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Ensaio sobre o regresso

Nasceu. 

Está connosco, é verdade e oficial. 

Todos os anos ele se apresenta como o mais feliz e nunca teve problemas com as suas formas redondas, incrível! 

Amante do frio, de facto é o único meio onde vive, ainda assim não dispensa um bom cachecol. 

Faz crianças felizes e até os adultos esboçam sorrisos ou desatam às gargalhas, contudo não faz uso de uma única palavra. Apresenta-se perante todos, sempre com estilo e determinação. Não sendo comediante faz rir a pedra da calçada. Se calhar a pedra não, porém do carrancudo ao inerte, ele derrete qualquer um. E sorri. 

Faz do tempo gelado a sua casa e aquece as almas de todos. Faz de seu corpo o contraponto para aqueles que se apresentam perante ele. 

Começa a ganhar forma, muito antes de ter de facto forma. É na entrada do inverno no primeiro floco e nos sonhos de todos que começa a nascer. A fórmula mágica para a sua gestação é o tempo. Não será a de todos? Neste caso, todavia, estamos a referir tempos diferentes, não é o cronológico, ao invés é a meteorologia que falamos. 

É este coração frio, formas redondas, sorriso pontilhado na cara e um nariz, verdadeiro, ainda que grande como o do Pinóquio que faz as alegrias dos pequenos aos graúdos. São as gargalhas de todos que o mantêm vivo. 

Ninguém se quer despedir dele, porque nele está toda a felicidade do mundo. No entanto, chega um dia, em que o sol derrete o seu coração, ele, regressa apenas no próximo floco, este Boneco de Neve.

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A Fome

Sempre vivi a sair da mesa de prato meio vazio. É uma falta de educação, eu sei, sou um mal educado, na verdade. Mas tenho bom coração, prometo, e tudo isto teve um bom motivo para começar.


Comecei esta mania aos dez anos, quando ainda levava para a escola “tupperwares” de um plástico já bronzeado, numa lancheira azul e pesada que dividia com o meu irmão. Num desses dias, chamaram-me gordo e eu decidi que estava cheio para todo o sempre. Naquela altura, aquecia a comida em microondas comunitários numa sala que cheirava a sopa, onde putos escondiam os macacos que tiravam do nariz debaixo da mesa, e contínuas corriam atrás deles com cordas vocais afiadas e já cansadas. Gritavam porque havia puré de batata na parede e não no estômago de alguma criança; gritavam porque havia uma maçã escondida por baixo do lavatório, já em fase cinco de degradação, gritavam porque os tênis se colavam ao chão, pelas mãos da magia de algum resto de almoço entornado há três dias; e, comigo, gritavam porque não queria comer.


Chamaram-me gordo um dia e eu decidi que queria deixar de ver em tudo uma forma de me encher. Queria deixar de esconder o coração na dispensa, e de partir as jarras de vidro onde guardava as bolachas porque não podia esperar nem mais um segundo para matar aquele animal que tinha dentro. A verdade é que saía caro: se cada jarra custasse dois euros no IKEA, e se eu tivesse um destes ataques duas vezes por dia, eram quatro euros diários que saíam em jarras e uns quantos quilos de gordura que entravam. No fim das contas, o fluxo de caixa não compensava o prejuízo, dado que a carne que acumulava não tinha valor no mercado. De maneira que tirei das bolachas o poder de me encher, e os meus maxilares deixaram de ser músculo do coração.
A minha sorte foi ter sempre um parceiro que comesse aquilo que eu deixava para trás. Em todas as fases da minha vida – na escola, na faculdade ou no trabalho -, encontrei sempre alguém que terminasse a refeição por mim. Assim, quando chegava a meio, começava a fazer o frete e ele já sabia. Era só passar-lhe o termo e o nosso trato estava selado. Levava para casa um tupperware vazio, e em mim deixava um espaço por encher que faria de tudo para que não me voltassem a magoar.


Queria deixar metade da comida no prato, até eu ser metade do que era. E, quando cheguei a esse ponto, quis deixar três quartos. Queria deixar de comer até desaparecer, ficar vazio por dentro para que não tivessem carne para atacar, quando se virassem para mim com palavras pontiagudas.


O que eu não sabia, era que alimentava um monstro maior que aqueles miúdos do refeitório que faziam guerras de esparregado sem dó nem piedade. Por cada prato que deixava com comida, era uma refeição completa com que alimentava o bicho da fome que crescia em mim. Não me apercebia que o fazia, mas foi assim que permiti que tomasse posse de todo o meu tamanho, como uma nova camada interior, que começava a agir em meu nome.


Quando eu falava, era a fome que falava por mim e, quando cantava, era ela a gritar, a pedir que a alimentassem. Fiquei sem saber como a matar. Não podia voltar a comer os cinco croquetes que me enviava a minha mãe, ou a terminar um bife sozinho sem o partilhar. Não tinha em mim a força para encostar o garfo à faca no fim de uma refeição, sem ter partilhado o prato com a solidariedade de algum companheiro. Não, não voltaria a terminar uma refeição, por isso, tudo o que fiz foi ignorar. Acostumei-me aos roncos do meu estômago – passei a falar com eles e, para minha surpresa, não eram má companhia.


Acomodei o vazio dentro de mim e a fome nunca passou. Na verdade, é ela que vos escreve agora. É também ela que me faz escrever.