Os lugares são
a geografia da solidão.
São lugares comuns a casa a cama.
(Manuel António Pina)
I FALÉSIA DE PORTO CÔVO Neste sentimento que me tem na vertigem de cair em nós Gasto os beijos que não se gastam e salto aqui neste ter não ter onde não tenho chão só queda livre Confio que há um oceano para nos receber Mergulhamos Mergulhámos na inigualável sensação de medo Salva-me o cheiro e o calor do naufrágio em que juntos inventamos um mundo II CALÇADA DA RUA DA MADALENA A pergunta é quando Não só esperar até ser Esforço de quebrar Imóvel permaneço E tropeço E caio Na terra de ninguém III SALA DE PINTURA NAS BELAS-ARTES Sinto como facadas cada vez que de longe me queres falar Queres falar-me e não o fazes porque não mereço O beijo que não me dás As mãos que não me tocam no corpo O sorriso que não me ofereces porque não mereço Aqui me fico no meu canto esquivo Esquissos os teus desenhos Pinturas no vazio Dedos que trabalham sem destino Pensamentos com destino em mim São esses os que guardo Os pensamentos Porque é o que tenho teu Acarinho essa solidão Porque foi o que me deixaste Com ternura e amor IV PRAIA DA CRUZ QUEBRADA Quando tudo parece nada Quero nada Navego ao sabor amargo da ausência Sonho os dedos cabelos Sonho a Vertigem queda Sonho o espesso vazio do sangue quente Quero tudo V RODOVIÁRIA DE SETE RIOS Um terço da vida toda é feita disto Do que sentes agora O resto é chegar ou partir Pegar ou largar Esquecer Lembrar VI FOYER DO TEATRO NACIONAL (AFORISMO) Há quem padeça de teatro estético, de teatro físico, teatro da palavra, teatro clássico, teatro político, há quem padeça de teatro biográfico ou autobiográfico. Mas há um teatro de que todo o actor padece. O teatro auto-inflingido VII CARRO Estradas em contramão CARRO (2) Olhos na estrada do mendigo A viagem é em contramão Perco sempre aquilo que digo No contorno suave da tua mão VIII À PORTA DE CASA (DEPOIS DE A FECHAR) Estar contigo é lembrar-me às vezes da minha desilusão-própria Namoro o exaspero Desconfio da porta de casa Silencio a palavra-pensamento Salto para o vazio Olvidando desatar o nó E morro (des)abraçado IX CASA DE BANHO (REFLEXO/REFLEXÃO) Sou bastante asseado Considero-me uma pessoa bastante asseada Gostaria de ser uma Pessoa Asseada também Uma Pessoa Asseada e uma pessoa asseada CASA DE BANHO (CHÃO) Onan morreu Dos escombros Renasci Jamais só Contigo Ininterrupto Orgasmo eterno Cego Surdo Mudo Mas eterno X SALA DE ESTAR Suspeitei das sobras dos sussurros assustados Dos dissimulados serões de sofá Salvei as sinopses das emoções passadas Das futuras não sei se as há A chaleira vai chiado mas não gosto de chá Sem saber acendi um cigarro E sabendo o que sei dos assuntos sensíveis Distraí-me mortalhando o passado Ainda ontem indigente fui inventar o epitáfio Para inscrever sobre um túmulo nosso: Aqui jazem os restos mortais de um amor Não deixem que morra o vosso. XI SOFÁ Rezo e quero Espero também Ativamente Busco incessantemente O comando da televisão XII CAMA DE CASAL O frio que está hoje vem de dentro para fora, como um grito CAMA DE CASAL (2) Ah! pudesse eu estar de quarentena CAMA DE CASAL (3) Eu sou em ti tanto Que sou mais eu em ti E entretanto quando só me sinto No labirinto de me encontrar entre tantos outros eus Tu que sabes bem e sabes tão bem vens por mim vens para mim desembocas a tua boca na minha encontras o que eu procuro soltas-te para me agarrar E na madrugada da vida toda nus de tudo e juntos Os meus olhos pelos teus veem o meu corpo pelo teu transpira respira suspira Só porque é assim Só Porque sim Só Porque é verdade Só Mas só contigo XIII VARANDA DO QUINTO ESQUERDO Gostava que fosses mais gorda Para ocupares o espaço todo Do meu abraço VARANDA DO QUINTO ESQUERDO (2) Sou mulher em permanente parir de mim Amo como quem respira Fujo pela janela para um momentâneo ar Mulher é muito mais Tanto mais que a poesia Tanto E mais XIV COZINHA Entonteço e então teço o teu estômago nos meus intestinos, e a alma na lapela COZINHA (2) Como como quem come Oh, que inovação Que rasgo de lucidez Que epifania esclarecedora Que tranquilidade desceu sobre mim com este conhecimento! Tristes aqueles que comem como quem vive Ou como quem faz amor Ou como quem acede a uma dimensão superior Ou como quem! quem! quem! Como os da raça canina. Como e como sabe bem comer delicio-me na alimentação Nutro o corpo Sacio o espírito Mas sempre no espírito de quem come Pois quem come como eu como (que é como quem come) Come, apenas Que é como se deve comer