Tinha-me acontecido tudo naquele dia, de tal forma forma que aquele dia passou a ser conhecido, por mim pelo menos, por Aquele Dia. Quando penso na forma como Aquele Dia ficou imprimido na minha memória lembro-me sempre da maquineta daquelas com fitas de colar com letras de imprensa que usava para escrever o meu nome nos cadernos, nos brinquedos, nas prateleiras, na cabeceira da cama, a maquineta com que escrevi o teu nome e o meu por baixo da secretária onde fazia os trabalhos de casa e estudava o mapa plastificado que a cobria, os meus dedos sonhando com viagens em roteiros por países longínquos e desconhecidos. As letras ainda estão coladas debaixo da secretária e Aquele Dia está colado na minha memória.
Acordei da cama que era demasiado alta para o meu tamanho e saltei para o chão para que os gremlins que lá viviam debaixo não me agarrassem as canelas, corri para a casa de banho e fiz o meu xixi matinal sentado porque sempre joguei pelo seguro e como vivia numa casa quase só com mulheres nunca aprendi verdadeiramente a fazer xixi de pé sem pingar um bocado para fora. Já estava gente acordada em casa, fui introduzido na rotina matinal que era costume naquele tempo e zarpámos em direcção à escola.
Entrei na sala, vi-te pela primeira vez e tentei sem sucesso recolher o meu coração que tinha passado para o estado líquido e descia velozmente em direcção aos intestinos onde se transformou em milhares de pequenas borboletas azuis que me faziam cócegas nas paredes do abdómen enquanto tentavam alegremente encontrar uma saída. Acabaram por encontrar e soltei uma gás audível que fez toda a gente rir e me fez fugir para o exterior com vergonha não do som ou do riso mas de te enfrentar de cara vermelha e assumir logo naquele momento o meu amor eterno por ti. Diziam que eras a miúda mais feia da escola e no entanto eu amava-te, com o teu cabelo ruivo, nariz batatudo, sem dentes da frente e os olhos mais azuis e doces que alguma vez tinha visto em toda a minha curta vida. Corri para trás do poço que havia no meio do recreio e três dos rapazes vieram atrás de mim a gozar e a rir. Sem pensar, o meu primeiro acto verdadeiramente violento traduziu-se naquela pedra que atirei e acertou em cheio na cabeça de um deles que imediatamente foi ao chão a gritar e a espernear com dores. O rapaz acabou por ir para o hospital levar dois pontos e eu fiquei obviamente de castigo na salinha perto da entrada onde guardávamos as lancheiras com o almoço e o lanche do dia, o meu cérebro a batalhar entre o completamente chocado com a minha incompreensível violência e completamente apaixonado cheio de vontade de voltar a banhar-me na admirável luz da tua presença. Percebi mais tarde que o amor tem a capacidade extraordinária de nos destabilizar ao ponto de não nos reconhecermos e de incompreendermos repentinamente o mundo à nossa volta.
Entretanto o cheiro da comida das lancheiras começou intrometer-se nos meus pensamentos e distraídamente comecei a abrir as lacheiras uma por uma e a picar qualquer coisa que me matasse a fome e fosse diferente das sandes com vegemite e do aipo com manteiga de amendoim que todos os dias recheavam a minha lancheira. Não é que não gostasse da minha comida mas variar e descobrir novos sabores é sempre positivo para o palato e para a alma. Embora na altura ainda não desconfiasse, o amor abre o apetite, ou pelo menos dá vontade de comer e sentir o corpo a libertar aquela seratotina para compensar o desgaste emocional da paixão juvenil. A porta abriu-se e surgiu a inevitável pergunta gritada O que é que tu estás a fazer ao que tive de responder calmamente com o mais inocente olhar de gato das botas que consegui engendrar, Estou a comer. Novo castigo, desta vez sentado ao lado da educadora para ficar debaixo de olho, sem poder participar nas atividades do grupo. Achavam eles que era um castigo, para mim era um sonho, poder olhar para ti aquele tempo todo sem os entraves de exercícios de apredizagem para me distraírem.
Passado algum tempo a educadora deve ter percebido que o castigo não estava a surtir o efeito de arrependimento e remorso desejado e colocou nas minhas mãos o trabalho minucioso de agrafar conjuntos de documentos e fichas para entregar aos pais, uma óbvia receita para o trágico acontecimento que se segiu. Depois do grito, do sangue e de ter de usar um alicate para retirar o agrafo do polegar magoado, o meu corpo caíu numa espécie de letargia, exausto e assoberbado pelos acontecimentos do dia. Comecei a sentir a cabeça a andar à roda, senti a quebra de tensão e desmaiei para cima do sofá enquanto esperava pelo copo de água com açúcar que me devolvesse alguma côr e alguma vida. Naquele estado de dormência e turpor pensei em como o amor é como agrafar o polegar: traz dôr, sangue, fraqueza e dormência. Pensamos que nao passa, que é para sempre. E está agrafado.
A minha mãe chegou e enquanto conversava com a professora convenci-me de que nada daquilo valia a pena, nem o amor nem o resto e estava prestes a levantar-me para abraçar a minha mãe quando te aproximaste de mim e com o teu melhor sorriso desdentado perguntaste se me ia mascarar amanhã para a festa da escola. Sorri com fraqueza e disse que não sabia. Ainda hoje guardo a nossa fotografia, de mão dada, eu vestido de Batman e tu de princesa do xabá ambos com um sorriso de orelha a orelha e eu cheio de amor, agrafo no dedo e feliz.
Um comentário a “Vegemite e Amor”
Bem Simon! Lindo conto sobre amor