Um bicho apresentou-se e disse-me que veio ao mundo para me comer os olhos. Pedi-lhe que me deixasse ver o mundo antes de fazer da minha vista o seu repasto, mas a travessia antecipou a travessura, aguçou-lhe a vontade de comer o que vi. Encheu a boca com o meu mundo, podia imaginá-lo a inchar a cada dentada. Que fartura. Nem tive tempo de o ver, não sobram olhos para a terra comer. Não saberia descrever – quanto mais desenhar – o bicho que veio comer os olhos que a terra já não vai provar.
Os problemas, como os bichos, multiplicam-se: e se agora me esqueço de tudo o que vi? E como verei, agora, outros bichos que me queiram engolir outros pedaços?
E se vier um bicho que me coma os ouvidos, como poderei ouvir chegar outros bichos que me venham devorar outros sentidos?
E se vier um bicho que me coma o nariz e eu não der pelo fedor da decomposição de outros bocados meus?
E se vier um bicho que me coma a ponta dos dedos, que ouse lambuzar-se com o meu tato, que outra forma me resta para dar pelos buracos que a bicheza se atrever a abrir em mim?
E se vier um bicho que me coma o coração, onde fica a vossa casa depois da digestão?
E se vier um bicho que me coma o medo? Já terá vindo outro comer a carne sobre a qual me sento. Se quem tem cu tem medo, só quem não tem cu pode não ter medo.
E se vier um bicho que me coma a vontade? Chamo-lhe Blimunda.
E se vier um bicho que me coma o caminho, como saberei onde pôr os pés? E se vier um bicho que me coma os pés, por que caminho me arrastarei?
E se vier um bicho que me coma a voz? Como direi “que chatice, não ser mais nada”?
E se vier um bicho que me coma a memória? Esqueç
E se os bichos não deixarem nada, serei bicho como eles?