tens ganas de me ver
noutra vida
fazes-te sentir nesta
e agendas novo encontro
para a tal
próxima vida
tens ganas de me ver
noutra vida
fazes-te sentir nesta
e agendas novo encontro
para a tal
próxima vida
não tenho feitio
para conversas sobre o tempo
mesmo que o tempo seja bom
ou se por outro lado
tão mau que possa ser notícia
não tenho absolutamente feitio
para conversas sobre o tempo
prefiro senti-lo
fazer dele um bom partido
e concretizá-la em ações
de boas conversas
está o mundo cheio
ou será de intenções?
um instante
num instante
num abrir e fechar de olhos
encontro-me
e percebo que já não me reconheço
nesse instante
abro e fecho os olhos
incrédula por me ver
em me ver
em me encontrar
em instantes
olho novamente
observo
e fecho os olhos para ver melhor
instantaneamente
percebo que me ignorei
voltei a ignorar
e segui ignorando-me
tantas vezes
demais
por demais
ao ponto de já não mais me reconhecer
quando me vejo
revejo
ou melhor
quando abrindo os olhos
fecho
para ver melhor
nesse instante
Cidade maior, que Ulisses quis para si, porto de abrigo para quem se espalha na tua costa e para onde o Tejo corre despedindo-se da vida. Tens a luz única dos iluminados.
Lisboa,
és mãe, madrasta, viúva e filha. Mãe para quem acolhes, madrasta para quem teve de partir e viúva de quem não mais voltou. És a filha esquecida que se tornou mulher e a quem a idade com ouro cobiça as tuas partes mais desejadas.
Na pena do MEC, cada avião que te deixa faz birra e vira-te as costas. Na verdade, quem foge prefere não olhar para trás.
Acolhes quem te procura e te conserta por dentro. Mesmo assim segues obra imperfeita e inacabada.
Deixas que outras línguas te pisem para seres um mero caso, um affair de fim de semana ou o quer que seja enquanto lhes serves tesouros em forma de nata.
És Santa Maria, Maior e de todos os santos que vagueiam pelas tuas sete colinas entre pecados e virtudes. Cada um com a sua agenda, a sua história, a sua verdade. Cada um procurando uma razão para ficar. Uma razão para voltar.
Tens porta aberta para o Atlântico e daí para o mundo e deste o nome ao Santo que Pádua recusa nomear.
Há mais de seis séculos que recebes cheiros e sabores do mundo, num gesto simples, repetido a cada dia quando temperas com caril, canela e açafrão.
De Belém a Santa Apolónia, cavalos de ferro atravessam e cruzam a floresta branca levando quem mudou o futuro e deixou alguém a encharcar as calçadas de sal por esperar tantas e tantas vezes.
Por mais que o Tejo lute contra o mar, por mais que o chão trema, por mais que o Sul esteja à distância de um Cacilheiro, segues segura e serena, caminhando sem cair, navegando sem naufragar.
Lisboa,
és a obra maior que se constrói dia a dia. Podem deixar-te, amar-te, agredir-te, mas ninguém te consegue resistir.
Segues de braços abertos para cada visita, para cada regresso. Para cada recomeço.
Lisboa,
parti enquanto dormias, envolta no sossego da noite e no embalo do Tejo.
Atravessei-te antes que acordaras e me disseras para ficar.
Ao rasgar o céu vi o sol nascer do ar.
Disse-lhe: já vens tarde.
existe um poema
que não é meu
nem teu
podia ser nosso
existe um poema
que se esqueceu do nome
e não sabe bem onde
esqueceu os seus versos
existe um poema
com tacto e gosto
literalmente meu
vagamente teu
existe esse mesmo poema
de tinta sem cor
de amor preenchido
com vida nos versos
existe um poema
aquele poema
que aconteceu, existe
e ninguém o escreveu
existe um poema
dois corações
emoções mais que muitas
existimos
existe este poema
um poema
ela disse
que disse ela?
ela disse
e disse
ponto
ela disse
voltou a dizer
disse e reforçou
disse ela
o que disse
foi
exatamente
o que ela disse
ela disse
que disse ela?
Já bebi o suficiente para dizer que tenho saudades tuas.
Ignora.
Sobretudo,
se o teu estado for diferente do meu.
Entretanto,
se te afogares na bebida
e te lembrares de mim,
escreve-me.
Mesmo que para me dizer:
Já bebi o suficiente para dizer que tenho saudades tuas.
“O céu está nuvelado.
Também eu estou nuvelado.”
– Diz um senhor ao cão que passeia.
.
.
.
Não insisto com a minha memória.
De momento, não tem nada para me dar.
.
.
.
A vida são dois dias.
Três em anos bissextos.
No nosso coração o que ouvimos Nos olhos o que sentimos Nos ouvidos O que lemos Na alma Com várias portas da frente, que tem código das traseiras que se trepa da cave que é pequena e rastejamos Por onde se entra? Não há portas Arrombamos e deitamos abaixo Ficam as janelas Espreitamos Saltamos Somos. Contenta-te contigo Atenta-te a ti Ao amor que não deve ser gratuito Ao amor que não se agradece Ao amor que não me pertence Onde te falo com o meu silencio E toco-te com a nossa distância Choro-te Por ti Por nós Por quem não sou Por quem não podemos ser Contento-me contigo Atento-me a ti Amo-te Agradeço-te Nós em nós Não entendo apenas sinto Procurei-te onde não me achava Achei-te como num plágio de mim Achei-me como num plágio de ti. Sentes os meus olhos? Se os sentires Poderás ver bem o meu coração Cheiras os meus olhos? Se os cheirares Poderás cheirar a Primavera. Ouves os meus olhos? Se os ouvires Poderás ouvir o mar Vês os meus olhos? Se os olhares Poderás ver o amarelo.
O navio corta a água.
A água estremece, divaga, solta a espuma para sarar a ferida. E espera que esta se dissipe.
O tempo ajuda a ferida a sarar, que o rasgo afunde e que a água volte.
Até passar o próximo navio.