O dia em que a ouvi ser apelidada “A Menina do Vestido Bonito” não foi o dia mais feliz da sua vida, mas foi um dos primeiros em que lhe ouvi uma gargalhada sem rebentos de dor. Era Verão e ela plantava flores na roupa, um vestido que a cobria até pouco abaixo dos joelhos bronzeados; no rosto, levava um sorriso germinado como se estivesse a reaprender a sorrir como gente. Era lindo, de facto, o jardim que levava posto – as flores cor-de-rosa, laranja, amarelo e até azul tinham tanto a dizer que se atropelavam no falatório, mas tudo bem, o caos também pode ser bonito.
Mesmo não falando, todos sabiam da busca incessante a que ela se havia dedicado nos meses anteriores. Acordada, a menina do vestido bonito passava as noites à procura de si mesma – atrás da cómoda, debaixo da cama, entre as roupas penduradas no roupeiro, etc. – não estava no seu sem fim de coisas que, por muitas que fossem, não havia meio de lhe encherem a casa . Quando se olhava ao espelho, via uma sombra e, quando via a sua sombra, não se via a si. Tocava-lhe para perceber se era ela que estava a ser projetada contra a parede, se a falta de luz tinha feito dela a própria sombra, mas não se sentia do outro lado do toque. Não se sentia ninguém, presa num trânsito mental, à espera da sua vez de ser. Trocou a noite pelo dia, sem se aperceber. Era na cama que se escondia nas longas horas do sol e era à noite que saia do seu lugar confortável e retomava a sua busca – quem sabe, evitava a luz para evitar a sombra.
Não se lembrava de si, mas o seu problema não era de memória. Estava doente do tipo de tristeza que se aloja no coração e por aí fica a libertar veneno continuamente, de espinhos afundados no existir, até que ele deixe de o ser. Não sabia o que fazer ao corpo que sobrava de si, nem em que momento exato lhe tinham assaltado o templo e roubado as janelas, as portas e todas as saídas.
Ainda que triste, procurou por si nesse corpo que tinha deixado para trás – tinha todas as camadas que precisava para funcionar e, acima de tudo, as mãos e os músculos intactos. Pensou que, se pusesse a sua maquinaria interior a trabalhar, talvez ganhasse vida por dentro e, desse modo, aos poucos, foi conquistando o dia. Começou a pedir à noite para vir mais tarde, porque precisava da luz do sol para ver onde punha as mãos enquanto as sujava com argila e construía pequenas peças de cerâmica. Tinha medo de se estar a iludir com a dedicação mas, com a primeira peça que terminou, não quis acreditar no que via. Naquela pequena obra, a menina do vestido bonito viu-se a si – ou parte de si. Olhou de todos os ângulos, viu como era opaca, forte e impenetrável, tinha uma beleza simples mas que impunha respeito e, acima de tudo, estava completa.
Foi como se desenterrasse o mais valioso dos tesouros, a menina não parou mais de explorar o funcionar da sua máquina. Ouvia-se pelo dia o seu motor interno a trabalhar, como se se esforçasse para iluminar uma cidade inteira – e era isso mesmo o que fazia, ladeava as estradas suas com os mais altos candeeiros, para não deixar qualquer canto escuro. No fundo, é assim que se combatem sombras. Aos poucos, com o malabarismo gracioso entre a argila e a água, descobria novos pedaços de si – alguns deles, já se tinha esquecido que existiam, outros estavam à espera por nascer.
Juntou cada uma das suas obras bem perto do seu coração, amontoadas num pequeno caos emocional que era tão bonito e tão fértil, que não deixou de aumentar. Assim, a menina cresceu tanto que estranhava tudo – a cama, a roupa, a casa, a chuva, a terra –, tudo lhe parecia pequeno e estreito. À medida que se encontrava, também as pessoas pareciam vê-la pela primeira vez. Tornou-se tão grande e visível, que era maior que o mundo – já nem a roupa lhe servia. Com tanta cerâmica para consertar o coração, não tinha mangas que lhe passassem nos braços, golas que lhe passassem na cabeça, nem botas que lhe assentassem nos pés. Decidiu-se, então, a fazer a sua própria roupa e começou por plantar um jardim. Estava ainda na fisioterapia do riso quando o vestiu pela primeira vez e foi nesse dia que lhe chamaram aquilo pelo que a conhecemos hoje. A menina do vestido bonito, cujo nome não deve ser confundido por fraqueza. O vestido tem flores mas também tem raízes e espinhos – para que não se esqueçam que não se pode partir um coração coberto de flores.
Já não tem dívidas de amor, nem medo das sombras – de tal forma, que pintou as paredes de amarelo para as ver melhor – assim não se perdia no escuro. Diziam-lhe que não era bom dormir com cores frenéticas nas paredes, que não combinavam com a mobília, que era demasiado para a vista, “experimenta um bege”, diziam. Mas ela não se importava. Como ela tinha aprendido, também o caos podia ser bonito.
Um comentário a “a menina do vestido bonito”
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