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A Gratidão Triste de uma Existência Quase Possível

Ela sempre tinha tido uma dificuldade enorme em tomar decisões. Seria talvez por insegurança, exigência, altruísmo, falta de amor próprio – não auto-estima (porque embora não quisesse admitir, sabia o valor que tinha) – ou teria simplesmente consciência do verdadeiro efeito que cada pequena decisão comporta (bater das asas da borboleta e por aí fora). Era assim nas coisas pequenas, porque nas grandes debatia-se como se a sua vida dependesse disso, e às vezes dependia. Esse debate interno tinha-lhe proporcionado ferramentas que lhe possibilitavam ganhar qualquer discussão. Era, por assim dizer, uma espécie de farol metafórico na vida dos que a rodeavam. Talvez fosse por isso que os seus poderes de argumentação lhe conferiam uma maturidade muito para além dos seus anos de vida. Discretamente atenta ela foi-lhe ensinando (a ele) o poder da liberdade, do desapego e a reflexão profunda sobre a direcção que a vida vai tomando aos poucos, sem darmos conta. Onde é que de repente nos encontramos sem nos darmos conta? – perguntava muitas vezes. Dizia Cai-nos o mundo em cima, questionamos tudo e depois, com muita dificuldade e muitas dúvidas, levantamo-nos e seguimos o mesmo ou outro caminho com os mesmos ou outros obstáculos.
Curiosamente ou não, toda esta sabedoria era virada para fora. Por dentro, no silêncio, dormia uma criança atormentada por pesadelos horríveis populados de acontecimentos inomináveis. Ele quis, na sua soberba, acalentar essa criança turbulenta, solitária, desamparada e acabaram por confundir as decisões de ambos, os pesadelos dos dois. Esculpiram a vida em árvores, resgataram búzios, ganchos de cabelo, pôres-do-sol e luas cheias. Mas nunca puderam existir porque a existência dele tinha-se perdido algures e ela não tinha ainda chegado a existir, não tinha ainda decidido nascer. Por isso nunca existiram juntos e o que existiu foi apenas um choque cósmico de estrelas a muitos milhões de anos-luz que iluminou momentaneamente um pequeno recanto de uma qualquer realidade que será perdida para sempre, desenhos do artista envergonhado fechados numa gaveta. Uma existência recheada de gratidão mas perdida para todos menos para eles que serão, até ao fim, réstias dessa luz.
Foi amor.

Por Simon Frankel

nascido a sete de abril de 1982 em Melbourne, Austrália, filho de mãe portuguesa, o pai nasceu no Brasil e viveu a vida toda na Austrália, o avô paterno era alemão, a avó paterna era húngara e a bisavó paterna era romena. Do lado do pai todos judeus, os avós fugidos da perseguição nazi conheceram-se em Inglaterra e foram viver para o Brasil e mais tarde para a Austrália. Os pais conheceram-se no Perú e nesse mesmo dia decidiram casar, o que fizeram dois meses depois. Ainda hoje são felizes. Estudou, deixou de estudar, trabalhou e voltou a estudar. É ator e agricultor/estudante. Come as maçãs todas e deixa só o pauzinho, come os olhos do peixe e os rabos queimados das sardinhas. Sociável e tímido, finge que não é, ninguém acredita. Odeia palmas e opiniões. É fundamentalmente de esquerda porque não existem intelectuais de direita. É apolítico e simpatizante anarquista. É confuso, mas gosta de ser assim. Gosta de ser.

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