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Cama 213

Diogo vivia como na música de Cazuza: “Vida louca, vida breve “, levando o melhor dela; boa comida, vinho, pesca e amor. 

A mãe alertava-o para os excessos que fazia, lembrando-lhe que tinha que preparar-se para o futuro. Diogo anuía com a cabeça e dias depois surpreendia a mãe com uma viagem, um carro novo ou uma sopa de trinta euros.

Diogo era pai, marido, filho e irmão de muitos irmãos.

Sendo ateu não agradecia  nem pedia nada a uma divindade superior. Em vez disso apelava e agradecia à sua mãe, sobretudo quando o Sporting  estava a perder . Quando estes apelos não eram suficientes (e foram  inúmeros os fracassos nessa  área) exclamava “Oh Mãe!!“! 

Quando se sentia triste era também pela sua mãe que chamava, na esperança que isso conseguisse resolver todos os problemas no mundo. A mãe explicava-lhe que o melhor que podia fazer era rezar, mas Diogo não o conseguia fazer. Ao invés disso consolava-se a abraçar a filha.

Quando refletia sobre o mundo, e discutia as suas preocupações com os amigos mais chegados no que dizia respeito ao “problema do mal” ouvia alguns deles, religiosos, argumentar que para o homem ser feliz necessita de executar ações e atos de caridade e de heroísmo que não aconteceriam se não houvesse… “o mal”. Não os contrariava, mas estava seguro que não era necessário a existência de maldade para que existisse bondade. Para ele, tratava-se do acaso, da sorte ou do azar. E, acima de tudo, de sermos bons. Nisso acreditava com o afinco.

Foi num domingo que se sentiu mal. Achou que seria uma gripe ou, ainda mais provável , uma intoxicação por algum crustáceo ou molusco que tivesse despachado na véspera. Os sintomas não só não  passavam  como iam aumentado e acabou  por ceder à vontade da sua mulher de o levar a um hospital.

Nesse dia, ao ouvir o médico falar-lhe na doença que tinha e na gravidade da mesma, sentia que estava num tribunal. Tinham-se enganado no arguido e sentenciaram-no com pena de morte. 

Não se  rendeu à sentença, nem à doença, mesmo que isso implicasse estar meses longe das pessoas que amava, pois tratar-se implicava estar internado na cama 213 do IPO. 

Numa espécie de analogia com o Filme “ La Haine”, de Mathieu Kassovitz, lembrava-se da célebre frase “Até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem. Mas aquilo que conta não é a queda. É a aterragem.”, pois era na queda que se sentia dormente, com medo e sozinho. 

Quando se conseguia levantar costumava visitar os outros condenados, onde já se faziam piadas sobre a sentença de cada um, e onde foram construídos laços de amor e amizade. Nestes laços destacava-se uma ligação muito forte com António, que apesar de mais velho que o Diogo, António também tinha um filho com dez anos, adorava pescar e quando era mais novo tinha sido boxeur.  O que os distinguia era o facto de António ser  Católico , insistindo várias vezes para Diogo o acompanhar à capela. coisa que nunca fez  dizendo-lhe que preferia acompanhá-lo quando dali saíssem, numa saída de pesca.

Diogo esteve em isolamento dois meses a recuperar de um tratamento inovador, que já mostrava alguns sinais de melhoria na doença. Assim que o autorizaram a sair do quarto foi procurar António para lhe dizer que o dia de pesca estaria para breve, mas ao deparar-se com a cama que 217 vazia, realizou que esse dia nunca iria acontecer. Não quis falar com nenhuma enfermeira para lhe dizerem o que ele já sabia e ao invés disso foi à capela.  Sentou-se, lembrou-se do livro do Woody Allen que o irmão lhe tinha deixado com o título “Se Deus existir, espero que Ele tenha uma boa desculpa” e falou num tom triste, mas forte : “ Se existires não te desculpo! “.

Voltou para a sua cama a sentir-se fraco e nesse dia decidiu que não queria voltar a sair do quarto até estar curado, não queria conhecer mais “Antónios”. Queria focar-se na sua filha, mulher e irmãos, para as poder voltar a abraçar, tocar, amar e cuidar.

Deram-lhe alta passado um mês, não porque estivesse curado, mas para que pudesse cumprir os seus desejos embora que de uma forma ainda fraca.

Esteve com todos cada minuto que lhe foi permitido, expressando a cada um o que amor que tinha por eles. 

Foi quando se sentiu pior que se relembrou que se apercebeu que o tal momento da aterragem estava a chegar. 

E foi a planar que aterrou. Deixou o mundo mais pobre e triste deixando também uma herança de amor e de vida que qualquer um desejaria ter deixado.

                                               Para a Nocha e para o Jó

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O Homem que não conseguia tirar férias

Sei que não tenho órgãos para isso, mas vou ao médico todos os meses. Não é que seja hipocondríaco, é que, de quando em vez, tenho dores que não sei etiquetar e, para quem sabe um pouco de mim, sabe que adoro rótulos. Não sei porquê mas trazem-me alguma calma e o meu médico arranja sempre um nome para aquilo que me doi, por isso, gosto de o visitar com frequência, qual dose mensal e cavalar de ansiolíticos.  

Geralmente tenho consulta dia 15, mas às vezes (muitas vezes) atrasa-se. Começa comigo a sentar-me na minha cadeira que rodopia – passo os primeiros minutos a distrair-me com as suas funcionalidades giratórias. Quando me aborreço, encaro o meu médico de olhos brilhantes a olhar-me diretamente na alma. Nesse momento, sei que já me está a analisar, à procura nas minhas entranhas da dor mensal que me trouxe ali. Evidentemente, eu começo com uma piada, à qual se segue um silêncio no qual ficamos a olhar um para o outro sem qualquer expressão fácil.

Não se ri das minhas piadas, mas eu gosto do meu médico. Ele sabe tudo, não só da verdade, mas da mentira. Ele sabe usar aquelas palavras que mais ninguém se lembra de usar, como “prostrado”, “catatónico” ou “berlinada”. Gosto de aprender essas palavras com ele, são mais rótulos que guardo para me trazer calma. E eu preciso de muita calma. Preciso tanto de calma que, por vezes, invento dores só para poder ir ao médico assegurar-me que, caso um dia tenha uma dor daquelas, já saberei o seu nome.

Este mês, contudo, a consulta está a ser bastante dececionante, sem rótulos ou nomes ou títulos ou prognósticos. Comecei por dizer “Não consigo tirar férias” e ele, como de costume, tentou analisar-me e auscultar-me as emoções. Já estamos a dia dezoito e eu sinto o tempo a passar para lá do nosso contrato mensal, de maneira que há alguma pressa a pairar nesta consulta. A culpa é minha, eu é que adiei três ou quatro vezes, mas a verdade é que não arranjei tempo para me sentar com ele antes. E, mesmo aqui sentado, estou de estômago vazio, porque esta seria a minha hora de comer. No restante tempo do dia, são as horas que me comem a mim.

Contudo, nesta consulta, o tempo também me parece consumir como uma iguaria psicótica. O médico já me analisou e agora ficámos a olhar um para o outro há minutos sem fim. O meu estômago ronca de vez em quando, eu fungo porque estou a ficar constipado e, quando os minutos se somam em horas, começo também a bocejar. O tempo passou e entretanto já é de noite, quase dia dezanove e eu ainda sem saber o nome disto que me doi.

Só sei que me dói aquilo que arrasto. Tudo depende de mim. A fome depende de mim. O descanso depende de mim. O corpo depende de mim. A pele depende de mim. A felicidade depende de mim. Eu! Eu dependo de mim. Mas eu queria depender da minha mãe. Do meu amor, de quem me ama. Não queria ter de ser forte e emancipado para estar do lado certo do jogo. Queria ser fraco e deixar-me ir, desistir de vez em quando e assumir derrotas como já assumi um namorado – que assumir derrotas seja tão célebre como um namorado assumir um namorado! Que viver não seja estar no lugar da frente de uma filinha pirilau de dependências que badalam e pendem agarradas a nós, arrastadas pelo chão  a chamar o nosso nome constantemente.

É isso que me dói este mês. Se é verdade, se é mentira, não sei. Mas com ou sem rótulo, esta foi uma boa consulta, obrigado.

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Carta à Dor

Querida dor, 

Espero que esta carta te encontre bem. Já partilhámos muito e conhecemo-nos bem. Já me embrulhei em ti e já – quase – esqueci que existias. Sei que és necessária. Não há vida sem ti e respeito isso. Tens, certamente, mais utilidades do que poderei imaginar. Mas, desculpa-me a franqueza, és tão inconveniente. Venho, por isso e por este meio, pedir-te gentilmente que reagendemos esta estadia. Nem é má vontade, é falta de estofo. Não há nada que te amorteça. 

A vida está agitada e pede muito de mim. As peças do malabarismo não me cabem nas mãos e tu és a mais pesada. Não me dá jeito receber-te agora. Não estou capaz de o fazer como mereces. Não me é conveniente ter de abrir agora uma cratera em mim para te acomodar. Nem me apraz a ideia. Leva tempo, dá trabalho e o retorno é duro. O terreno está sensível para tamanha intrusão. Não tenho meios para cavar mais fundo, não tenho onde te guardar e não tenho tempo para te sentir. Não me cabes na agenda, quanto mais no peito. Perdoa-me esta falta de vontade de sofrer. Ouso pedir-te, por gentileza, que pares de me esmagar o peito. Não é por capricho. Atrapalha-me a respiração e preciso de fôlego para o resto. Não me tomes o corpo, que eu preciso que ele me carregue. E não te agarres à cabeça, que é ela quem me guia o corpo. 

Como um moinho, o corpo e a cabeça moem. Mas já pouca farinha se pode fazer daqui. Desapareceu-me tanta coisa em tão pouco tempo. Primeiro roubaram-me tralha cara. Custou-me dinheiro. A seguir foi-se o meu amor. Saiu mais caro. E não há polícia que me aceite a queixa. 

Distraí-me. Quando voltei a olhar já não estava lá. Sumiu. Fui despejada sem aviso legal. O coração que habitava não renovou contrato. Percebo pouco destas burocracias, talvez devesse ter estudado melhor as entrelinhas do contrato de arrendamento. Talvez devesse ter cuidado melhor do espaço que habitava. Eventualmente a porta abriu-se para me empurrar de lá para fora. Sem malas, sem tempo, sem tapete onde pousar os pés, sem ter para onde ir e sem despedida. Essa ocupa agora o lugar que queres para ti. Podes, por favor, voltar noutra altura?

Este mercado imobiliário é ainda mais complexo que o das grandes cidades. Nada poderá ser imóvel quando os poisos são corações. Vi-me obrigada a mudar-me de novo para dentro do meu coração. Voltei sem nada. Há pouco espaço aqui dentro para mim e não sei como ordenar o despejo de quem o enche. Escancarei as portas para o convidar a sair, mas os pés parecem pregados ao chão. Pode ser que, num destes dias, uma corrente de ar seja forte o suficiente para limpar esta casa.

Até lá, querida dor, preferia não ter de te acomodar aqui. Nunca te pediria a ti primeiro, tu sabes. Tentei afastar primeiro os restantes hóspedes, mas sem sucesso. O stress disse estar demasiado embalado para travar a corrida a meio. Perguntei qual era a meta, respondeu-me em inglês. A pressão tornou-se uma espécie de nó cego impossível de desfazer, o que complica o seu despejo. O cansaço está demasiado cansado para me responder, quanto mais para se arrastar para fora de mim. A nostalgia pareceu satisfeita com a ideia de passear longe durante uns tempos, mas não entendeu inteiramente o pedido e ingressou numa viagem ao passado que promete demorar. Daqui até à última paragem, passeia-se pelas minhas calçadas de dentro, que já mal podem com pés de lã. A saudade tem arrendamento vitalício. Tornou-se pilar do edifício que habitamos. Entenda-se, eu. Despejar a saudade seria como despejar uma idosa querida num dia de chuva: feio. Terá sempre aqui o seu canto. Certo que há outras coisas cá dentro, mas preferia não as dispensar, que já mal me chegam para assegurar o funcionamento mínimo. Não me peças que atire as muletas ao chão para coxearmos juntas. Não há osso que segure carne desfeita. 

Desconheces o trabalho que me dá manter este condomínio de dentro. São demasiadas reuniões, cedências e consertos constantes. Estou em obras. Sei que se te hospedar vens pisar o estuque caído e desarranjar o que já está um caos. Já te recebi e continuarei a receber, mas podes marcar com antecedência, para poder preparar-me para a tua chegada? Faço-te a cama se souber que vens. Arranjo-te entretém e faço-te companhia. 

O condomínio está pouco habitável, lotado com entulho e hóspedes teimosos. Só sobras tu. E sobra pouco de mim para ti. Podemos reagendar para uma primavera bonita?

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Conto

Este

Vivo num país que se vê perfeito no papel, mas que a realidade mostra partes feias.

Vivo num país onde tudo acontece e pouco muda.

Vivo num país que deixa partir os seus filhos e filhas para ganhar mundo e prefere mantê-los lá fora.  

Vivo num país que acredita piamente que “Santos da casa não fazem milagres”, ainda que o milagre seja regressar e ficar. 

Vivo num país liderado por pessoas que não veem para além da sua ambição, e que almejam um futuro construído sobre as costas dos mais frágeis.

Vivo num país onde a dor é surda e a culpa morre, ainda e sempre, solteira.

Vivo num país onde se venera o que vem do Leste, ainda que tudo o que aconteceu a Este seja passado.

Vivo num país que espera ter resultados diferentes, mas continua a fazer os mesmos erros. 

Vivo num país onde ter esperança é difícil e pensar o amanhã é um luxo.

Vivo num país onde se espera pelo futuro e não se corre para desenhá-lo. 

Vivo num país onde não se vive, apenas se sobrevive.

No entanto, 

Vivo numa cidade que me dá o mundo como vizinho, 

que te recebe de braços abertos, mas que não te abraça.

que é pequena no tamanho, mas enorme no coração das pessoas.

onde cada bairro conta uma história e cada esquina te transporta a um sítio diferente.

Eu, 

Vivo numa rua onde as pessoas dizem bom dia de janela a janela,

que se anima com os risos e nas brincadeiras das crianças do parque,

que respira vida a torto e a direito. 

Vivo nesta rua comprida, plena de sombras onde a cada noite contamos estrelas cadentes.  

Vivo aqui onde o futuro é possível, e onde a esperança renascida é confirmada a cada piscar de olhos da tua pequena criatura.