Durmo sobre o telemóvel.
Vestido, só do corpo
E das âncoras nas mãos
Que me prometem à terra
Aberta a receber-me.
Durmo entre o ecrã
E o relógio das quatro da madrugada.
Arrasto os ponteiros para me poder tapar,
Mas nem a matéria me cobre,
Nem eu a satisfaço.
Durmo por cima de todas as horas
Que perco dentro da caixinha preta,
Onde se esticam na vertical
Como plasticina que acelera o coração.
Deixo-me acordado,
A medir do corpo o que me falta,
Para esticar o que valho
Até tapar a luz desse monitor.
Autor: Francisco Neto
Nasceu na Amadora, na meia noite de vinte e nove para trinta de dezembro de 1996. Passa a maior parte do seu tempo a cantar e sem saber o que quer ou onde quer ir, tendo assim concluído um curso de Marketing e Publicidade no IADE, sem qualquer razão em particular. Apesar da sua indecisão patológica, nunca teve dúvidas de que não suportava o sabor a queijo e que esse era um facto que qualquer pessoa teria de saber, se quisesse participar na sua vida. Tende a pedir dezenas de conselhos para solucionar os mais pequenos problemas da vida, apenas para os ignorar olimpicamente e decidir por si só o que há-de fazer. Precisamente por essa razão, decidiu que deveria apostar a sua vida na escrita e na música, as duas artes pelas quais nutre uma maior paixão. Não sabe escrever coisas sérias a menos quando escreve canções. Aí, é inconsolavelmente fatalista. Evidentemente, graças à sua indecisão, continua a trabalhar a full time em todas as outras artes existentes, para poder sobreviver neste mundo.
a menina do vestido bonito
O dia em que a ouvi ser apelidada “A Menina do Vestido Bonito” não foi o dia mais feliz da sua vida, mas foi um dos primeiros em que lhe ouvi uma gargalhada sem rebentos de dor. Era Verão e ela plantava flores na roupa, um vestido que a cobria até pouco abaixo dos joelhos bronzeados; no rosto, levava um sorriso germinado como se estivesse a reaprender a sorrir como gente. Era lindo, de facto, o jardim que levava posto – as flores cor-de-rosa, laranja, amarelo e até azul tinham tanto a dizer que se atropelavam no falatório, mas tudo bem, o caos também pode ser bonito.
Mesmo não falando, todos sabiam da busca incessante a que ela se havia dedicado nos meses anteriores. Acordada, a menina do vestido bonito passava as noites à procura de si mesma – atrás da cómoda, debaixo da cama, entre as roupas penduradas no roupeiro, etc. – não estava no seu sem fim de coisas que, por muitas que fossem, não havia meio de lhe encherem a casa . Quando se olhava ao espelho, via uma sombra e, quando via a sua sombra, não se via a si. Tocava-lhe para perceber se era ela que estava a ser projetada contra a parede, se a falta de luz tinha feito dela a própria sombra, mas não se sentia do outro lado do toque. Não se sentia ninguém, presa num trânsito mental, à espera da sua vez de ser. Trocou a noite pelo dia, sem se aperceber. Era na cama que se escondia nas longas horas do sol e era à noite que saia do seu lugar confortável e retomava a sua busca – quem sabe, evitava a luz para evitar a sombra.
Não se lembrava de si, mas o seu problema não era de memória. Estava doente do tipo de tristeza que se aloja no coração e por aí fica a libertar veneno continuamente, de espinhos afundados no existir, até que ele deixe de o ser. Não sabia o que fazer ao corpo que sobrava de si, nem em que momento exato lhe tinham assaltado o templo e roubado as janelas, as portas e todas as saídas.
Ainda que triste, procurou por si nesse corpo que tinha deixado para trás – tinha todas as camadas que precisava para funcionar e, acima de tudo, as mãos e os músculos intactos. Pensou que, se pusesse a sua maquinaria interior a trabalhar, talvez ganhasse vida por dentro e, desse modo, aos poucos, foi conquistando o dia. Começou a pedir à noite para vir mais tarde, porque precisava da luz do sol para ver onde punha as mãos enquanto as sujava com argila e construía pequenas peças de cerâmica. Tinha medo de se estar a iludir com a dedicação mas, com a primeira peça que terminou, não quis acreditar no que via. Naquela pequena obra, a menina do vestido bonito viu-se a si – ou parte de si. Olhou de todos os ângulos, viu como era opaca, forte e impenetrável, tinha uma beleza simples mas que impunha respeito e, acima de tudo, estava completa.
Foi como se desenterrasse o mais valioso dos tesouros, a menina não parou mais de explorar o funcionar da sua máquina. Ouvia-se pelo dia o seu motor interno a trabalhar, como se se esforçasse para iluminar uma cidade inteira – e era isso mesmo o que fazia, ladeava as estradas suas com os mais altos candeeiros, para não deixar qualquer canto escuro. No fundo, é assim que se combatem sombras. Aos poucos, com o malabarismo gracioso entre a argila e a água, descobria novos pedaços de si – alguns deles, já se tinha esquecido que existiam, outros estavam à espera por nascer.
Juntou cada uma das suas obras bem perto do seu coração, amontoadas num pequeno caos emocional que era tão bonito e tão fértil, que não deixou de aumentar. Assim, a menina cresceu tanto que estranhava tudo – a cama, a roupa, a casa, a chuva, a terra –, tudo lhe parecia pequeno e estreito. À medida que se encontrava, também as pessoas pareciam vê-la pela primeira vez. Tornou-se tão grande e visível, que era maior que o mundo – já nem a roupa lhe servia. Com tanta cerâmica para consertar o coração, não tinha mangas que lhe passassem nos braços, golas que lhe passassem na cabeça, nem botas que lhe assentassem nos pés. Decidiu-se, então, a fazer a sua própria roupa e começou por plantar um jardim. Estava ainda na fisioterapia do riso quando o vestiu pela primeira vez e foi nesse dia que lhe chamaram aquilo pelo que a conhecemos hoje. A menina do vestido bonito, cujo nome não deve ser confundido por fraqueza. O vestido tem flores mas também tem raízes e espinhos – para que não se esqueçam que não se pode partir um coração coberto de flores.
Já não tem dívidas de amor, nem medo das sombras – de tal forma, que pintou as paredes de amarelo para as ver melhor – assim não se perdia no escuro. Diziam-lhe que não era bom dormir com cores frenéticas nas paredes, que não combinavam com a mobília, que era demasiado para a vista, “experimenta um bege”, diziam. Mas ela não se importava. Como ela tinha aprendido, também o caos podia ser bonito.
Sempre vivi a sair da mesa de prato meio vazio. É uma falta de educação, eu sei, sou um mal educado, na verdade. Mas tenho bom coração, prometo, e tudo isto teve um bom motivo para começar.
Comecei esta mania aos dez anos, quando ainda levava para a escola “tupperwares” de um plástico já bronzeado, numa lancheira azul e pesada que dividia com o meu irmão. Num desses dias, chamaram-me gordo e eu decidi que estava cheio para todo o sempre. Naquela altura, aquecia a comida em microondas comunitários numa sala que cheirava a sopa, onde putos escondiam os macacos que tiravam do nariz debaixo da mesa, e contínuas corriam atrás deles com cordas vocais afiadas e já cansadas. Gritavam porque havia puré de batata na parede e não no estômago de alguma criança; gritavam porque havia uma maçã escondida por baixo do lavatório, já em fase cinco de degradação, gritavam porque os tênis se colavam ao chão, pelas mãos da magia de algum resto de almoço entornado há três dias; e, comigo, gritavam porque não queria comer.
Chamaram-me gordo um dia e eu decidi que queria deixar de ver em tudo uma forma de me encher. Queria deixar de esconder o coração na dispensa, e de partir as jarras de vidro onde guardava as bolachas porque não podia esperar nem mais um segundo para matar aquele animal que tinha dentro. A verdade é que saía caro: se cada jarra custasse dois euros no IKEA, e se eu tivesse um destes ataques duas vezes por dia, eram quatro euros diários que saíam em jarras e uns quantos quilos de gordura que entravam. No fim das contas, o fluxo de caixa não compensava o prejuízo, dado que a carne que acumulava não tinha valor no mercado. De maneira que tirei das bolachas o poder de me encher, e os meus maxilares deixaram de ser músculo do coração.
A minha sorte foi ter sempre um parceiro que comesse aquilo que eu deixava para trás. Em todas as fases da minha vida – na escola, na faculdade ou no trabalho -, encontrei sempre alguém que terminasse a refeição por mim. Assim, quando chegava a meio, começava a fazer o frete e ele já sabia. Era só passar-lhe o termo e o nosso trato estava selado. Levava para casa um tupperware vazio, e em mim deixava um espaço por encher que faria de tudo para que não me voltassem a magoar.
Queria deixar metade da comida no prato, até eu ser metade do que era. E, quando cheguei a esse ponto, quis deixar três quartos. Queria deixar de comer até desaparecer, ficar vazio por dentro para que não tivessem carne para atacar, quando se virassem para mim com palavras pontiagudas.
O que eu não sabia, era que alimentava um monstro maior que aqueles miúdos do refeitório que faziam guerras de esparregado sem dó nem piedade. Por cada prato que deixava com comida, era uma refeição completa com que alimentava o bicho da fome que crescia em mim. Não me apercebia que o fazia, mas foi assim que permiti que tomasse posse de todo o meu tamanho, como uma nova camada interior, que começava a agir em meu nome.
Quando eu falava, era a fome que falava por mim e, quando cantava, era ela a gritar, a pedir que a alimentassem. Fiquei sem saber como a matar. Não podia voltar a comer os cinco croquetes que me enviava a minha mãe, ou a terminar um bife sozinho sem o partilhar. Não tinha em mim a força para encostar o garfo à faca no fim de uma refeição, sem ter partilhado o prato com a solidariedade de algum companheiro. Não, não voltaria a terminar uma refeição, por isso, tudo o que fiz foi ignorar. Acostumei-me aos roncos do meu estômago – passei a falar com eles e, para minha surpresa, não eram má companhia.
Acomodei o vazio dentro de mim e a fome nunca passou. Na verdade, é ela que vos escreve agora. É também ela que me faz escrever.
Não Chorei Quando Nasci
Não chorei quando nasci. Não é que me lembre, mas é um daqueles factos que ouvimos tantas vezes em reuniões familiares, que os acabamos por carregar connosco como se formassem uma espécie de cognome incrustado à nossa existência.
A minha mãe, apesar das suas vontades em ter um parto natural, cuspiu-me para este mundo num silêncio adormecido, enquanto lhe retiravam o bicho ensanguentado pela fissura aberta do seu ventre. O médico e enfermeiras estavam num estado tão profundo de concentração naquele turno da madrugada, que nem um esgar soltaram no momento solene em que entrei de pé esquerdo nesta realidade. No bloco operatório, até os sons sintomáticos do hospital se pareciam ter feito diminuir numa espera inconcebida pelo choro normal de um nascimento.
O silêncio acompanhou-me, assim, a vida toda. Os meus pais dizem até hoje que era uma maravilha de bebé, chorava tão pouco que se esqueciam que me tinham. Quando comecei a escola, era tão calado que me tentaram diagnosticar mais de dez vezes com diferentes problemas de foro psíquico, nenhum deles acabou por estar certo. Parecia apenas que não tinha palavras trocadas na carteira, e as que tinha, requiriam esforços sobrehumanos para serem puxadas cá para fora.
Aos catorze anos, já tinha andado em quatro psicólogos e dois terapeutas da fala. Contudo, apesar de grandes e longas análises, nunca ninguém soube perceber a razão do meu silêncio e, quando me perguntavam, simplesmente encolhia os ombros, sem nada para dizer. Não o fazia por provocar, simplesmente, não sabia o que dizer. Nunca.
Com a idade, fui percebendo que levava comigo este silêncio denso e pesado. Era como uma massa negra à minha volta, que pesava no ambiente, sem deixar espaço para palavras. Comecei a pensar que, quando me colheram do ventre da minha mãe, colheram também um irmão gémeo esquecido, carregado nas minhas costas que fez calar todo o hospital.
Tentei visualizar várias vezes esta massa negra que me rodeava, talvez se percebesse a sua forma, a conseguisse expulsar. Pensei que fosse um polvo gigante, pousado no alto da minha cabeça oca de palavras, que levava o desconforto nos tentáculos, para tapar a minha boca e a de toda a gente que me abeirasse. Teria a aparência e o destino de um vilão da Disney – invariavelmente determinado a vencer-me, mas condenado a uma eventual derrota sobre o domínio da minha palavra. Contudo, quando os anos começaram a passar sem que levassem consigo os tentáculos, comecei a desacreditar-me do rato Mickey e das histórias de embalar.
Esse foi o momento em que comecei a pensar que talvez esta massa fosse um Anjo da Guarda que me protegia das palavras, guardando-as numa caixinha preciosa, apenas aberta nos momentos oportunos. Queria acreditar que o fazia para me proteger das esquinas afiadas das letras, mas também o meu silêncio me começava a magoar. Quanto mais tempo passava sem saber o que dizer, mais pequeno me tornava, mais me escondia pelos cantos, e mais sozinho fui ficando. Pelo que concluí que, quem me roubava as palavras não seria um anjo da guarda.
Comecei, então, a deixar de procurar causas externas para a atmosfera silenciosa e sufocante que carregava comigo e passei a crer que o silêncio vinha de mim. Eu tinha a massa dentro de mim, densa e corrosiva, a deixar-me a cabeça doente e cansada, atolada só das palavras que me faziam mal. Cambaleavam dentro do meu cérebro por horas, deixando feridas na sua passagem e sem nunca saírem para ver a luz do dia.
Tinha o silêncio na roupa que vestia e na pele que a suportava também. O silêncio estava nas minhas pestanas e unhas, escondido por entre cabelos e dedos, que se entrelaçavam sem ruído. Tinha-o nos lençóis à noite e nas toalhas de manhã. Nos cadernos em que tentava escrever e nos desenhos que falhava em completar. Entendi que o silêncio não só arrombava as portas e janelas do meu bem-estar, como também era ele a casa e as paredes contra as quais cambaleava à procura de equilíbrio.
Quando tive esta realização de que eu era o meu próprio silêncio, chorei como nunca o tinha feito. Chorei pela vez que não chorei ao nascer, e por todas as outras que me mantive demasiado calado para poder exprimir qualquer emoção. Tinha nas minhas lágrimas dor e confusão – toda a minha vida tinha culpado o universo por este meu problema, mas aparentemente, eu era o problema. Foram dias a chorar, inundei a casa e o tejo entrou-me pela sala e quarto sem autorização.
Estou ainda a limpar os estragos deste meu entendimento mas, já que não chorei quando nasci, espero nascer agora que chorei.
Ócio.
Oh, se o odeio.
Meu velho amigo,
És bonito no mês de Agosto –
Serias bonito em qualquer altura,
Se não tivesse de vestir estes ossos.
Ócio.
Oh-sim-o meu amigo,
Deita a cabeça no meu colo
Dá-me carne para vestir os ossos –
Ósseo.
O Homem que não conseguia tirar férias
Sei que não tenho órgãos para isso, mas vou ao médico todos os meses. Não é que seja hipocondríaco, é que, de quando em vez, tenho dores que não sei etiquetar e, para quem sabe um pouco de mim, sabe que adoro rótulos. Não sei porquê mas trazem-me alguma calma e o meu médico arranja sempre um nome para aquilo que me doi, por isso, gosto de o visitar com frequência, qual dose mensal e cavalar de ansiolíticos.
Geralmente tenho consulta dia 15, mas às vezes (muitas vezes) atrasa-se. Começa comigo a sentar-me na minha cadeira que rodopia – passo os primeiros minutos a distrair-me com as suas funcionalidades giratórias. Quando me aborreço, encaro o meu médico de olhos brilhantes a olhar-me diretamente na alma. Nesse momento, sei que já me está a analisar, à procura nas minhas entranhas da dor mensal que me trouxe ali. Evidentemente, eu começo com uma piada, à qual se segue um silêncio no qual ficamos a olhar um para o outro sem qualquer expressão fácil.
Não se ri das minhas piadas, mas eu gosto do meu médico. Ele sabe tudo, não só da verdade, mas da mentira. Ele sabe usar aquelas palavras que mais ninguém se lembra de usar, como “prostrado”, “catatónico” ou “berlinada”. Gosto de aprender essas palavras com ele, são mais rótulos que guardo para me trazer calma. E eu preciso de muita calma. Preciso tanto de calma que, por vezes, invento dores só para poder ir ao médico assegurar-me que, caso um dia tenha uma dor daquelas, já saberei o seu nome.
Este mês, contudo, a consulta está a ser bastante dececionante, sem rótulos ou nomes ou títulos ou prognósticos. Comecei por dizer “Não consigo tirar férias” e ele, como de costume, tentou analisar-me e auscultar-me as emoções. Já estamos a dia dezoito e eu sinto o tempo a passar para lá do nosso contrato mensal, de maneira que há alguma pressa a pairar nesta consulta. A culpa é minha, eu é que adiei três ou quatro vezes, mas a verdade é que não arranjei tempo para me sentar com ele antes. E, mesmo aqui sentado, estou de estômago vazio, porque esta seria a minha hora de comer. No restante tempo do dia, são as horas que me comem a mim.
Contudo, nesta consulta, o tempo também me parece consumir como uma iguaria psicótica. O médico já me analisou e agora ficámos a olhar um para o outro há minutos sem fim. O meu estômago ronca de vez em quando, eu fungo porque estou a ficar constipado e, quando os minutos se somam em horas, começo também a bocejar. O tempo passou e entretanto já é de noite, quase dia dezanove e eu ainda sem saber o nome disto que me doi.
Só sei que me dói aquilo que arrasto. Tudo depende de mim. A fome depende de mim. O descanso depende de mim. O corpo depende de mim. A pele depende de mim. A felicidade depende de mim. Eu! Eu dependo de mim. Mas eu queria depender da minha mãe. Do meu amor, de quem me ama. Não queria ter de ser forte e emancipado para estar do lado certo do jogo. Queria ser fraco e deixar-me ir, desistir de vez em quando e assumir derrotas como já assumi um namorado – que assumir derrotas seja tão célebre como um namorado assumir um namorado! Que viver não seja estar no lugar da frente de uma filinha pirilau de dependências que badalam e pendem agarradas a nós, arrastadas pelo chão a chamar o nosso nome constantemente.
É isso que me dói este mês. Se é verdade, se é mentira, não sei. Mas com ou sem rótulo, esta foi uma boa consulta, obrigado.
Da minha cabeça,
Já fiz quilómetros e quilómetros.
Apesar de agora escrever de corpo inerte,
Em pé perdido na divisão mais pequena do mundo,
Na minha cabeça,
Já fiz quilómetros e quilómetros.
Apesar de agora arrancar letras à frustração,
Em pé perdido neste quarto sem janela,
Pela minha cabeça,
Já fiz quilómetros e quilómetros.
Apesar de agora não saber decorar dores,
Também não sei se dói, ou se faço de conta que sinto.
Quando tinha quinze anos, ponderei pela primeira vez se teria um futuro feliz. Dei-me conta que não estava no caminho certo para me tornar uma estrela rock internacional, e procurei alento na minha avó que, por muito que nunca tenha alcançado o estrelato que tanto protagonizava os meus sonhos, tinha passado metade da sua vida a cantar. A outra metade dividiu-se entre ouvir trautear o meu pai e tio e, mais tarde, ouvir-me a mim evocar Variações na cave da sua moradia gigante. Mas adiante. Naquela conversa, ensinou-me que os quinze anos eram a idade mais fértil para os sonhos – que cresciam como ervas daninhas nos cantos mais recônditos das nossas cabeças. Notar que nem todas as ervas daninhas são feias ou dispensáveis, muitas delas até são úteis para aparar as quedas no alcatrão. A minha avó também me avisou das quedas e disse-me que, a partir dos quinze anos, deixavam de deixar feridas nos joelhos e cotovelos e começavam a chegar a sítios mais escondidos. Contudo, fez notar que aquela era a melhor altura para admirar a vida e para colher dela os melhores instrumentos para imaginar. “A vida consegue ser tão linda”, disse-me.
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Hoje – dez anos depois – sujei as mãos, arranhei a garganta e enfraqueci as costas a tentar fazer caber essa vida linda em caixas de cartão. Esvaziei o sótão, limpei o pó e deixei espaço para quem quiser vir vaguear para este lote, uma vez que estou de saída. Encaixotei a música e as primeiras notas que cantei, junto com os poemas e os textos em que me perguntava onde ia. Houve espaço para as minhas viagens à boleia pelos céus – os meus sonhos de Kerouac, de dias em que fazia as malas, prometia não voltar e desfazia de seguida. Empacotei a varanda onde fumava às escondidas, a ver a serra de Sintra, na procura de abrandar uma adolescência em foguetão. Até consegui encolher as paredes deste quarto, os cantos húmidos, os momentos em que foram as minhas únicas amigas – houve espaço para todos os nossos segredos. Quanta barulheira ficaria dentro daquelas caixas quando as fechasse, perguntava-me. Talvez se ouvissem as tuas palavras avó, pois encontrei um postal de aniversário escrito por ti, com conselhos e votos de um próspero futuro – pôs-me a pensar o que tenho de próspero agora, e onde estarás tu.
“A vida consegue ser tão linda”, dizia no cartão. Talvez seja, avó. Com tanta música, poemas, textos, sonhos, viagens para lado nenhum, malas feitas e desfeitas que não saem do quarto, não há como não o ser. Eu talvez tenha demorado o meu tempo a ver isso – ainda não precisava de óculos na altura em que te pedia conselhos. Agora não tenho quem me ouça quando canto sozinho na cave e nem mesmo com este meu novo par de lentes te consigo ver a espreitar, na curiosidade de saber que canção cantarei a seguir.
Arranjei várias formas de me sentir menos só, mas nenhuma me impediu de encher a casa de tralha. É irónico, porque é agora que está vazia que me sinto mais acompanhado e concretizado. Afinal de contas, não tinhas razão numa coisa – eu continuo a sonhar como se tivesse quinze anos. Mas noutra coisa estavas certa – a vida consegue ser tão linda. Pensava que a podia guardar em caixas e sótãos, mas ela está por aí. Tu estás por aí, avó.
Não eram Margaridas
Conduzimos para fora da lei
Naquele teu dia de anos.
A quarenta minutos da cidade,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber de nada.
Ninguém tinha de saber de nada.
Dei-me por feliz por termos chegado até ali.
O tempo deu-nos permissão,
E nós demos-lhe propósito,
Onde, encontrados num campo de margaridas,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber as nossas canções.
Ninguém sabia que eram nossas as canções.
E eu dei-me por feliz por ter chegado até ali.
Sobre a Cidade
Não quero falar de mim. Em mim não há nada de novo há quase um ano e, pelo andar da coisa, não há-de haver tão cedo. Ou talvez haja e eu é que não dei pela sua criação. Não é fácil distinguir os dias quando passam sempre da mesma forma. Sentado à varanda deste nono andar, com a cidade linda por baixo de mim. É difícil olhar para dentro quando temos uma vista tão bonita à nossa frente.
Ao contrário de mim, na cidade vejo que tudo se passa ao mesmo tempo. As ambulâncias servem de autocarros para os doentes e condenados, enquanto vizinhos e vizinhas sacodem tapetes para a roupa estendida uns dos outros, alegando distração. Ao contrário de mim, nunca há aborrecimento na cidade. As ruas são varridas do seu mau cheiro, enquanto a poluição e os perfumes da vaidade se espreguiçam com grande vontade, cada um para cada canto distinto. Ao contrário de mim, a cidade não se deita na cama a folhear três livros de uma vez, sem efetivamente ler nenhum. Ao contrário de mim, a cidade não esconde o seu caos em roupa que já devia ter ido para lavar e comida que nunca devia ter sido desejada. De todos os modos, não é de mim que quero falar.
Quero falar da cidade tão bonita neste crepúsculo vermelho e azul. Com as luzinhas desfocadas que vejo da janela por limpar, algumas a tilintar dentro das casas e outras nas estradas quase vazias. Parece tão quieta e resolvida. Ao vê-la assim, quase não consigo acreditar que também ela está empestada. Minada de vermes e guerras e vermes que querem guerras – adoeceu. Quero olhar para a doença pelos olhos de Rilke e pensar que será através dela que nos livraremos do que temos de podre. Mas como é que é possível acreditar nisso quando o que está podre é tão violento e barulhento?
A cidade é bonita mas às vezes parece que me entra pela janela dentro com os seus gritos. Acorda-me e abana-me a dizer que não está nada bem, que tem macacos a invadir-lhe as entranhas que berram porque querem berrar e não porque têm algo a dizer. Trepam-lhe as paredes dos prédios e declaram conquista nos topos dos edifícios, fazendo-se ouvir mais alto que as sirenes. São macacos porque não têm humanidade. Encontraram o grande prazer que é olhar para um espelho e nunca mais o largaram. Agora querem mandar na cidade e ela, que sempre mandou em mim, pede-me ajuda. Eu ajudá-la-ia, se pudesse. Se também eu não tivesse doente, de olhos presos à maquina que me fizeram sentir que tinha obrigação de ter. Apita, treme, canta, mostra-me coisas, tudo para me tirar os olhos da cidade. Desculpem, eu sei que não era de mim que ia falar, mas são efeitos colaterais desta doença. Não sou como os macacos que se agarraram aos espelhos, mas parece que às vezes também só me vejo a mim à frente.
A cidade é bonita mas às vezes parece que não me quer como eu a quero a ela. Não sei se é da sua doença, mas olha cada vez menos para mim com ternura. As vizinhas e vizinhos não sacodem migalhas para a roupa estendida dos outros por distração, mas porque no seu espelho bonito não vêem o problema. As suas barrigas não encolhem, nem as suas camas ficam mais pequenas quando incomodam os outros. Mas eu, se não estivesse no nono andar – que é também o último do prédio – não ficaria contente com migalhas de pão no meu estendal. Da mesma forma que não fico contente quando poluem a minha vista sobre a cidade com espelhos voltados de costas para mim e apitos telefónicos que não dizem nada de todo. É como se me tornasse podre por dentro, com macacos nas minhas veias a mandar o lixo para o chão. Com ambulâncias dentro de mim a tentar salvar-me os orgãos, desviando-se de calhaus e encostas que caem sabe Deus de onde. Foi assim que me tiraram o silêncio da cidade – as ambulâncias gritam, os macacos gritam e até os calhaus gritam – todos ao mesmo tempo. É difícil olhar para dentro com uma cidade bonita à minha frente, mas não é difícil ouvir-me gritar no mesmo tom que ela. Um uníssono doloroso, talvez até engraçado e desajeitado.
E eu sei que não era de mim que ia falar. Era da cidade, mas às vezes é difícil perceber onde acaba um e começa o outro. Quando os dois ruímos e nos vendemos. E nos castigamos . E nos cegamos. Talvez em prol de coisa nenhuma, apenas por estarmos doentes com esta mania de sobreviver a qualquer custo, mesmo que seja deitados juntos nesta cama de hospital, com macacos, ambulâncias, migalhas, calhaus e poluição a misturar os limites de um e de outro.
No fim de contas, não sei sobre qual dos dois foi este texto.