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Poesia em 14 Lugares Concretos

Os lugares são
a geografia da solidão.
São lugares comuns a casa a cama.
(Manuel António Pina)

I FALÉSIA DE PORTO CÔVO 
  
 Neste sentimento que me tem na vertigem de cair em nós 
 Gasto os beijos que não se gastam e
 salto aqui neste ter não ter
 onde não tenho chão
 só queda livre
 Confio que há um oceano para nos receber 
 Mergulhamos 
 Mergulhámos
 na inigualável sensação de medo
 Salva-me o cheiro e o calor do naufrágio em que juntos 
 inventamos um mundo
  
  
 II CALÇADA DA RUA DA MADALENA
  
 A pergunta é quando
 Não só esperar até ser
 Esforço de quebrar 
 Imóvel permaneço 
 E tropeço
 E caio  
 Na terra de ninguém 
  
  
 III SALA DE PINTURA NAS BELAS-ARTES
  
 Sinto como facadas cada vez que 
 de longe
 me queres falar
 Queres falar-me e não o fazes porque não mereço 
 O beijo que não me dás 
 As mãos que não me tocam no corpo
 O sorriso que não me ofereces 
 porque não mereço 
 Aqui me fico no meu canto 
 esquivo
 Esquissos os teus desenhos
 Pinturas no vazio
 Dedos que trabalham sem destino
 Pensamentos com destino em mim
 São esses os que guardo
 Os pensamentos 
 Porque é o que tenho teu
 Acarinho essa solidão 
 Porque foi o que me deixaste 
 Com ternura e amor
  
  
 IV PRAIA DA CRUZ QUEBRADA
 Quando tudo parece nada 
 Quero nada
 Navego ao sabor amargo da ausência 
 Sonho os dedos cabelos
 Sonho a Vertigem queda
 Sonho o espesso vazio do sangue quente
 Quero tudo 
                              
  
 V RODOVIÁRIA DE SETE RIOS
 Um terço da vida toda é feita disto
 Do que sentes agora 
 O resto é chegar ou partir
 Pegar ou largar
 Esquecer
 Lembrar
  
  
 VI FOYER DO TEATRO NACIONAL (AFORISMO) 
 Há quem padeça de teatro estético, de teatro físico, teatro da palavra, teatro clássico, teatro político, há quem padeça de teatro biográfico ou autobiográfico. Mas há um teatro de que todo o actor padece. O teatro auto-inflingido
  
  
 VII CARRO 
 Estradas em contramão
  
 CARRO (2)
 Olhos na estrada do mendigo
 A viagem é em contramão 
 Perco sempre aquilo que digo
 No contorno suave da tua mão
  
  
 VIII À PORTA DE CASA (DEPOIS DE A FECHAR) 
 Estar contigo é lembrar-me às vezes da minha desilusão-própria
 Namoro o exaspero 
 Desconfio da porta de casa
 Silencio a palavra-pensamento 
 Salto para o vazio 
 Olvidando desatar o nó 
 E morro (des)abraçado 
 
  
 IX CASA DE BANHO (REFLEXO/REFLEXÃO) 
 Sou bastante asseado
 Considero-me uma pessoa bastante asseada
 Gostaria de ser uma Pessoa Asseada também
 Uma Pessoa Asseada
  e uma pessoa asseada
  
 CASA DE BANHO (CHÃO) 
 Onan morreu
 Dos escombros
 Renasci
 Jamais só 
 Contigo 
 Ininterrupto
 Orgasmo eterno
 Cego 
 Surdo
 Mudo
 Mas eterno
  
  
 X SALA DE ESTAR
 Suspeitei das sobras dos sussurros assustados
 Dos dissimulados serões de sofá 
 Salvei as sinopses das emoções passadas
 Das futuras não sei se as há 
 A chaleira vai chiado mas não gosto de chá
 Sem saber acendi um cigarro
 E sabendo o que sei dos assuntos sensíveis
 Distraí-me mortalhando o passado
 Ainda ontem indigente fui inventar o epitáfio 
 Para inscrever sobre um túmulo nosso:
 Aqui jazem os restos mortais de um amor
 Não deixem que morra o vosso. 
  
  
 XI SOFÁ 
 Rezo e quero 
 Espero também
 Ativamente
 Busco incessantemente 
 O comando da televisão 
  
  
 XII CAMA DE CASAL
 O frio que está hoje vem de dentro para fora, como um grito
  
 CAMA DE CASAL (2)
 Ah! pudesse eu estar de quarentena
  
 CAMA DE CASAL (3)
 Eu sou em ti tanto
 Que sou mais eu em ti
 E entretanto quando só me sinto
 No labirinto de me encontrar
 entre tantos outros eus
 Tu 
 que sabes bem
 e sabes tão bem
 vens por mim
 vens para mim
 desembocas a tua boca na minha
 encontras o que eu procuro
 soltas-te para me agarrar
 E na madrugada da vida toda
 nus de tudo e juntos
 Os meus olhos pelos teus veem 
 o meu corpo pelo teu transpira
 respira
 suspira
 Só porque é assim
 Só Porque sim
 Só Porque é verdade
 Só
 Mas só contigo
  
  
 XIII VARANDA DO QUINTO ESQUERDO 
 Gostava que fosses mais gorda
 Para ocupares o espaço todo
 Do meu abraço
  
 VARANDA DO QUINTO ESQUERDO (2)
 Sou mulher em permanente parir de mim
 Amo como quem respira
 Fujo pela janela para um momentâneo ar
 Mulher é muito mais
 Tanto mais que a poesia
 Tanto
 E mais
  
  
 XIV COZINHA 
 Entonteço e então teço o teu estômago nos meus intestinos, e a alma na lapela
  
 COZINHA (2)
 Como como quem come
 Oh, que inovação 
 Que rasgo de lucidez
 Que epifania esclarecedora
 Que tranquilidade desceu sobre mim
 com este conhecimento! 
 Tristes aqueles que comem como quem vive 
 Ou como quem faz amor
 Ou como quem acede a uma dimensão superior
 Ou como quem! quem! quem! 
 Como os da raça canina. 
 Como e como sabe bem comer
 delicio-me na alimentação
 Nutro o corpo
 Sacio o espírito 
 Mas sempre no espírito de quem come
 Pois quem come como eu como
 (que é como quem come) 
 Come, apenas
 Que é como se deve comer 

Por Simon Frankel

nascido a sete de abril de 1982 em Melbourne, Austrália, filho de mãe portuguesa, o pai nasceu no Brasil e viveu a vida toda na Austrália, o avô paterno era alemão, a avó paterna era húngara e a bisavó paterna era romena. Do lado do pai todos judeus, os avós fugidos da perseguição nazi conheceram-se em Inglaterra e foram viver para o Brasil e mais tarde para a Austrália. Os pais conheceram-se no Perú e nesse mesmo dia decidiram casar, o que fizeram dois meses depois. Ainda hoje são felizes. Estudou, deixou de estudar, trabalhou e voltou a estudar. É ator e agricultor/estudante. Come as maçãs todas e deixa só o pauzinho, come os olhos do peixe e os rabos queimados das sardinhas. Sociável e tímido, finge que não é, ninguém acredita. Odeia palmas e opiniões. É fundamentalmente de esquerda porque não existem intelectuais de direita. É apolítico e simpatizante anarquista. É confuso, mas gosta de ser assim. Gosta de ser.

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