Um homem foi atirado da janela do sexto andar. Foi um reboliço no bairro quando o homem se levantou e foi à sua vida com um sorriso na cara e um arco-íris no bolso. É que ninguém fazia ideia que era homossexual e teria ainda seis vidas para disfrutar.
Autor: Simon Frankel
nascido a sete de abril de 1982 em Melbourne, Austrália, filho de mãe portuguesa, o pai nasceu no Brasil e viveu a vida toda na Austrália, o avô paterno era alemão, a avó paterna era húngara e a bisavó paterna era romena. Do lado do pai todos judeus, os avós fugidos da perseguição nazi conheceram-se em Inglaterra e foram viver para o Brasil e mais tarde para a Austrália. Os pais conheceram-se no Perú e nesse mesmo dia decidiram casar, o que fizeram dois meses depois. Ainda hoje são felizes. Estudou, deixou de estudar, trabalhou e voltou a estudar. É ator e agricultor/estudante. Come as maçãs todas e deixa só o pauzinho, come os olhos do peixe e os rabos queimados das sardinhas. Sociável e tímido, finge que não é, ninguém acredita. Odeia palmas e opiniões. É fundamentalmente de esquerda porque não existem intelectuais de direita. É apolítico e simpatizante anarquista. É confuso, mas gosta de ser assim. Gosta de ser.
Ela sempre tinha tido uma dificuldade enorme em tomar decisões. Seria talvez por insegurança, exigência, altruísmo, falta de amor próprio – não auto-estima (porque embora não quisesse admitir, sabia o valor que tinha) – ou teria simplesmente consciência do verdadeiro efeito que cada pequena decisão comporta (bater das asas da borboleta e por aí fora). Era assim nas coisas pequenas, porque nas grandes debatia-se como se a sua vida dependesse disso, e às vezes dependia. Esse debate interno tinha-lhe proporcionado ferramentas que lhe possibilitavam ganhar qualquer discussão. Era, por assim dizer, uma espécie de farol metafórico na vida dos que a rodeavam. Talvez fosse por isso que os seus poderes de argumentação lhe conferiam uma maturidade muito para além dos seus anos de vida. Discretamente atenta ela foi-lhe ensinando (a ele) o poder da liberdade, do desapego e a reflexão profunda sobre a direcção que a vida vai tomando aos poucos, sem darmos conta. Onde é que de repente nos encontramos sem nos darmos conta? – perguntava muitas vezes. Dizia Cai-nos o mundo em cima, questionamos tudo e depois, com muita dificuldade e muitas dúvidas, levantamo-nos e seguimos o mesmo ou outro caminho com os mesmos ou outros obstáculos.
Curiosamente ou não, toda esta sabedoria era virada para fora. Por dentro, no silêncio, dormia uma criança atormentada por pesadelos horríveis populados de acontecimentos inomináveis. Ele quis, na sua soberba, acalentar essa criança turbulenta, solitária, desamparada e acabaram por confundir as decisões de ambos, os pesadelos dos dois. Esculpiram a vida em árvores, resgataram búzios, ganchos de cabelo, pôres-do-sol e luas cheias. Mas nunca puderam existir porque a existência dele tinha-se perdido algures e ela não tinha ainda chegado a existir, não tinha ainda decidido nascer. Por isso nunca existiram juntos e o que existiu foi apenas um choque cósmico de estrelas a muitos milhões de anos-luz que iluminou momentaneamente um pequeno recanto de uma qualquer realidade que será perdida para sempre, desenhos do artista envergonhado fechados numa gaveta. Uma existência recheada de gratidão mas perdida para todos menos para eles que serão, até ao fim, réstias dessa luz.
Foi amor.
Narciso Injustiçado
Não soube o que dizer quando me chamaste narcisita e me viraste as costas. Pensei belas costas, pensei não acho que seja narcisista, pensei que nem sabia bem se ser narcisista era o que eu pensava que era e pensei que te queria responder alguma coisa sobre isso mas já não estavas ali. Eu tinha perdido a oportunidade de impedir que fosses passear as tuas belas costas para outro lado. Nessa noite fiquei acordado como fico muitas vezes. Acho que é porque preciso de sentir a solidão. Pensei em Narciso, claramente das figuras mitológicas mais injustiçadas de que há memória. Pensei nesta afirmação e pensei logo em Ícaro, na sua sede de conhecimento visto como soberba e nalguns outros que por uma razão ou outra foram sendo erradamente reintepretados como maus exemplos para impingir a moralidade da humildade exacerbada anti-sabedoria.
Pensei que a maior lição que narciso nos dá nada tem que ver com as consequências do egoísmo, da vaidade ou do desprezo pelo próximo. Não é culpado dos defeitos da humanidade nem da situação em que foi colocado pelo oráculo que lhe destina a morte no momento em que vê o seu próprio reflexo na água e acaba por definhar, perdido na sua beleza e no amor-próprio, essa noção moderna que impingimos uns aos outros como forma de desculparmos a nossa imperfeição e encontrarmos a felicidade tranquila que nos torna mansos, desinteressados, desinteressantes, incapazes de pensamento crítico e de revolta. A verdade das histórias reside na boca de quem as conta e reconta e no recontar deturpou-se e perdeu-se a essência dessa verdade. E a verdade é que narciso é o herói da luta contra os brandos costumes, contra a aceitação da homogeneidade da espécie humana. Ele recusa o amor não correspondido e apenas deseja partilhar aquilo que no seu íntimo aceita como profundamente real. Não há nada falso em narciso, nada escondido, nada politicamente correto. Acredita na sua esplendorosa beleza e maravilha-se com a possibilidade de ser diferente, de ser único, de ser especial. Essa é a dádiva que nos deixa, a consciência da individualidade que se torna plena quando, contrariando o que lhe era imposto sob pena de tropeçar pela espiral dos dramas humanos, vislumbra o seu próprio reflexo. É por isso que narciso é o herói da história. Sacrifica a sua vida para que tenhamos consciência de nós próprios como seres diferentes de todos os outros, ao mesmo tempo que nos alerta para os perigos da salvação: Em terra de cegos quem tem olho é linchado, crucificado, apedrejado, ridicularizado e morto.
Penso, leio observo, discuto, ponho em causa e questiono, aceito a minha individualidade mas sempre com a consciência de que o conhecimento e a inteligência não trazem felicidade. Trazem consciência e sabedoria. Para cada um de nós valerá ou não o sacrifício.
Pensei que nada disto tem que ver contigo nem com as tuas belas costas mas pensei também que gostava de ter tido esta conversa contigo. Mas não podia. Já não estavas ali.
Poesia em 14 Lugares Concretos
Os lugares são
a geografia da solidão.
São lugares comuns a casa a cama.
(Manuel António Pina)
I FALÉSIA DE PORTO CÔVO Neste sentimento que me tem na vertigem de cair em nós Gasto os beijos que não se gastam e salto aqui neste ter não ter onde não tenho chão só queda livre Confio que há um oceano para nos receber Mergulhamos Mergulhámos na inigualável sensação de medo Salva-me o cheiro e o calor do naufrágio em que juntos inventamos um mundo II CALÇADA DA RUA DA MADALENA A pergunta é quando Não só esperar até ser Esforço de quebrar Imóvel permaneço E tropeço E caio Na terra de ninguém III SALA DE PINTURA NAS BELAS-ARTES Sinto como facadas cada vez que de longe me queres falar Queres falar-me e não o fazes porque não mereço O beijo que não me dás As mãos que não me tocam no corpo O sorriso que não me ofereces porque não mereço Aqui me fico no meu canto esquivo Esquissos os teus desenhos Pinturas no vazio Dedos que trabalham sem destino Pensamentos com destino em mim São esses os que guardo Os pensamentos Porque é o que tenho teu Acarinho essa solidão Porque foi o que me deixaste Com ternura e amor IV PRAIA DA CRUZ QUEBRADA Quando tudo parece nada Quero nada Navego ao sabor amargo da ausência Sonho os dedos cabelos Sonho a Vertigem queda Sonho o espesso vazio do sangue quente Quero tudo V RODOVIÁRIA DE SETE RIOS Um terço da vida toda é feita disto Do que sentes agora O resto é chegar ou partir Pegar ou largar Esquecer Lembrar VI FOYER DO TEATRO NACIONAL (AFORISMO) Há quem padeça de teatro estético, de teatro físico, teatro da palavra, teatro clássico, teatro político, há quem padeça de teatro biográfico ou autobiográfico. Mas há um teatro de que todo o actor padece. O teatro auto-inflingido VII CARRO Estradas em contramão CARRO (2) Olhos na estrada do mendigo A viagem é em contramão Perco sempre aquilo que digo No contorno suave da tua mão VIII À PORTA DE CASA (DEPOIS DE A FECHAR) Estar contigo é lembrar-me às vezes da minha desilusão-própria Namoro o exaspero Desconfio da porta de casa Silencio a palavra-pensamento Salto para o vazio Olvidando desatar o nó E morro (des)abraçado IX CASA DE BANHO (REFLEXO/REFLEXÃO) Sou bastante asseado Considero-me uma pessoa bastante asseada Gostaria de ser uma Pessoa Asseada também Uma Pessoa Asseada e uma pessoa asseada CASA DE BANHO (CHÃO) Onan morreu Dos escombros Renasci Jamais só Contigo Ininterrupto Orgasmo eterno Cego Surdo Mudo Mas eterno X SALA DE ESTAR Suspeitei das sobras dos sussurros assustados Dos dissimulados serões de sofá Salvei as sinopses das emoções passadas Das futuras não sei se as há A chaleira vai chiado mas não gosto de chá Sem saber acendi um cigarro E sabendo o que sei dos assuntos sensíveis Distraí-me mortalhando o passado Ainda ontem indigente fui inventar o epitáfio Para inscrever sobre um túmulo nosso: Aqui jazem os restos mortais de um amor Não deixem que morra o vosso. XI SOFÁ Rezo e quero Espero também Ativamente Busco incessantemente O comando da televisão XII CAMA DE CASAL O frio que está hoje vem de dentro para fora, como um grito CAMA DE CASAL (2) Ah! pudesse eu estar de quarentena CAMA DE CASAL (3) Eu sou em ti tanto Que sou mais eu em ti E entretanto quando só me sinto No labirinto de me encontrar entre tantos outros eus Tu que sabes bem e sabes tão bem vens por mim vens para mim desembocas a tua boca na minha encontras o que eu procuro soltas-te para me agarrar E na madrugada da vida toda nus de tudo e juntos Os meus olhos pelos teus veem o meu corpo pelo teu transpira respira suspira Só porque é assim Só Porque sim Só Porque é verdade Só Mas só contigo XIII VARANDA DO QUINTO ESQUERDO Gostava que fosses mais gorda Para ocupares o espaço todo Do meu abraço VARANDA DO QUINTO ESQUERDO (2) Sou mulher em permanente parir de mim Amo como quem respira Fujo pela janela para um momentâneo ar Mulher é muito mais Tanto mais que a poesia Tanto E mais XIV COZINHA Entonteço e então teço o teu estômago nos meus intestinos, e a alma na lapela COZINHA (2) Como como quem come Oh, que inovação Que rasgo de lucidez Que epifania esclarecedora Que tranquilidade desceu sobre mim com este conhecimento! Tristes aqueles que comem como quem vive Ou como quem faz amor Ou como quem acede a uma dimensão superior Ou como quem! quem! quem! Como os da raça canina. Como e como sabe bem comer delicio-me na alimentação Nutro o corpo Sacio o espírito Mas sempre no espírito de quem come Pois quem come como eu como (que é como quem come) Come, apenas Que é como se deve comer
Vegemite e Amor
Tinha-me acontecido tudo naquele dia, de tal forma forma que aquele dia passou a ser conhecido, por mim pelo menos, por Aquele Dia. Quando penso na forma como Aquele Dia ficou imprimido na minha memória lembro-me sempre da maquineta daquelas com fitas de colar com letras de imprensa que usava para escrever o meu nome nos cadernos, nos brinquedos, nas prateleiras, na cabeceira da cama, a maquineta com que escrevi o teu nome e o meu por baixo da secretária onde fazia os trabalhos de casa e estudava o mapa plastificado que a cobria, os meus dedos sonhando com viagens em roteiros por países longínquos e desconhecidos. As letras ainda estão coladas debaixo da secretária e Aquele Dia está colado na minha memória.
Acordei da cama que era demasiado alta para o meu tamanho e saltei para o chão para que os gremlins que lá viviam debaixo não me agarrassem as canelas, corri para a casa de banho e fiz o meu xixi matinal sentado porque sempre joguei pelo seguro e como vivia numa casa quase só com mulheres nunca aprendi verdadeiramente a fazer xixi de pé sem pingar um bocado para fora. Já estava gente acordada em casa, fui introduzido na rotina matinal que era costume naquele tempo e zarpámos em direcção à escola.
Entrei na sala, vi-te pela primeira vez e tentei sem sucesso recolher o meu coração que tinha passado para o estado líquido e descia velozmente em direcção aos intestinos onde se transformou em milhares de pequenas borboletas azuis que me faziam cócegas nas paredes do abdómen enquanto tentavam alegremente encontrar uma saída. Acabaram por encontrar e soltei uma gás audível que fez toda a gente rir e me fez fugir para o exterior com vergonha não do som ou do riso mas de te enfrentar de cara vermelha e assumir logo naquele momento o meu amor eterno por ti. Diziam que eras a miúda mais feia da escola e no entanto eu amava-te, com o teu cabelo ruivo, nariz batatudo, sem dentes da frente e os olhos mais azuis e doces que alguma vez tinha visto em toda a minha curta vida. Corri para trás do poço que havia no meio do recreio e três dos rapazes vieram atrás de mim a gozar e a rir. Sem pensar, o meu primeiro acto verdadeiramente violento traduziu-se naquela pedra que atirei e acertou em cheio na cabeça de um deles que imediatamente foi ao chão a gritar e a espernear com dores. O rapaz acabou por ir para o hospital levar dois pontos e eu fiquei obviamente de castigo na salinha perto da entrada onde guardávamos as lancheiras com o almoço e o lanche do dia, o meu cérebro a batalhar entre o completamente chocado com a minha incompreensível violência e completamente apaixonado cheio de vontade de voltar a banhar-me na admirável luz da tua presença. Percebi mais tarde que o amor tem a capacidade extraordinária de nos destabilizar ao ponto de não nos reconhecermos e de incompreendermos repentinamente o mundo à nossa volta.
Entretanto o cheiro da comida das lancheiras começou intrometer-se nos meus pensamentos e distraídamente comecei a abrir as lacheiras uma por uma e a picar qualquer coisa que me matasse a fome e fosse diferente das sandes com vegemite e do aipo com manteiga de amendoim que todos os dias recheavam a minha lancheira. Não é que não gostasse da minha comida mas variar e descobrir novos sabores é sempre positivo para o palato e para a alma. Embora na altura ainda não desconfiasse, o amor abre o apetite, ou pelo menos dá vontade de comer e sentir o corpo a libertar aquela seratotina para compensar o desgaste emocional da paixão juvenil. A porta abriu-se e surgiu a inevitável pergunta gritada O que é que tu estás a fazer ao que tive de responder calmamente com o mais inocente olhar de gato das botas que consegui engendrar, Estou a comer. Novo castigo, desta vez sentado ao lado da educadora para ficar debaixo de olho, sem poder participar nas atividades do grupo. Achavam eles que era um castigo, para mim era um sonho, poder olhar para ti aquele tempo todo sem os entraves de exercícios de apredizagem para me distraírem.
Passado algum tempo a educadora deve ter percebido que o castigo não estava a surtir o efeito de arrependimento e remorso desejado e colocou nas minhas mãos o trabalho minucioso de agrafar conjuntos de documentos e fichas para entregar aos pais, uma óbvia receita para o trágico acontecimento que se segiu. Depois do grito, do sangue e de ter de usar um alicate para retirar o agrafo do polegar magoado, o meu corpo caíu numa espécie de letargia, exausto e assoberbado pelos acontecimentos do dia. Comecei a sentir a cabeça a andar à roda, senti a quebra de tensão e desmaiei para cima do sofá enquanto esperava pelo copo de água com açúcar que me devolvesse alguma côr e alguma vida. Naquele estado de dormência e turpor pensei em como o amor é como agrafar o polegar: traz dôr, sangue, fraqueza e dormência. Pensamos que nao passa, que é para sempre. E está agrafado.
A minha mãe chegou e enquanto conversava com a professora convenci-me de que nada daquilo valia a pena, nem o amor nem o resto e estava prestes a levantar-me para abraçar a minha mãe quando te aproximaste de mim e com o teu melhor sorriso desdentado perguntaste se me ia mascarar amanhã para a festa da escola. Sorri com fraqueza e disse que não sabia. Ainda hoje guardo a nossa fotografia, de mão dada, eu vestido de Batman e tu de princesa do xabá ambos com um sorriso de orelha a orelha e eu cheio de amor, agrafo no dedo e feliz.