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Os Bichos

Um bicho apresentou-se e disse-me que veio ao mundo para me comer os olhos. Pedi-lhe que me deixasse ver o mundo antes de fazer da minha vista o seu repasto, mas a travessia antecipou a travessura, aguçou-lhe a vontade de comer o que vi. Encheu a boca com o meu mundo, podia imaginá-lo a inchar a cada dentada. Que fartura. Nem tive tempo de o ver, não sobram olhos para a terra comer. Não saberia descrever – quanto mais desenhar – o bicho que veio comer os olhos que a terra já não vai provar.

Os problemas, como os bichos, multiplicam-se: e se agora me esqueço de tudo o que vi? E como verei, agora, outros bichos que me queiram engolir outros pedaços? 

E se vier um bicho que me coma os ouvidos, como poderei ouvir chegar outros bichos que me venham devorar outros sentidos? 

E se vier um bicho que me coma o nariz e eu não der pelo fedor da decomposição de outros bocados meus? 

E se vier um bicho que me coma a ponta dos dedos, que ouse lambuzar-se com o meu tato, que outra forma me resta para dar pelos buracos que a bicheza se atrever a abrir em mim? 

E se vier um bicho que me coma o coração, onde fica a vossa casa depois da digestão? 

E se vier um bicho que me coma o medo? Já terá vindo outro comer a carne sobre a qual me sento. Se quem tem cu tem medo, só quem não tem cu pode não ter medo.

E se vier um bicho que me coma a vontade? Chamo-lhe Blimunda.

E se vier um bicho que me coma o caminho, como saberei onde pôr os pés? E se vier um bicho que me coma os pés, por que caminho me arrastarei?

E se vier um bicho que me coma a voz? Como direi “que chatice, não ser mais nada”?

E se vier um bicho que me coma a memória? Esqueç

E se os bichos não deixarem nada, serei bicho como eles? 

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Conto

Nó na garganta

Estava com um nó na garganta tão grande que me fui confessar e acabei com mais um pecado na lista. 

A verdade, sim, porque eu só conto a verdade, nós mulheres honradas e honestas só contamos a verdade, a verdade é que já não podia mais com este nó na garganta. Eu queria tanto falar com alguém e não podia, quero dizer: não conseguia. 

Eu tenho três grandes amigas, todos os dias tomamos chá às 5 horas da tarde. Todos os dias quando o sino da igreja aqui da vila toca as 5 badaladas eu e as minhas amigas saímos das nossas respetivas casas e vamos até ao banco do jardim. Todos os dias levamos o nosso cesto com o lanche das 5, cada uma está responsável por uma parte do lanche. A Adelaide leva o chá de limonete, a Juzefina leva o pão, a Maria das Dores traz bolachinhas e eu os doces e a manteiga. Não somos muito gulosas, seria um pecado exercer o pecado da gula. 

O banco é um pouco pequeno para quatro, felizmente o presidente da junta que nos vê lá sentadas, apertadas e sem condições nenhumas para lanchar mandou fazer outro banco em frente e agora somos quatro, duas em cada banco umas em frente das outras. Somos tão amigas que até combinamos na roupa. Almas gémeas, assim como irmãs de outra mãe que nunca, mas mesmo nunca se traíram. Ainda assim, quando chegou o dia de ter um nó na garganta não consegui falar com elas, tive realmente de me ir confessar ao padre da igreja da nossa querida vila, onde somos todos tão felizes. 

Cheguei e disse: “Senhor padre, perdoe-me porque pequei.”. 

Do outro lado, respondeu-me: “Sim, filha, qual o teu pecado?”. 

Bom, era tão difícil falar, por isso é que tinha um nó na garganta, se fosse fácil não teria a garganta apertada, não é? Era tão difícil, mas tão difícil que só assim consegui começar:

“Ai que me dói a garganta só de pensar.” – e assim que terminei esta frase suspirei de alívio. 

O senhor padre, contudo, não estava muito feliz, disse que doer a garganta não era pecado algum e que estava ali para ouvir pecados, se eu não tivesse nenhum para revelar que me pusesse a andar. Achei indelicado, porém aceitei e prontamente, como uma flecha de palavras a sair pela boca fora disse: “Eu só estarei feliz no dia em que souber que a Adelaide, a Juzefina e a Maria das Dores estiverem infelizes.”. 

Como assim infelizes? Pensei eu para mim, como terei eu conseguido dizer tal coisa? Sei, que sou boa pessoa, vivi a vida inteira a dar tudo de mim a todos, incluindo a elas e agora, quero tanto que elas sejam INFELIZES!

O senhor padre, naquele momento levantou-se e saiu do confessionário, com a cabeça baixa, parecia não aprovar as minhas palavras. Contudo, não é para isso que ele lá está para nos penitenciar e assim fazer desaparecer o meu pecado? Eu só quero ver-me livre desta culpa de pensar mal para elas. Se depois acontecer novamente, quero cá voltar e voltar a sentir o castigo que me liberta. E ele foi. Não podia deixá-lo ir. Fui atrás dele como uma sombra, segui-o chamando-o: “Senhor padre, senhor padre…”. E nada! Nem um sinal de perdão. 

Entrou naquilo que é a sua sala, olhou para uma estátua de Nossa Senhora, ali ficou durante uns segundos, com um olhar devoto e virou-se para mim. Eu cheia de medo do castigo que dali viria baixei a cabeça. Ele levantou-me pelo queixo e saiu o beijo mais intenso e penetrante que alguma vez provei. 

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a menina do vestido bonito

O dia em que a ouvi ser apelidada “A Menina do Vestido Bonito” não foi o dia mais feliz da sua vida, mas foi um dos primeiros em que lhe ouvi uma gargalhada sem rebentos de dor. Era Verão e ela plantava flores na roupa, um vestido que a cobria até pouco abaixo dos joelhos bronzeados; no rosto, levava um sorriso germinado como se estivesse a reaprender a sorrir como gente. Era lindo, de facto, o jardim que levava posto – as flores cor-de-rosa, laranja, amarelo e até azul tinham tanto a dizer que se atropelavam no falatório, mas tudo bem, o caos também pode ser bonito.


Mesmo não falando, todos sabiam da busca incessante a que ela se havia dedicado nos meses anteriores. Acordada, a menina do vestido bonito passava as noites à procura de si mesma – atrás da cómoda, debaixo da cama, entre as roupas penduradas no roupeiro, etc. – não estava no seu sem fim de coisas que, por muitas que fossem, não havia meio de lhe encherem a casa . Quando se olhava ao espelho, via uma sombra e, quando via a sua sombra, não se via a si. Tocava-lhe para perceber se era ela que estava a ser projetada contra a parede, se a falta de luz tinha feito dela a própria sombra, mas não se sentia do outro lado do toque. Não se sentia ninguém, presa num trânsito mental, à espera da sua vez de ser. Trocou a noite pelo dia, sem se aperceber. Era na cama que se escondia nas longas horas do sol e era à noite que saia do seu lugar confortável e retomava a sua busca – quem sabe, evitava a luz para evitar a sombra.


Não se lembrava de si, mas o seu problema não era de memória. Estava doente do tipo de tristeza que se aloja no coração e por aí fica a libertar veneno continuamente, de espinhos afundados no existir, até que ele deixe de o ser. Não sabia o que fazer ao corpo que sobrava de si, nem em que momento exato lhe tinham assaltado o templo e roubado as janelas, as portas e todas as saídas.


Ainda que triste, procurou por si nesse corpo que tinha deixado para trás – tinha todas as camadas que precisava para funcionar e, acima de tudo, as mãos e os músculos intactos. Pensou que, se pusesse a sua maquinaria interior a trabalhar, talvez ganhasse vida por dentro e, desse modo, aos poucos, foi conquistando o dia. Começou a pedir à noite para vir mais tarde, porque precisava da luz do sol para ver onde punha as mãos enquanto as sujava com argila e construía pequenas peças de cerâmica. Tinha medo de se estar a iludir com a dedicação mas, com a primeira peça que terminou, não quis acreditar no que via. Naquela pequena obra, a menina do vestido bonito viu-se a si – ou parte de si. Olhou de todos os ângulos, viu como era opaca, forte e impenetrável, tinha uma beleza simples mas que impunha respeito e, acima de tudo, estava completa.


Foi como se desenterrasse o mais valioso dos tesouros, a menina não parou mais de explorar o funcionar da sua máquina. Ouvia-se pelo dia o seu motor interno a trabalhar, como se se esforçasse para iluminar uma cidade inteira – e era isso mesmo o que fazia, ladeava as estradas suas com os mais altos candeeiros, para não deixar qualquer canto escuro. No fundo, é assim que se combatem sombras. Aos poucos, com o malabarismo gracioso entre a argila e a água, descobria novos pedaços de si – alguns deles, já se tinha esquecido que existiam, outros estavam à espera por nascer.


Juntou cada uma das suas obras bem perto do seu coração, amontoadas num pequeno caos emocional que era tão bonito e tão fértil, que não deixou de aumentar. Assim, a menina cresceu tanto que estranhava tudo – a cama, a roupa, a casa, a chuva, a terra –, tudo lhe parecia pequeno e estreito. À medida que se encontrava, também as pessoas pareciam vê-la pela primeira vez. Tornou-se tão grande e visível, que era maior que o mundo – já nem a roupa lhe servia. Com tanta cerâmica para consertar o coração, não tinha mangas que lhe passassem nos braços, golas que lhe passassem na cabeça, nem botas que lhe assentassem nos pés. Decidiu-se, então, a fazer a sua própria roupa e começou por plantar um jardim. Estava ainda na fisioterapia do riso quando o vestiu pela primeira vez e foi nesse dia que lhe chamaram aquilo pelo que a conhecemos hoje. A menina do vestido bonito, cujo nome não deve ser confundido por fraqueza. O vestido tem flores mas também tem raízes e espinhos – para que não se esqueçam que não se pode partir um coração coberto de flores.


Já não tem dívidas de amor, nem medo das sombras – de tal forma, que pintou as paredes de amarelo para as ver melhor – assim não se perdia no escuro. Diziam-lhe que não era bom dormir com cores frenéticas nas paredes, que não combinavam com a mobília, que era demasiado para a vista, “experimenta um bege”, diziam. Mas ela não se importava. Como ela tinha aprendido, também o caos podia ser bonito.