperança do que aqueles panfleteiros de uma determinada religião que se instalam numa esquina aleatória de uma rua não menos aleatória com um stand a proclamar o fim do mundo e como seremos poupados por um salvador. Quero nomear também nesta categoria todos os professores, especialistas dos trabalhos ocultos, e que resolvem todos os problemas de variadas áreas da vida profissional e pessoal de cada um. Até esses fazem falta.

E os que distribuem folhetos de cadeias de novos restaurantes fast-food que abrem, a cada semana, numa zona nova? Foram sempre subvalorizados, com os seus cupões e promoções, agora fiquemo-nos pelos serviços de entrega com taxas de entrega altas e condições de trabalho precárias.

Não esquecer os panfleteiros políticos e humanitários. Sempre souberam que vivíamos em modelos políticos em ruína, ninguém quis saber e agora vão para rua, como eles sempre fizeram, para reclamar o uso de máscara. 

Finalmente, os que mais engajamento conseguem: os panfleteiros de festas. O seu habitat natural é nas portas dos liceus ou universidades, em horas de intervalo ou de término de aulas; onde anunciam aberturas de novos bares ou festas temáticas, citando todo o cardápio de bebidas que tem de oferta um shot. Fazem falta as festas. E eles também. 

Agora, mais do que nunca, são necessários panfleteiros e, como qualquer amado/a, precisam da nossa atenção. Da próxima vez que vir um panfleteiro, aceite o que ele tiver para lhe dar, nem que depois deite no caixote do lixo mais próximo, como sempre se fez. 

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Poema

Um Coração ou Qualquer coisa semelhante

No nosso coração 
 
o que ouvimos
 
Nos olhos 
 
o que sentimos
 
Nos ouvidos 
 
O que lemos
 
 
Na alma
 
Com várias portas
 
da frente, que tem código
 
das traseiras que se trepa
 
da cave que é pequena e rastejamos
 
Por onde se entra?
 
Não há portas
 
Arrombamos e deitamos abaixo
 
Ficam as janelas
 
Espreitamos
 
Saltamos
 
Somos.
 
 
 
 
Contenta-te contigo
 
Atenta-te a ti 
 
Ao amor que não deve ser gratuito
 
Ao amor que não se agradece
 
Ao amor que não me pertence
 
Onde te falo com o meu silencio
 
E toco-te com a nossa distância
 
Choro-te
 
Por ti
 
Por nós
 
Por quem não sou
 
Por quem não podemos ser
 
Contento-me contigo
 
Atento-me a ti
 
Amo-te 
 
Agradeço-te


 


Nós em nós
 
Não entendo
 
apenas sinto
 
Procurei-te onde não me achava
 
Achei-te 
 
como num plágio de mim 
 
Achei-me
 
como num plágio de ti.




 
Sentes os meus olhos?
 
Se os sentires
 
Poderás ver bem o meu coração
 
Cheiras os meus olhos?
 
Se os cheirares
 
Poderás cheirar a Primavera.
 
Ouves os meus olhos?
 
Se os ouvires
 
Poderás ouvir o mar
 
Vês os meus olhos?
 
Se os olhares
 
Poderás ver o amarelo. 



 


		
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Não eram Margaridas

Conduzimos para fora da lei
Naquele teu dia de anos.
A quarenta minutos da cidade,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber de nada.
Ninguém tinha de saber de nada.
Dei-me por feliz por termos chegado até ali.

O tempo deu-nos permissão,
E nós demos-lhe propósito,
Onde, encontrados num campo de margaridas,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber as nossas canções.
Ninguém sabia que eram nossas as canções.
E eu dei-me por feliz por ter chegado até ali.

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próxima paragem: sítio nenhum

o tempo passa cada vez mais depressa. sinto-o aumentar a velocidade cada vez mais à medida que vou crescendo, como um comboio ao arrancar. os dias continuam a ter 24 horas, mas nenhuma delas pode ser passada sentada debaixo de uma árvore a ler um livro ou a ouvir os pássaros porque isso seria uma “perda de tempo”. o que é ganhar tempo, então? será “ganhar tempo” passar os dias a trabalhar para ganhar dinheiro para depois gastá-lo no tempo? aquela semana do ano em que estamos de “férias” e passamos as “férias” a pensar “passam tão rápido”.


universo dentro de universos sobre universos sem universo mas
cheios de nada.
não passa disso,
Tempo.
não passa cá para fora está
preso.
preso e preso a ser-se si mesmo


só o sentimos na pele quando vivemos muito ou não vivemos de todo. quando o contamos minuto a minuto enquanto aguardamos a nossa liberdade, ou quando estamos tão livres que ele já passou.

(tentemos) fazer disto um bom sítio de viagem
como quando vamos a caminho de algum lugar e fazemos do lugar onde estamos o mais confortável do comboio
ou do autocarro
ou
cá dentro percebem
deve ser esse o propósito
não ir a lugar nenhum e ainda assim
estar no lugar mais confortável deste comboio

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Poesia em 14 Lugares Concretos

Os lugares são
a geografia da solidão.
São lugares comuns a casa a cama.
(Manuel António Pina)

I FALÉSIA DE PORTO CÔVO 
  
 Neste sentimento que me tem na vertigem de cair em nós 
 Gasto os beijos que não se gastam e
 salto aqui neste ter não ter
 onde não tenho chão
 só queda livre
 Confio que há um oceano para nos receber 
 Mergulhamos 
 Mergulhámos
 na inigualável sensação de medo
 Salva-me o cheiro e o calor do naufrágio em que juntos 
 inventamos um mundo
  
  
 II CALÇADA DA RUA DA MADALENA
  
 A pergunta é quando
 Não só esperar até ser
 Esforço de quebrar 
 Imóvel permaneço 
 E tropeço
 E caio  
 Na terra de ninguém 
  
  
 III SALA DE PINTURA NAS BELAS-ARTES
  
 Sinto como facadas cada vez que 
 de longe
 me queres falar
 Queres falar-me e não o fazes porque não mereço 
 O beijo que não me dás 
 As mãos que não me tocam no corpo
 O sorriso que não me ofereces 
 porque não mereço 
 Aqui me fico no meu canto 
 esquivo
 Esquissos os teus desenhos
 Pinturas no vazio
 Dedos que trabalham sem destino
 Pensamentos com destino em mim
 São esses os que guardo
 Os pensamentos 
 Porque é o que tenho teu
 Acarinho essa solidão 
 Porque foi o que me deixaste 
 Com ternura e amor
  
  
 IV PRAIA DA CRUZ QUEBRADA
 Quando tudo parece nada 
 Quero nada
 Navego ao sabor amargo da ausência 
 Sonho os dedos cabelos
 Sonho a Vertigem queda
 Sonho o espesso vazio do sangue quente
 Quero tudo 
                              
  
 V RODOVIÁRIA DE SETE RIOS
 Um terço da vida toda é feita disto
 Do que sentes agora 
 O resto é chegar ou partir
 Pegar ou largar
 Esquecer
 Lembrar
  
  
 VI FOYER DO TEATRO NACIONAL (AFORISMO) 
 Há quem padeça de teatro estético, de teatro físico, teatro da palavra, teatro clássico, teatro político, há quem padeça de teatro biográfico ou autobiográfico. Mas há um teatro de que todo o actor padece. O teatro auto-inflingido
  
  
 VII CARRO 
 Estradas em contramão
  
 CARRO (2)
 Olhos na estrada do mendigo
 A viagem é em contramão 
 Perco sempre aquilo que digo
 No contorno suave da tua mão
  
  
 VIII À PORTA DE CASA (DEPOIS DE A FECHAR) 
 Estar contigo é lembrar-me às vezes da minha desilusão-própria
 Namoro o exaspero 
 Desconfio da porta de casa
 Silencio a palavra-pensamento 
 Salto para o vazio 
 Olvidando desatar o nó 
 E morro (des)abraçado 
 
  
 IX CASA DE BANHO (REFLEXO/REFLEXÃO) 
 Sou bastante asseado
 Considero-me uma pessoa bastante asseada
 Gostaria de ser uma Pessoa Asseada também
 Uma Pessoa Asseada
  e uma pessoa asseada
  
 CASA DE BANHO (CHÃO) 
 Onan morreu
 Dos escombros
 Renasci
 Jamais só 
 Contigo 
 Ininterrupto
 Orgasmo eterno
 Cego 
 Surdo
 Mudo
 Mas eterno
  
  
 X SALA DE ESTAR
 Suspeitei das sobras dos sussurros assustados
 Dos dissimulados serões de sofá 
 Salvei as sinopses das emoções passadas
 Das futuras não sei se as há 
 A chaleira vai chiado mas não gosto de chá
 Sem saber acendi um cigarro
 E sabendo o que sei dos assuntos sensíveis
 Distraí-me mortalhando o passado
 Ainda ontem indigente fui inventar o epitáfio 
 Para inscrever sobre um túmulo nosso:
 Aqui jazem os restos mortais de um amor
 Não deixem que morra o vosso. 
  
  
 XI SOFÁ 
 Rezo e quero 
 Espero também
 Ativamente
 Busco incessantemente 
 O comando da televisão 
  
  
 XII CAMA DE CASAL
 O frio que está hoje vem de dentro para fora, como um grito
  
 CAMA DE CASAL (2)
 Ah! pudesse eu estar de quarentena
  
 CAMA DE CASAL (3)
 Eu sou em ti tanto
 Que sou mais eu em ti
 E entretanto quando só me sinto
 No labirinto de me encontrar
 entre tantos outros eus
 Tu 
 que sabes bem
 e sabes tão bem
 vens por mim
 vens para mim
 desembocas a tua boca na minha
 encontras o que eu procuro
 soltas-te para me agarrar
 E na madrugada da vida toda
 nus de tudo e juntos
 Os meus olhos pelos teus veem 
 o meu corpo pelo teu transpira
 respira
 suspira
 Só porque é assim
 Só Porque sim
 Só Porque é verdade
 Só
 Mas só contigo
  
  
 XIII VARANDA DO QUINTO ESQUERDO 
 Gostava que fosses mais gorda
 Para ocupares o espaço todo
 Do meu abraço
  
 VARANDA DO QUINTO ESQUERDO (2)
 Sou mulher em permanente parir de mim
 Amo como quem respira
 Fujo pela janela para um momentâneo ar
 Mulher é muito mais
 Tanto mais que a poesia
 Tanto
 E mais
  
  
 XIV COZINHA 
 Entonteço e então teço o teu estômago nos meus intestinos, e a alma na lapela
  
 COZINHA (2)
 Como como quem come
 Oh, que inovação 
 Que rasgo de lucidez
 Que epifania esclarecedora
 Que tranquilidade desceu sobre mim
 com este conhecimento! 
 Tristes aqueles que comem como quem vive 
 Ou como quem faz amor
 Ou como quem acede a uma dimensão superior
 Ou como quem! quem! quem! 
 Como os da raça canina. 
 Como e como sabe bem comer
 delicio-me na alimentação
 Nutro o corpo
 Sacio o espírito 
 Mas sempre no espírito de quem come
 Pois quem come como eu como
 (que é como quem come) 
 Come, apenas
 Que é como se deve comer 
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Palavras à solta

A construção do texto seguinte é baseada na utilização de palavras previamente escolhidas de forma aleatória.

Eram 5h00 da tarde quando o escocês da perna de titânio entrou porta adentro. Podia jurar que uma manada de elefantes, a viajar em benzodiazepinas, tinha acabado de chegar. Pousou três garrafas em cima da mesa. Whisky, vodka e limoncello, perfeitamente alinhadas. Pegou numa bola de ténis, que trouxera com ele, e decidiu que era tão boa altura como qualquer outra para jogar bowling. Caíram as três. Duas partiram e, como se não estivesse bonita a confusão, ele foi apanhar a terceira garrafa e cortou o indicador numa daquelas veias que quase nos dá banho. Senti-me num western do Tarantino, prestes a ganhar o prémio de motion picture com mais sangue. Os moços que estavam no jogo continuaram como se tivessem recebido um email da EDP e sobrou para mim levá-lo à Urgência. Sobra sempre. Se o futuro do mundo dependesse de uma descoberta qualquer, relacionada com as células estaminais, também seria eu a ter de as ir colher. É.

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Batidas

Um coração humano bate em média entre 60 a 70 vezes por minuto. Para o ser humano que vive em média 80 anos chegamos a quase 3 mil milhões. Ou se preferirem 3 000 000 000 de batidas. São muitos zeros. Acrescentemos a esta equação que durante muito tempo suspeitou-se que os corações tinham um número limitado de batidas. Neil Armstrong, o primeiro humano a pisar a Lua, foi metido nesta discussão ao ser-lhe atribuída uma frase (entretanto desmentida) onde dizia que “Acredito que cada ser humano tem um número finito de batidas. Por esta razão não pretendo desperdiçá-las a correr ou a fazer exercícios”. Para todos e todas que já pensavam em cortar nas horas de exercício para não gastar as vossas batidas, podem esquecer este argumento pois há muito que foi desacreditado.

O coração é na verdade um órgão fascinante. É dos poucos órgãos que podemos sentir com as nossas mãos. Dizemos que bate, mas também que dói, que aperta, que aguenta, que se remenda, que pode ser embalado, que acelera, que se entrega, que late, que se maltrata, que se abre e eventualmente que se parte. Acontece-lhe de quase tudo e tem até um dia onde é rei e senhor das montras e aparece em tudo o que é lugar. No entanto a sua função básica é o garante da vida. Ao bater, alimenta as células e oxigena o corpo. O dos humanos, mas não só.  

Recentemente lembrei-me de um coração do qual poucos esperavam muita coisa. Trata-se de Laika, a cadela condenada a ser o primeiro ser vivo no Espaço. Laika foi escolhida (com uma substituta), entre os cães de rua de Moscovo e foi-lhe dado um bilhete de ida na Sputnik 2. Durante vários meses foi preparada para a viagem que lhe levaria à órbita terrestre, mas poucos acreditavam que sobreviveria a fase inicial do voo. Com a instalação de diversos sensores no seu corpo, Laika foi colocada no espaço exímio da cápsula que lhe foi reservado e que lhe serviria de transporte. Ali ficou 3 dias para se habituar. 

No dia da partida os cuidadores despediram-se dela. Durante a fase da descolagem, o som dos reatores e a pressão assustaram-na de tal forma que o seu ritmo cardíaco triplicou. Contra todas as expetativas Laika sobreviveu. Uma vez em órbita, estima-se que Laika tenha sobrevivido durante 103 minutos e completado entre 5 a 6 das 2570 órbitas que a Sputnik 2 completou nos seus 5 meses de missão. Após a órbita número 4 a temperatura no interior da cápsula atingiu os 32 graus e a vida tornou-se praticamente insustentável.

O coração da Laika não utilizou todas as suas batidas durante a sua estadia na Sputnik 2, ainda assim conseguiu latir mais forte que os reatores de uma cápsula espacial.