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2023

O meu 2023 estava sob aviso amarelo, quando ainda vivia os resquícios de 2022. Dois mil e vinte e dois, escrito letra a letra é um ano que o papel (ou, melhor, o ecrã) me devolve em desamparo. Nunca me hei-de habituar ao passar do tempo, tão rápido passa que depressa parece tão distante. Talvez por isso tenha sentido a necessidade estranha de escrever isto neste preciso momento. Deveria estar a trabalhar, mas não tiro muito tempo para refletir no que aconteceu ou tem acontecido. Tenho a tendência para me deitar à margem do que acontece, sem observar com grande atenção o que se dá nas correntes daquilo que se passa. Talvez possamos começar por aqui com o que esteve de errado em 2023, ou talvez possa prolongar um pouco mais esta introdução. 

Terei de escolher a segunda opção, lamentavelmente. A verdade é que não poderei avançar sem antes avisar que, neste ponto, não poderei fazer promessas ou garantias sobre o que irei escrever a seguir. Nem sequer consigo assegurar que é para alguém que escrevo, pois quem sabe este não acabará por ser mais uma tentativa falhada de reatar a minha paixão pela escrita. Por esse motivo, peço apenas paciência ao longo desta reflexão, poderei perder-me ou até mesmo perder o sentido, e não quero que se assustem porque hoje, a 29 de dezembro de 2023, estou bem. 

Gostava de ter algo a que me agarrar para começar este texto, mas não mantenho diários e tenho tido uma vida demasiado corrida para apontar os meus pensamentos em algum lugar para além das notas de voz do telemóvel. Um facto curioso sobre estas gravações é que elas ficam automaticamente guardadas com os nomes das ruas, avenidas e lugares em que estou quando as gravo. Por exemplo, uma das primeiras notas que gravei este ano data o dia 1 de janeiro e ficou guardada com o nome de um restaurante de sushi em Alvalade. Nela, tenho a voz cansada das celebrações todas que a essa altura do ano dizem respeito e, apesar de não me recordar das suas circunstâncias específicas, sei que ansiava muito por ir para casa repousar. Ao gravar, cantei uns versos românticos sobre querer passear à margem do rio, abraçar e beijar a pessoa que eu amo – ele mora ali perto e havíamos passado muitos dias na companhia um do outro. Cantava porque 2022 tinha terminado numa nota de amor e eu começava um novo ano com o coração em transbordo do que há de melhor.

Mais à frente, numa nota de catorze de fevereiro, na Avenida das Forças Armadas, ouço-me cantar no carro. Também tinha a voz cansada mas, neste caso, cantava em suspiro, num daqueles tons que sei que me levam a torcer a cara em dor. No meu canto, perguntava:

Cadê a fonte de beber, a fonte de sonhar, a fonte de viver 

Cadê a fonte em que bebi, a fonte em que sonhei, a fonte que eu perdi.

Foi por volta desta altura que deixei de dormir. Se não me engano, esse foi precisamente o dia em que levava mais de 48 horas sem desligar o cérebro. Foram dias em que eu chegava à noite com perguntas e ela devolvia-me horas para pensar. 

Tinha passado os meses anteriores a adiantar o Estado da Arte da minha tese de mestrado, sem grandes saídas ou convívios que me pudessem distrair e recordar que a vida tem coisas que valem mais a pena que um diploma. Tinha-me proposto a fazer um projeto visual, do qual fazia também parte uma componente teórica e, nessa altura, estava a desenvolver o storyboard daquilo que viria a ser o meu projeto. Estava entusiasmado porque nunca tinha tido grandes dificuldades nos estudos e, ao longo de todo o ciclo, tinha tido resultados suficientes para me acamar em seguranças.

Eu queria falar de como vejo a sociedade de trabalho em que estava inserido. Tinha muito interesse em explorar a dualidade entre querer contribuir artisticamente para um mundo em que se mede sucesso pelas palpitações cardíacas. Curiosamente, foi neste processo que descobri que o meu coração tinha deixado de bater da mesma forma. As insónias chegaram no frame específico de um plano, em que me desenhava sentado à secretária, num cenário que simulava um escritório. Foi nesse desenho que me dei conta de como me via, inserido na vida que tinha escolhido para mim, mas que eu insistia que me tinha escolhido ela a mim. Foi também nesse desenho que me dei conta que o que eu queria contar no meu projeto era uma história altamente defeituosa e que a minha visão para ela não era nada mais, nada menos, que ilusória. Foi nesse desenho que deixei de dormir.

Se me perguntarem por onde andei entre fevereiro e abril, a verdade é que não sei responder. Recorreria às minhas notas de voz para me auxiliarem mas, ao que parece, foi um período bastante silencioso. Sei que em fevereiro fiz uma viagem a Malta com família e talvez o saiba porque tenho fotografias disso e guardo na memória a palete de cores desses dias: o céu azul e o castanho terra dos edifícios. Sei também que, nesse período, deixei de mexer na tese porque a queria tirar da cabeça, para que pudesse descansar em paz. Contudo, cada canto do meu cérebro estava absolutamente contaminado com a minha imagem à secretária, com os autores do Estado da Arte e com o trabalho que queria cantar. 

Trabalho, trabalho, trabalho. 

Foi o que fiz, ao fim e ao cabo, nesses meses. Tinha acumulado clientes e mantinha o meu emprego a tempo inteiro. Procurava ir ao ginásio e ocupava todo o meu tempo livre a conviver nos bares, nos cafés, nas ruas e nas cidades que tinham bares, cafés e ruas. Ao contrário do que canta o B Fachada, não me sobrava tempo nenhum para cantar. Nesse período, o avanço da tese não estava a correr bem e a cama de confiança que as minhas boas notas me tinham feito parecia quebrada. Revirava-me nela pela noite e acordava acelerado a cada vinte minutos em que o meu coração parecia deixar de saber bater. Quando não tentava dormir, tentava estar acordado para trabalhar ao longo de todas as minhas horas longe da cama. 

Algo curioso sobre este ano é que, apesar de o guardar em mim como, possivelmente, o ano mais difícil da minha vida, poucas são as vezes que me recordo de chorar. Em abril, sei que me emocionei numa viagem que fiz a Itália, destinada ao passeio e ao namoro. Olhando para trás, esses dias foram um ilhéu no meu ano, no qual pude adormecer sem antecipar e acordar sem adiar. Outras vezes que me recordo de chorar estiveram maioritariamente relacionadas com a minha interação com a arte, como ouvir o álbum Javelin do Sulfjan Stevens, ver o filme Past Lives ou até ver a morte da princesa Diana na série The Crown. Contudo, por muito difícil que tenha sido o ano, sei que chorei pouco por ele.

Tenho uma nota de voz de abril, gravada na Avenida Doutor Mário Soares 35. Eu perguntava numa canção o que é que existia entre a luz e aquilo que mais me doía, uma vez que a luz era o que eu procurava e o que mais me doía eu sabia mais ou menos o que era. O que me importava saber era o que separava as duas coisas e que distância teria de percorrer para ir de uma para a outra – sair da noite para o dia, ou da madrugada para a alvorada, como falava no meu projeto. Ou mesmo como ir da Avenida Doutor Mário Soares 35, onde trabalhava, para o palco – da secretária para o espetáculo. 

Estas gravações são úteis agora precisamente por isto. Não só algumas delas se tornaram composições a sério e estão agora no forno para se tornarem músicas, como me ajudam a perceber por onde andava o meu corpo e por onde andava a minha cabeça, ao longo do ano. Assim, consigo saber que, a 1 de junho, enquanto passava pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cantava sobre como a vida é múltipla, é um trabalho com retalho, um pastiche desorganizado, sem lei nem regra. Há de tudo um pouco. Um dia estou a rastejar pela semana sem conseguir dormir, no outro estou em Alvalade ou no Campo Grande a passear de mão dada, como se fosse o 25 de abril.

Ou, por exemplo, a 6 de julho, numa nota com o nome Avenida Maj Gen Machado de Sousa, emulava um canto a pedir ao meu amor que me pegasse na mão e visse como estou incompleto – o patchwork estava com retalhos em falta. Nesta altura, estava na fase de filmagens do meu projeto, o momento era de duvidar de qualquer capacidade ou potencial que ele pudesse ter. Desgastava-me a retrospectiva e as prévias do resultado final, com elas subiam à superfície perguntas que pensava ter tão escondidas, que nenhum ecrã me poderia responder. Começava a entender que a pouca fé no meu sucesso tinha raízes tão fortes que, quando desenterrava o projeto do abismo daquilo que tinha para dizer, elas teimavam em vir atreladas. Esse era o abismo entre a luz e o que me doía, e o que me doía era a visão que tinha sobre mim mesmo. 

Foi à volta desse dia que eu me despedi. 

Dois meses mais tarde, a 6 de setembro, um dia depois de começar a trabalhar num novo lugar, numa nota chamada Lisboa Santa Apolónia, cantava o seguinte: 

Acho que descobri a razão da minha tristeza

Foi nunca ter-me conhecido em profundeza,

Achava que estava bem só a estar

Afinal faz falta o que faz o coração acelerar.

Apesar do improviso, têm sentido estas palavras. Na mudança do trabalho, consegui puxar o fiozinho da tristeza até encontrar de onde se criava, ao longo de cinco anos, aquele pequeno incomodar. Aparentemente, de tanto jogar pelo seguro, acabei por nunca me aventurar verdadeiramente no conhecimento daquilo que verdadeiramente me fazia feliz – que é aquilo que me dá ritmo ao coração. Ritmo sendo exatamente a palavra certa, uma vez que é de música que estamos a falar. E eu tinha encontrado esta resposta a 31 de agosto, em Santarém, quando dei o meu primeiro concerto. Foi, nas palavras da minha psicóloga, um momento “estrelar”, em que tudo parecia fazer sentido. Tinha ido da secretária ao palco e, durante 45 minutos, soube o que realmente me importava. A partir daí, tudo foi diferente.

Sei que vamos apenas em setembro, mas pouco gravei no que restou deste ano. Pelo menos, pouco que tenha relevância para o que vos vim aqui contar. Tirando alguns casos, como a 5 de outubro, numa gravação de voz que tem o nome de um restaurante em Queluz, que musicava um poema que me ocorria: 

Estou tão cansado que o corpo é uma frase sem gramática, 

Quero pontuar o que ainda resta, 

Dar sentido ao que presta 

E saber o que há em mim.

Outras gravações dizem respeito a ideias para composições musicais mais ritmadas ou a notas sem enunciação de palavras, para futuros trabalhos. Não quero com isto dizer que setembro foi o meu final feliz, mas a verdade é que foi quando voltei a dormir e a temer um pouco menos a noite. Não arranjei um trabalho dedicado à música, ou sequer à arte, mas os saborosos ares da mudança restauraram em mim o que pensava há muito estar morto. Reuni-me com detalhes que pensei serem dispensáveis, como apresentar-me de novo pelo primeiro e último nome, associar um novo cheiro à rotina, chegar a casa a horas diferentes, tocar em diferentes partes do mundo ao rir com alguém novo e estranho, entre outros. Detalhes como estes curaram o desgaste de um dia-a-dia passado e algo em mim sarou ao estar com quem não sabia a minha data de nascimento, que não como queijo e que canto. Fez-me lembrar Berlim.

Berlim. Berlim. Berlim.

Sempre que consegui dormir este ano, sonhei contigo. Cantei sobre ti, escrevi sobre ti e tinha-te na mente quando defendi a minha tese a 12 de dezembro. Sempre que fecho um ciclo, é em ti que penso. Apesar de não planear voltar, guardo de ti a mais bonita memória de liberdade e talvez por isso seja a ti que recorra quando me sinto encurralado. Quando terminei o ciclo da tese, ouvia as palavras finais do júri como se caminhasse pelas ruas de Kreuzberg, sozinho a um sábado à noite. E o cheiro da vida noturna era a liberdade a aproximar-se, o fim da insónia contínua que tinha assombrado o meu 2023. Todo o ano me tinha levado até àquele ponto e, por fim, pude dormir com um pouco mais de paz. 

Para o ano que vem, será difícil concretizar tudo, mas quero deixar escrito aquilo que desejo. Nem sequer costumo fazer este tipo de listas mas, uma vez que escrevi isto como uma nota para o futuro, mal não fará ter algo a que recorrer quando me sentir aborrecido. Segue a lista: quero escrever, compor, produzir e lançar música, ler dez livros, escrever um texto por mês, aprender mais sobre som, voltar a ter aulas de canto, aprender alemão, fazer voluntariado, sair da europa, escrever um guião, celebrar os 50 anos do 25 de abril, ler a obra poética de José Afonso, ler a obra poética de José Saramago, quero voltar a sonhar com música, quero acreditar no que sou, ter paciência, ser bondoso, fazer rir, fazer pensar, dar amor e saber receber.  

Claro que nem todas estas metas podem ser medidas de forma concreta, mas servem de pequeno lembrete para aquilo que penso que me faltou mais este ano. Registado aqui em jeito de 12 passas o que mais desejo para este novo ano. 

Agora, está na minha hora. Não consegui prometer nada no início deste texto mas, a mim mesmo, jurei que seria sincero. E, nesse sentido, devo confessar que pensava que vinha aqui desabafar. Esperava mesmo inserir umas frases poéticas sobre o meu 2023, embelezar tudo um pouco da forma como gosto, mas acabou por vir tudo em jeito de história. Peço desculpa aos desapontados. Mas a verdade é que neste ano relembrei-me que, quando era pequeno, ambicionava viver a minha vida de forma a que desse uma boa história para contar – de forma a que ela em si fosse uma obra de arte. Tinha-me esquecido disso e talvez este texto seja uma forma de resgatar esse desejo. 

Antes que vá embora, quero dizer que este texto não é um aviso, nem tem moral nem serve para nada mais se não documentar o ano em que fui apenas o meu cansaço. Talvez queira reler um dia para não repetir determinados erros, ou talvez sirva apenas para estar à mercê do aborrecimento de quem se cruzar com ele. De todos os modos, acabou. 

PS: Ao soar da meia noite de 2023, não consegui evitar chorar. Ao início pensava que seria um pequeno emocionar pela beleza que é ver foguetes no céu, mas os minutos passaram e, simplesmente, não conseguia evitar o soluço. Afinal, chorei por 2023. 

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Confessa-te

Confessa-te. 

Confessar faz bem à alma, mas paga para isso.

Infelizmente, bem tarde na vida percebi que é essencial ter uma hora por semana para nos confessarmos. 

Porém, ao contrário da religião católica, que só se interessa pelos pecados, aqui a ideia é vomitar em cima de alguém coisas que não passam da garganta para baixo, mas também não deslizam para cima. Prender palavras é bem mais perigoso do que ficar constipado, eu diria que mais grave que otite. Em principio otite trata-se com antibiótico e ao fim de três dias passa. Palavras presas causam cancro de alma. 

Frequentemente o Ser Humano acaba por vomitar palavras para cima de um amigo próximo, daqueles que chama de melhor amigo. As vizinhas também serviram esse propósito em tempos. Sendo que, era pouco aconselhável e hoje em dia dificilmente acontece porque vivemos em caixotes com portas blindadas à comunicação. 

Podemos, ainda fazer o que possivelmente eu mesma estou a fazer aqui, escrever um texto e vomitar essas palavras que estão a cultivar infeções de alma, no entanto, posso certificar-vos que já fiz disso tantas vezes e é necessário mais do que um texto para desinfetar ou mesmo curar o cancro de palavras presas. Medicina não é o meu forte, perdoem-me aqueles que se possam ofender com a minha comparação. 

Confesso que ficaria bem mais preocupa antes, há uns tempos, porque qualquer coisa que escrevesse, ficava eternizada e eu cultivava outra coisa para além de prisão de palavras: medo das palavras soltas dos outros. Sobretudo das que se impunham contra mim. 

Penso que palavras presas e diarreia de palavras possam ser doenças interligadas, mas esta espécie de crónica serve apenas para falar sobre os benefícios de uma garganta livre de palavras usando uma hora por semana para o ato de confissão. Sobre isto, estamos entendidos que é necessário manter a garganta livre de palavras, não queremos jamais ficar com infeções ou cancros de alma provocados por palavras encravadas. 

O último ponto e com esta me vou, é: paga, porque a vizinha do lado ou o melhor amigo/ a melhor amiga nunca se sabe quando se passará para o outro lado levando as tuas palavras com ele ou ela. Se pagares, pagas também o silêncio. 

Confessa-te e paga para isso, ficarás mais leve da carteira, da alma e da garganta!

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Carta ao Amor Paralelo

Amor Paralelo:

Vi-te pela primeira vez num dia de sol, estavas encostado a um muro e o sol entrava por uma frincha que te iluminava o rosto. Ao de leve. O sol. Tu não. 

Tu, refletiste o raio e irrompeste-me alma dentro para ficar para sempre. Porque o amor fica. O amor serena. Encontrei em ti paixão, fogo e foi quando isso aconteceu que me destruíste ao ponto de correr mar dentro para ver se salvava alguma parte do corpo que incendiaste. E as ondas levaram as chamas trazendo a serenidade. Pensei, juro, que nesse dia fosse com o mar aquele raio de sol que te iluminou e com o qual me irrompeste. Porém, a luz ficou. Serenei e aceitei-te na minha vida de uma forma estranha, tão estranha que só pode pertencer a outro mundo. Neste, não há lugar. 

Aceitei e fui transparente. Aceitei e nenhuma dor mais aconteceu até hoje, o raio continua lá tu estás iluminado com ele, mas ao contrário daquele dia já não o refletes. Absorves, e eu não compreendo. 

Onde está a transparência que me fez aceitar? 

“A minha alma caiu partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.”

E eu?

Fiz-me “(…) em mais pedaços que a loiça que havia no vaso.”.

(Álvaro de Campos) 

É quando reparo isto, que saio desse mundo paralelo que nós criámos para juntar os pedaços. Quando saio, o portal fechou, tal qual triângulo das bermudas, só abre quando a magia acontece, como o raio de sol que te iluminou e refletindo esse raio o portal abriu. 

Entretanto, estou ocupada a juntar os pedaços da loiça. O amor ficou, estou com a mesma serenidade a juntar os pedaços da loiça até ver. 

Da sempre tua

Ilusão 

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4am

Durmo sobre o telemóvel.
Vestido, só do corpo
E das âncoras nas mãos
Que me prometem à terra
Aberta a receber-me.

Durmo entre o ecrã
E o relógio das quatro da madrugada.
Arrasto os ponteiros para me poder tapar,
Mas nem a matéria me cobre,
Nem eu a satisfaço.

Durmo por cima de todas as horas
Que perco dentro da caixinha preta,
Onde se esticam na vertical
Como plasticina que acelera o coração.

Deixo-me acordado,
A medir do corpo o que me falta,
Para esticar o que valho
Até tapar a luz desse monitor.

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Ao Coração

Caro Coração:

Percebeste agora que o amor tem várias formas e que nele cabem tantos seres. Não é tarde, mais vale agora do que quando parares de bater.

Percebeste que aceitar essas tantas formas te sossega, te faz encontrar mais motivos para continuar a bater. 

Sabes agora, que não precisas de estar em contato físico com o pé para o sentires contigo, porém que amas as suas mensagem que chegam através do sangue, o tal do mensageiro perfeito que nunca desilude nem deixa menagens por entregar. Não há falta de rede que lhe pegue, nem problemas tecnológicos, porque ele é orgânico. 

Felizmente, Coração, percebeste que orgânico é viver cada um dos momentos plenamente, em estado de graça. Sem estados de culpa. Felizmente, estás em paz com as pontas do corpo que não tocam mas sentes, com a alma que te alimenta e com as ideias que outrora pareceram turvas, confusas e que te faziam trabalhar num ritmo que já não estavas a aguentar e por isso ameaçaste parar. 

Sabes agora, que se parares afetas tantos, que nem mesmo passam por ti todos os dias. Sabes também que esses são parte de ti e te serenam, mesmo que longe e aparentemente sem contato. 

Meu Coração. 

Da tua Alma

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Os Bichos

Um bicho apresentou-se e disse-me que veio ao mundo para me comer os olhos. Pedi-lhe que me deixasse ver o mundo antes de fazer da minha vista o seu repasto, mas a travessia antecipou a travessura, aguçou-lhe a vontade de comer o que vi. Encheu a boca com o meu mundo, podia imaginá-lo a inchar a cada dentada. Que fartura. Nem tive tempo de o ver, não sobram olhos para a terra comer. Não saberia descrever – quanto mais desenhar – o bicho que veio comer os olhos que a terra já não vai provar.

Os problemas, como os bichos, multiplicam-se: e se agora me esqueço de tudo o que vi? E como verei, agora, outros bichos que me queiram engolir outros pedaços? 

E se vier um bicho que me coma os ouvidos, como poderei ouvir chegar outros bichos que me venham devorar outros sentidos? 

E se vier um bicho que me coma o nariz e eu não der pelo fedor da decomposição de outros bocados meus? 

E se vier um bicho que me coma a ponta dos dedos, que ouse lambuzar-se com o meu tato, que outra forma me resta para dar pelos buracos que a bicheza se atrever a abrir em mim? 

E se vier um bicho que me coma o coração, onde fica a vossa casa depois da digestão? 

E se vier um bicho que me coma o medo? Já terá vindo outro comer a carne sobre a qual me sento. Se quem tem cu tem medo, só quem não tem cu pode não ter medo.

E se vier um bicho que me coma a vontade? Chamo-lhe Blimunda.

E se vier um bicho que me coma o caminho, como saberei onde pôr os pés? E se vier um bicho que me coma os pés, por que caminho me arrastarei?

E se vier um bicho que me coma a voz? Como direi “que chatice, não ser mais nada”?

E se vier um bicho que me coma a memória? Esqueç

E se os bichos não deixarem nada, serei bicho como eles? 

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a menina do vestido bonito

O dia em que a ouvi ser apelidada “A Menina do Vestido Bonito” não foi o dia mais feliz da sua vida, mas foi um dos primeiros em que lhe ouvi uma gargalhada sem rebentos de dor. Era Verão e ela plantava flores na roupa, um vestido que a cobria até pouco abaixo dos joelhos bronzeados; no rosto, levava um sorriso germinado como se estivesse a reaprender a sorrir como gente. Era lindo, de facto, o jardim que levava posto – as flores cor-de-rosa, laranja, amarelo e até azul tinham tanto a dizer que se atropelavam no falatório, mas tudo bem, o caos também pode ser bonito.


Mesmo não falando, todos sabiam da busca incessante a que ela se havia dedicado nos meses anteriores. Acordada, a menina do vestido bonito passava as noites à procura de si mesma – atrás da cómoda, debaixo da cama, entre as roupas penduradas no roupeiro, etc. – não estava no seu sem fim de coisas que, por muitas que fossem, não havia meio de lhe encherem a casa . Quando se olhava ao espelho, via uma sombra e, quando via a sua sombra, não se via a si. Tocava-lhe para perceber se era ela que estava a ser projetada contra a parede, se a falta de luz tinha feito dela a própria sombra, mas não se sentia do outro lado do toque. Não se sentia ninguém, presa num trânsito mental, à espera da sua vez de ser. Trocou a noite pelo dia, sem se aperceber. Era na cama que se escondia nas longas horas do sol e era à noite que saia do seu lugar confortável e retomava a sua busca – quem sabe, evitava a luz para evitar a sombra.


Não se lembrava de si, mas o seu problema não era de memória. Estava doente do tipo de tristeza que se aloja no coração e por aí fica a libertar veneno continuamente, de espinhos afundados no existir, até que ele deixe de o ser. Não sabia o que fazer ao corpo que sobrava de si, nem em que momento exato lhe tinham assaltado o templo e roubado as janelas, as portas e todas as saídas.


Ainda que triste, procurou por si nesse corpo que tinha deixado para trás – tinha todas as camadas que precisava para funcionar e, acima de tudo, as mãos e os músculos intactos. Pensou que, se pusesse a sua maquinaria interior a trabalhar, talvez ganhasse vida por dentro e, desse modo, aos poucos, foi conquistando o dia. Começou a pedir à noite para vir mais tarde, porque precisava da luz do sol para ver onde punha as mãos enquanto as sujava com argila e construía pequenas peças de cerâmica. Tinha medo de se estar a iludir com a dedicação mas, com a primeira peça que terminou, não quis acreditar no que via. Naquela pequena obra, a menina do vestido bonito viu-se a si – ou parte de si. Olhou de todos os ângulos, viu como era opaca, forte e impenetrável, tinha uma beleza simples mas que impunha respeito e, acima de tudo, estava completa.


Foi como se desenterrasse o mais valioso dos tesouros, a menina não parou mais de explorar o funcionar da sua máquina. Ouvia-se pelo dia o seu motor interno a trabalhar, como se se esforçasse para iluminar uma cidade inteira – e era isso mesmo o que fazia, ladeava as estradas suas com os mais altos candeeiros, para não deixar qualquer canto escuro. No fundo, é assim que se combatem sombras. Aos poucos, com o malabarismo gracioso entre a argila e a água, descobria novos pedaços de si – alguns deles, já se tinha esquecido que existiam, outros estavam à espera por nascer.


Juntou cada uma das suas obras bem perto do seu coração, amontoadas num pequeno caos emocional que era tão bonito e tão fértil, que não deixou de aumentar. Assim, a menina cresceu tanto que estranhava tudo – a cama, a roupa, a casa, a chuva, a terra –, tudo lhe parecia pequeno e estreito. À medida que se encontrava, também as pessoas pareciam vê-la pela primeira vez. Tornou-se tão grande e visível, que era maior que o mundo – já nem a roupa lhe servia. Com tanta cerâmica para consertar o coração, não tinha mangas que lhe passassem nos braços, golas que lhe passassem na cabeça, nem botas que lhe assentassem nos pés. Decidiu-se, então, a fazer a sua própria roupa e começou por plantar um jardim. Estava ainda na fisioterapia do riso quando o vestiu pela primeira vez e foi nesse dia que lhe chamaram aquilo pelo que a conhecemos hoje. A menina do vestido bonito, cujo nome não deve ser confundido por fraqueza. O vestido tem flores mas também tem raízes e espinhos – para que não se esqueçam que não se pode partir um coração coberto de flores.


Já não tem dívidas de amor, nem medo das sombras – de tal forma, que pintou as paredes de amarelo para as ver melhor – assim não se perdia no escuro. Diziam-lhe que não era bom dormir com cores frenéticas nas paredes, que não combinavam com a mobília, que era demasiado para a vista, “experimenta um bege”, diziam. Mas ela não se importava. Como ela tinha aprendido, também o caos podia ser bonito.

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Fogo de Artifício

Aquele auge no qual não sobra espaço para o vazio. Eu sou esse auge.

Passei anos da minha vida sem atear fogo com medo do incêndio e por isso nunca me dei ao prazer de ver tudo a arder. Anos e anos a evitar o confronto, a prevenir a discussão, a dar uma distância de segurança. Eu era a distância de segurança entre o fogo e o rastilho. 

Cansei.

Os quarenta trouxeram-me a crise que eu nunca achei real. E nem quarenta tenho. Como será quando lá estiver? Nem quero imaginar. Porque o filtro que outrora me era orgânico dissipou e da minha boca foge o fogo que se vê no céu.

Entre um e outro estava eu, acalmando as feras, impedindo rugidos e certamente sem qualquer tipo de disparo. E uns e outros viveram felizes para sempre. Ou até que eu, eu mesma, conseguisse segurar o fogo.

O que nunca, mas mesmo nunca, me apercebi é que “cão que ladra não morde” mas os latidos acabaram sim por morder, mas só a mim, de tanto bater no meu tímpano. E como vozes de burro não chegam ao céu, elas ficaram apenas comigo. A burra mor que nunca, mas mesmo nunca deixou atear fogo. 

E quando a própria virou cinza, esperei que a distância de segurança que eu era, já inexistente virasse explosão. Como o fogo e gasolina. Ao invés virou: Fogo de Artifício.

Como pude eu perder tal espetáculo? 

De hora avante, vou deixar o fogo atear e esperar por espetáculo semelhante! 

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Poema

existe um poema 

que não é meu

nem teu

podia ser nosso

existe um poema

que se esqueceu do nome

e não sabe bem onde

esqueceu os seus versos

existe um poema

com tacto e gosto

literalmente meu

vagamente teu

existe esse mesmo poema

de tinta sem cor

de amor preenchido 

com vida nos versos

existe um poema

aquele poema

que aconteceu, existe 

e ninguém o escreveu

existe um poema 

dois corações

emoções mais que muitas

existimos

existe este poema 

um poema

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O Vazio

Ela perdeu um amante e esse era o vazio mais difícil de preencher.

Margarida passou uma década a trabalhar. Não tinha marido, nem filhos e estava feliz com isso. Era sua ambição ter uma carreira. Estava decidida e nada a abalava. 

Não a abalou as vezes que lhe perguntaram porque não tinha filhos, nem mesmo as que lhe disseram “Vais-te arrepender se não os tiveres”. Nada de abalos por ouvir que não era madura o suficiente por não ser mãe, ou mesmo quando as perguntas eram: “E marido? Para quando?”. 

Tudo o que interessava a Margarida era a carreira. Então, de facto, era abalada quando não lhe davam o valor que merecia. Quando a ultrapassavam, ou se por acaso levavam os louros que lhe pertenciam. Aí sim, Margarida virava fera. Não era para menos. Tinha 26 anos, nunca reprovou um ano, fez licenciatura, mestrado, doutoramento, recebeu bolsas de mérito e passou todos os segundos da sua vida dedicados ao laboratório.

Pesquisou para aprender. Defendeu uma tese e uma outra pesquisa, defendeu ainda outra tese e uma nova pesquisa só não se soube defender. 

Durante uma carreira exemplar foi dando o seu trabalho, ideias, suor, lágrimas e até as suas alegrias em prol da ciência. Achava desde de muito nova que seria uma cientista reconhecida. Queria de facto ajudar o mundo com as suas descobertas. Certo, que queria uma carreira, mas também a queria com significado: ajudar o mundo. 

Aos 26 continuou de bolsa em bolsa desta vez por sistema, investigação em investigação. Sentia-se muito sozinha, porém, a certa altura, um colega de trabalho aproximou-se e passaram a partilhar os seus dias.

Dos dias, passaram a partilhar trabalho, ideias e sucessos. Tudo parecia perfeito. Uma dupla infalível, um casamento perfeito: dois cientistas em prol da ciência com carreiras em ascensão. 

A dado momento, e porque não eram só as carreiras que cresciam, também as partilhas aumentaram. Os dias de Margarida e Diogo passaram a ser mais do que trabalho, ainda que Margarida se mantivesse fiel a si mesma: nada de amor/ casamento e muito menos filhos. 

10 anos passaram num abrir e fechar de olhos. E aos 36 Margarida percebeu que Diogo desapareceu de um dia para outro, levando com ele os louros de todo um trabalho. 10 anos dos quais, 8 juntos, voaram com Diogo. 

Ela, com 36 anos, certa das suas decisões, certa de que faria tudo de novo estava num buraco do qual não via fundo. É claro que não faltaram dedos a apontar: tivesses filhos estarias feliz, estás velha para arranjar marido agora, coitada da triste Margarida que escolheu ser infeliz a ter família. 

Enganam-se as más línguas. Margarida estava sim no meio do vazio, porque perdeu 10 anos, trabalho, embora não de conhecimento, um amigo, ou pelo menos assim compreendia e um amante. Sentia-se pior ainda porque era o vazio do amante que mais difícil estava de preencher.