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Os Bichos

Um bicho apresentou-se e disse-me que veio ao mundo para me comer os olhos. Pedi-lhe que me deixasse ver o mundo antes de fazer da minha vista o seu repasto, mas a travessia antecipou a travessura, aguçou-lhe a vontade de comer o que vi. Encheu a boca com o meu mundo, podia imaginá-lo a inchar a cada dentada. Que fartura. Nem tive tempo de o ver, não sobram olhos para a terra comer. Não saberia descrever – quanto mais desenhar – o bicho que veio comer os olhos que a terra já não vai provar.

Os problemas, como os bichos, multiplicam-se: e se agora me esqueço de tudo o que vi? E como verei, agora, outros bichos que me queiram engolir outros pedaços? 

E se vier um bicho que me coma os ouvidos, como poderei ouvir chegar outros bichos que me venham devorar outros sentidos? 

E se vier um bicho que me coma o nariz e eu não der pelo fedor da decomposição de outros bocados meus? 

E se vier um bicho que me coma a ponta dos dedos, que ouse lambuzar-se com o meu tato, que outra forma me resta para dar pelos buracos que a bicheza se atrever a abrir em mim? 

E se vier um bicho que me coma o coração, onde fica a vossa casa depois da digestão? 

E se vier um bicho que me coma o medo? Já terá vindo outro comer a carne sobre a qual me sento. Se quem tem cu tem medo, só quem não tem cu pode não ter medo.

E se vier um bicho que me coma a vontade? Chamo-lhe Blimunda.

E se vier um bicho que me coma o caminho, como saberei onde pôr os pés? E se vier um bicho que me coma os pés, por que caminho me arrastarei?

E se vier um bicho que me coma a voz? Como direi “que chatice, não ser mais nada”?

E se vier um bicho que me coma a memória? Esqueç

E se os bichos não deixarem nada, serei bicho como eles? 

Por Mariana Godet

Chamo-me Mariana Godet, não me levo a sério o suficiente para escrever sobre mim na terceira pessoa e acho que é cedo para escrever uma biografia. Ou tarde? São só vinte e seis anos, que continuam a pesar invariavelmente mais à minha mãe do que a mim. E ela é muito magrinha, leve e facilmente transportável. Dado este que vos permite calcular o quão insignificante é, afinal, o peso da minha existência. Ela diz que foi há uma vida. Mas que vida? Se nela não aconteceu nada digno de especial destaque? Estou a tempo - eu sei, mãe.
Sou irmã da melhor irmã do mundo. Gosto de frio, castanhas, chocolate, chá e café. Gosto de mantas, o que me torna incompatível com o calor. A bondade comove-me e a maldade enjoa-me. Gosto muito de liberdade e pouco de quem a quer levar. Gosto de olhar e ser olhada nos olhos, alturas dizem-me pouco e o respeito não nasce dos ombros - vem de dentro e passeia pelo sangue.
Escrevo por necessidade. Necessidades, para ser mais precisa. Vou descobrindo quais são. Espero que encontrem aconchego aqui.

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