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A Guarda

Godofredo de Almeida, funcionário postal. Esta é a forma como me apresento ao longo dos anos. O primeiro é o meu nome e o segundo a minha profissão. Sim, carteiro e afins. Sempre fui atraído pela questão logística das coisas, sobretudo seguir o caminho que uma encomenda ou carta faz para ir de A a B em perfeita segurança, sem atrasos e em perfeito estado. Há quem prefira seguir aviões, comboios ou camiões TIR. Eu prefiro as cartas. Gosto de acompanhar o percurso de cada uma, ver por onde passam, onde se demoram e quando passam a fronteira e são livres para chegar ao seu destino. Sabiam que existem estações de fronteira para o correio? Não são aquelas estações de correio perto das fronteiras como em Vilar Formoso ou Elvas, mas estações de correio que recebem e tratam o correio internacional. Imagino que as cartas e as encomendas também têm de passar pelo mesmo que nós.

Cada entrega tem uma história. Eu, que já ando nisto há muito tempo, ainda me lembro de pessoas esperarem por mim à porta de casa a cada manhã e à mesma hora, perguntando se havia correio para elas. Na maior parte do tempo eram só as contas do costume, e esses envelopes, asseguro-vos, ninguém gosta de os receber. Ainda menos os que vinham com aviso de receção devido ao atraso no pagamento. Sempre me assustou ver a velocidade de como um sorriso pode desaparecer do rosto de quem as recebe. Por vezes sentia-me culpado por dar estas notícias, mas, como sempre me disseram a culpa é da mensagem e não de quem a entrega. 

Como podem imaginar o que mais gosto de entregar, ainda que sejam cada vez mais raras, são cartas. De pessoas para pessoas. Cartas que dizem a quem as recebe que alguém pensou nelas, sentou-se, escreveu, colocou num envelope, pôs um selo e despachou-a. Têm tanto de ridículas como de inesperadas. Acabam com a ansiedade de quem as espera e surpreendem quem não tinha ideia de que ainda há cartas que lhes são dirigidas. Estas entregas compensam as outras todas. Seja um vale postal, os folhetos com as ofertas da semana ou os cartões-postal de quem foi a algum lado – confesso que olho rapidamente para as imagens para ver se é um sito que vale a pena visitar. Ultimamente entrego muitas encomendas sorridentes. Penso que a própria embalagem antecipa a reação das pessoas que as recebem.   

Ser carteiro implica também guardar os segredos dos outros. Segredos selados em papel. Segredos que não devem e não podem ser revelados. Por vezes, dependendo de onde as pessoas vivem, também recolho as suas cartas. É uma ajuda para quem mora longe. Pedem sempre para ter cuidado com elas, pois são partes de si que partem para outros. 

Há pouco tempo, no final do Outono, enviaram-me para um sítio novo. Um sítio diferente de todos os outros onde tinha estado. Os outros sítios eram planos e conseguia pedalar o dia todo para fazer as entregas. Aqui não. Cada dia é uma aventura. As ruas são diferentes, com altos e baixos, a calçada é negra e a chamada “baixa” da cidade, na verdade é na parte mais alta, ou seja, é tudo ao contrário. Nesta cidade as pessoas não esperam o correio à porta de suas casas a cada dia. O facto de terem as quatro estações do ano no mesmo dia não convida a longos períodos na rua. O interior torna-se apelativo para se passar a maior parte do tempo. 

Antes de começar a trabalhar estudei o percurso para melhor distribuir o correio e otimizar o meu tempo. Notei que até uma certa hora as ruas estavam desertas, mas assim que as pessoas decidiam sair, saíam todas ao mesmo tempo, como se fosse combinado. Como as entregas não coincidiam com estas horas, nunca via ninguém no meu percurso e isto fazia-me confusão. Comecei então a magicar uma forma de trazer as pessoas para a rua a qualquer hora. Apenas tinha de as convencer a porem o pé um pouco cá fora. Ao final da segunda semana, e quando já estava a tomar o pulso da cidade, eis que me engano num cruzamento e sou colhido por uma carrinha. Nada de grave, mas por momentos perdi os sentidos e até vi fogo de artifício. Disseram-me que a culpa era dos estudantes que ao retirarem o sinal de sentido proibido tinham transformado a rua de sentido único numa rua com duplo sentido… 

Voltando às entregas, comecei de forma suave, aguardando o bom momento: em vez de colocar o correio na caixa, tocava à campainha para me apresentar. As pessoas, vencidas pela sua curiosidade, lá abriam a porta para dizer bom dia. Com o tempo ia perguntando uma ou outra questão: se viviam ali há muito tempo, se iam ao posto dos correios ou se podia deixar as encomendas à porta nos dias em que ninguém atendesse a porta, mas não conseguia ter nenhuma resposta. Pensei que seriam tímidas e sem vontade em falar delas mesmas. Então mudei de estratégia e passei a perguntar pela vizinhança. Usei a desculpa de não conhecer bem as ruas tentado com isso conhecer melhor as pessoas. Também aqui avançava a passo. Porém, pouco a pouco fui notando os hábitos e particularidades de algumas pessoas: o senhor da Rua C coleciona selos; a senhora da Rua M que tem os filhos a estudar em Faro e no Porto e que gosta de receber cartões-postais com vistas do mar ou de sítios exóticos; ou a senhora da Rua H tem uma iguana de estimação, e por isso uma vez por mês recebe uma encomenda com suplementos para o animal (deve ser por isto que a sua casa está sempre bem aquecida, seja de Verão ou Inverno).

Foi assim que me dei conta do que realmente se passava naquela comunidade: apesar de ninguém falar de si mesmo, os seus tiques começaram a sair ao de cima. Tendo isto em conta resolvi pôr um plano em marcha, ajudando cada um a ajudar outra pessoa. Basicamente era dar um empurrãozinho para que as pessoas da comunidade prestassem um pouco mais de atenção aos seus vizinhos.  

Sempre que chegava uma carta com um selo especial, mostrava-o “sem querer” ao senhor da Rua C. Perguntava-lhe se sabia onde morava a destinatária e ele, com um interesse particular, não se mostrava rogado e até me acompanhava à porta para se assegurar que a carta era bem entregue. Durante a entrega tentava mencionar o seu interesse pela filatelia. E a partir daqui estas duas pessoas deixavam de ser meros desconhecidos e passaram a ser vizinhos. 

O mesmo aconteceu para a senhora da Rua M. Cada postal que chegava ficava no cimo do monte das cartas a entregar e com a imagem de fora para se notar que era uma foto e não um envelope. Com o tempo as pessoas aperceberam-se de quem era a destinatária e começaram a enviar postais quando também viajavam. No início não os enviavam diretamente: mandavam para as suas próprias casas e entregavam os cartões ao seu regresso e em mão. Só mais tarde, com a confiança já estabelecida é que enviavam diretamente. 

Quanto à senhora da iguana, passei a palavra que para além dos suplementos que recebia o que o animal também gostava era de talos de brócolos e de couve-flor. No início ela ficou bastante confusa com os vizinhos passarem e deixarem talos de legumes que de outra forma seriam desperdiçados.Foi assim que comecei aqui, aguardando os bons momentos para adaptar o ambiente ao meu redor. Pensava que era o frio que impedia as pessoas de sair à rua, esse mesmo frio que conserva tudo o que é perecível. No entanto, o frio também convida ao convívio, à entreajuda, à introspeção e à criatividade dentro de portas. Nesta cidade o calor que não se encontra no exterior está presente no interior de quem te acolhe e te recebe de braços e coração aberto.