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Catarina, por quem sois?

Esta pergunta perseguiu-me toda a semana antes de te conhecer. A amiga que nos apresentou avisou-me com alguma antecedência que iria conhecer uma Catarina. Ela conhecia as minhas experiências passadas e tentou acalmar-me dizendo-me o teu nome. Há muito tempo que não convivia com uma Catarina e por isso tinha muitos receios do que poderia esperar. Não que as Catarinas que conheci antes fossem problemáticas ou que me tivessem dado má impressão, mas digamos antes que as credenciais que me deixaram não eram muito positivas. 

Não acreditas? 

Vejamos, a última Catarina com quem convivi a sério era possuída por uma depressão cada noite que estávamos juntos. E não, por uma vez não era eu que a punha naquele estado. Era ela Ofélia e eu o espírito do rei condenado a vaguear pelas muralhas frias de Helsingør. Em desespero, ela subia a uma árvore de onde mergulhava para a sua morte no leito do rio. Noite após noite tive de carregá-la para o Outro Lado para apaziguar a sua alma e deixar a água correr. Sim, era num palco e sim, era a fingir. Não ajudou.

A outra Catarina, era muito mais poderosa e de outra categoria. Categoria 5 disseram-me. Tinha o poder de arrancar árvores pela raiz e de levantar casas inteiras deixando um rasto de desespero e destruição à sua passagem. Assustava tanto de longe como de perto. Esta Catarina, ou Katrina como ficou conhecida, deu-me um baile nos céus da costa florida. Atirou-me em todas as direções e pôs-me a voar de pernas para o ar. Foi única, mas também não contribuiu para a minha experiência com Catarinas. 

Lembrei-me ainda de outra Catarina, cuja história só conheci recentemente que, com o seu charme ensinou todo um império a parar às cinco da tarde para saborear folhas secas diluídas em água fervida.

Serias tu alguma destas? 

A dúvida angustiou-me até ao dia do nosso primeiro encontro. Chovia a cântaros. Cheguei cedo na esperança de te ver pela janela. Estavas sentada no final da sala do Café com um livro aberto no teu colo. Percebi que teria de atravessar toda a sala para chegar ao teu lado. Entre a porta da rua e a tua mesa não havia obstáculos. Ainda assim imaginei que era um soldado prestes a atravessar um campo minado na esperança de chegar a terra livre. Num campo minado o perigo está no caminho, não no destino. 

Abri a porta e entrei. 

O vento que entrou atrás de mim fez bater a porta com estrondo e levou a que todos olhassem para mim por um momento. Para mim, que pingava por todos os lados enquanto abria o casaco. Confrontei-os, olhos nos olhos, um a um. Arrisquei um passo, mas reparei que não te tinhas virado. Temi que te fosse indiferente. E que tu fosses indiferente à minha entrada. Ou que o livro que lias te levava toda a atenção. Sobraria alguma para mim? 

Dei meia volta, voltei a fechar o casaco e preparei-me para sair e diluir-me na chuva de fora quando senti uma mão que me toca no ombro. 

Eras tu. 

Atravessaste o campo minado para vir ter comigo. Disseste: “Estava à tua espera!”. E os meus receios desapareceram no teu sorriso.    

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Cabeça-balão

Perdi a cabeça. Podia ter enlouquecido, perdido o controlo, deixado de saber quem sou, onde estou e todas essas derradeiras questões existenciais. Podia ter perdido o emprego, um comboio, a carteira, as chaves de casa ou do carro, um amor que julgava eterno ou até um cão que me era querido. Podia ter perdido o apetite, a energia, a vontade, a memória, a paciência, a fé, a coragem… Mas perdi a cabeça.

Soltou-se fisicamente do meu corpo. Não sei precisar o tempo que perdi à procura de alguém que se fingisse especialista capaz de ajudar nestes casos de cabeças perdidas. Salvou-me uma costureira. Encarregou-se de me encher de nagalhos no pescoço para que a cabeça ficasse amarrada a mim e não me fugisse mais. Chamam-me enforcado, tal é a malha de nagalhos em nós cegos. Eu próprio já lhes perdi a conta. 

Tudo começou com uma dor na coluna. Trepou-me vértebra por vértebra e, assim que pôde, agarrou-se ao meu pescoço. Entrou pescoço adentro e esticou-se até o distender. Milímetro a milímetro, senti-os todos. Já o pescoço se via mais alto quando a dor, que julgava terminar ali, me sobe cabeça a cima. Trepou até à ponta da coluna e desaguou no que pareceu ser o centro do meu cérebro. Aí, desatou numa correria desenfreada, como quem faz do crânio uma esfera da morte – aquelas estruturas esféricas metálicas onde motas correm a altas velocidades, não sei bem se a fugir da morte, se a correrem atrás dela. A dor correu então pelo crânio e atropelou sem piedade toda e cada partícula de osso a uma velocidade que duvido ser sequer mensurável. Arrancou depois sem aviso e foi como se me tivesse atravessado a testa, esmigalhando toda a estrutura óssea que a constitui. Saiu de rompante, mas nem por isso deu espaço ao alívio. Foi como se me rebentasse a cabeça num ápice agudo e voltasse para pisar a cratera que me abriu. Nesse momento desejei não ter cabeça, quis oferecê-la à dor. Não sei se me levou a mal e quis ir ou se a levaram. Sei apenas que se foi.

Não é surpreendente que o meu corpo me desobedeça. Sou pouco coordenado, lento e desajeitado. Nunca encontrei especial habilidade para o desporto e quando a cabeça se soltou revivi a minha curta experiência no volley. Senti-me de novo a correr timidamente, em círculos e sem critério. Jogava sempre de mãos no ar, mas a bola nunca lhes tocou. Tinha a intenção, mas faltava-me intuição. A cabeça-balão soltou-se acelerada como um balão largado ainda sem nó e, tal como a bola, não sei deixava agarrar. Já era tosco quando era inteiro e a divisão não me beneficiou. 

Primeiro, é preciso algum tempo para reaprender a controlar o corpo sem o comando. Refiro-me à cabeça que, quando se liberta do corpo, renuncia à responsabilidade sobre o que nele acontece. É necessário um nível de destreza quase olímpico para almejar tocar-lhe. Agarrá-la parece coisa do divino. Depois de vaguear como quem corre, começa eventualmente a abrandar. Mas neste ponto da expedição, parece transformar-se num balão de hélio e aponta ao céu como destino. No caso, ao teto. A minha casa é alta e não sou bom trepador. Um pequeno toque, por muito cauteloso que seja, pode atirar a cabeça para outro canto. Tentei de tudo, até reconduzi-la com o auxílio de um cabo de vassoura. Foi medianamente eficaz, mas altamente desconfortável. Quando finalmente a recuperei, sentei-me no sofá com ela ao colo. A visão continua do lado da cabeça. Olhei atentamente para o meu pescoço meio desfeito com quase tanto asco como entusiasmo. O que podia exigir de mim? Tinha acabado de perder a cabeça. Lembro-me de tudo e sei precisamente como aconteceu, mas isso não me junta a cabeça ao corpo, nem explica porque é que ela se foi. 

Recorri ao meu psicanalista. Respeito o homem e o seu trabalho, mas desde que lhe contei tudo sobre como perdi a cabeça, o pescoço do senhor ganhou dois centímetros e quarenta e dois milímetros. Foi este o cumprimento preciso que o meu pescoço viu crescer numa primeira fase, que antecipava o momento em que ela se soltou de mim sem permissão. Não digo sem aviso porque o sinal estava lá. Não soube interpretar e a ciência não estava ainda preparada. 

Dou por mim nas sessões de terapia a alertar o psicanalista de que estão prestes a rebentar. Não as águas, mas as costuras invisíveis que lhe seguram a cabeça. O homem ri. Mas ri dois centímetros e quarenta e dois milímetros mais acima do que ria antes. Com a precisão que olho me concede, tenho registado o crescimento do pescoço do doutor nos últimos meses. Se o caso dele se manifestar da mesma forma que o meu – como tem sido – faltam-lhe apenas sete milímetros para atingir a expansão que o meu pescoço tinha à data da separação. Pelas minhas contas, a cabeça vai descolar pescoço-pista fora às 15h56 de quinta-feira. 

Ofereci-lhe nagalhos, mas não os quis. Deu-os ao cão para brincar. Sempre que ouço as unhas grossas do cão arranhar o chão flutuante do consultório, imagino o momento em que a cabeça do doutor levanta voo e se transforma num brinquedo. Será que vai chiar, como os brinquedos coloridos insuflados que o cão costuma trazer alegremente entre os dentinhos afiados? Chamo-lhe cão porque não sei o nome. O doutor recusa-se a dizer-me como se chama. Diz-me que é uma informação muito pessoal e não podemos criar laços. Nem criar laços, nem trocar nagalhos, e a cabeça que se vá. Já nem é por ele, que parece quase curioso por experienciar esta perda, é por mim. Podendo escolher, preferia um psicanalista inteiro. Como posso esperar que o doutor me resolva o problema do qual o próprio sofre em negação? Ninguém pede a um coxo para lhe ensinar a correr. 

Estou mais determinado a encontrar possíveis motivos para tudo isto do que o psicanalista. É esforçado, mas peca pela falta de criatividade. Gere as minhas deambulações, mas não contribui especialmente para elas. 

Comecei por baixo na escala da insanidade. Primeira opção: a culpa é minha. Sempre sofri com dores de cabeça. Desde que me lembro de a sentir, ela doía com alguma frequência. As crianças não estão preparadas para sofrer tanto e eu rogava pragas ao universo por me fazer sentir assim. A minha mãe caminhava sobre joanetes disformes que lhe causavam uma dor tão aguda que chegava a chorar. Dizia com frequência que preferia cortar os pés a sentir aquilo. Não fosse mimetizar uma arte das crianças, eu próprio considerei que cortar a cabeça podia ser a solução para o meu mal. Disse, pensei e senti que queria não ter cabeça. Talvez me tenha amaldiçoado. Ainda assim, parece-me coisa pouca para tamanho circo. 

A necessidade de perceber o porquê foi perdendo intensidade com a clara falta de respostas. O psicanalista apresentou-me uma tese que me roubou vontade de mergulhar tão fundo porque, pasmem-se, a culpa também era minha. Atirou-me à cara um episódio trágico. Tinha quatro anos quando decapitei o Sebastião, um peixe dourado que exigia responsabilidade que eu ainda não possuía. Numa manhã fria e sem vigia parental, encontrei-o a boiar e tentei reanimá-lo. Quis fechar-lhe os olhos como se vê fazer na televisão, mas não havia pálpebras que os tapassem. Os olhos ainda brilhantes e desproporcionais provocaram-me desconforto tal que, com força desmedida e num impulso que ainda hoje não compreendo, separei acidentalmente o corpo da cabeça. A imagem da cabeça do Sebastião na minha mão direita e o resto do corpo na mão esquerda assombraram-me em pesadelos recorrentes durante anos. O psicanalista diz que a culpa que guardo pode ser a causa da desintegração do meu corpo, o que me permitiu concluir que não preciso assim TANTO de uma razão. Culpa há muita e acho desnecessário chafurdar.

Escolhi ver os nagalhos que me seguram a cabeça como uma piada – ainda que palerma – sobre a minha distração crónica. Ouvi mais vezes do que seria tolerável “só não perdes a cabeça porque está agarrada”, facto que vim a comprovar pouco depois da primeira tentativa de a segurar. Percebi a piada, não ri e queria o corpo antigo de volta, por favor. Obrigado. 

Confirmei a precariedade do primeiro kit de nagalhos pouco depois de o instalar. Corto o cabelo na barbearia do senhor Zeca há mais de dezoito anos. A idade já lhe pesa na vista, os óculos deslizam nariz abaixo e, nos últimos cortes, a navalha deixou um rasto trágico, parecia guiada por uma toupeira.

O senhor Zeca começa sempre de baixo para cima e sempre atrás, onde o pescoço se cobre com os primeiros cabelos. Precisamente o local onde a dor se fixou antes de invadir o interior do meu crânio até sair num ápice pela minha testa. O senhor Zeca é um bom homem, mas é céptico. Pedi-lhe que tivesse cuidado, não fosse dar-me cabo do sistema sem querer. Incrédulo, repetiu várias vezes que era “impossível”, mas que eu era “muito engraçado”. Mesmo estando a ver todos os nagalhos, não acreditava. Explicar que tenho a cabeça presa ao corpo por pequenos cordelinhos tem tanto de insano como de exaustivo. Mas também não posso não explicar. 

O senhor Zeca não acreditava, nem aceitava a minha explicação. Já me contento quando acenam e me chamam maluquinho com os olhos. Mas a reação do senhor Zeca custou-me. Conhece-me há anos, esperava outra postura. Ouvi-lo descredibilizar o meu problema e a minha dor daquela forma, fez nascer em mim revolta. Ponderei, durante dois segundos, desfazer todos os nós e soltar a cabeça à frente dos seus olhos só para lhe mostrar que não tinha graça nenhuma. Levei a mão a um dos nagalhos centrais mas, felizmente, apesar de solta, a cabeça preserva algum juízo e soube acalmar-me a tempo. Não tenho especial prazer em traumatizar idosos. 

O senhor Zeca percebeu que me arreliou. Olhou-me pelo espelho e mostrou-se mais cuidadoso. Notei pela sua conversa que estava a tentar avaliar o meu estado e diagnosticar-me uma qualquer loucura que justificasse os preparos em que me apresentei. Entre cortes, desviava o olhar dos nagalhos. Vi-lhe o esforço, vi a tentativa de olhar para eles como quem não os vê. Sem sucesso, retomou o corte de olhar fixo no espelho, sempre nos meus olhos refletidos no espelho e nunca no meu pescoço, nunca nos nagalhos! Percebi que sairia com o pior corte até ali testemunhado, mas antes isso que uma guedelha a tapar-me os olhos. Tentei explicar-lhe que a minha vida estava tão boa ou tão má como habitualmente. Jurei que nada tinha a ver com enforcamento. “Queres morrer?”, perguntou-me, preocupado. Hesitei, mas respondi “às vezes”. O senhor Zeca afastou a navalha da minha cabeça, inclinou-se para trás e observou-me mais atento. Ri e perguntei “quem nunca quis?”. Relaxou, mas não totalmente. Antes de retomar, tentou convencer-me a deixar crescer o cabelo. “Disfarça os nagalhos, se não os quiseres tirar”, propôs-me quase como quem pergunta. “Não os posso tirar”, disse-lhe, menos paciente. “Um dia vais poder”, respondeu-me com um olhar esperançoso e uma palmadinha quente e condescendente nas costas. Julga-me louco. “Acho que o senhor Zeca não está a perceber… Se os desapertar, ela vai-se”, apontei para a minha cabeça. Não me respondeu. 

Vi-o concentrar-se no meu pescoço, levou a mão direita à bata e sacou de uma pequena tesoura. Ouvi o corte. Senti o corte. Foram-se três nagalhos e a minha nuca começou a elevar-se, como um verdadeiro balão com corda solta para voar. Suspirei aborrecido e tentei servir-me do espelho para agarrar a cabeça e atar de novo os nagalhos. O senhor Zeca, de tão aterrorizado, parecia congelado. Pálido, recupera apenas o suficiente para dar três passos acelerados para trás. De mãos na cabeça, olhei-o e dei-lhe alguns minutos para se recompor. As pálpebras do homem continuavam a desafiar a física e abriam mais e mais. “É verdade”, disse o homem entre gaguejos. Confirmei-lhe o que via e pedi ajuda para voltar a amarrar a cabeça ao corpo. Cedeu hesitante, quase enojado, mas sobretudo arrependido. Larguei a cabeça quando ele a agarrou. O senhor Zeca sentiu a força da cabeça-balão e, talvez assustado, largou-a bruscamente. A nuca voltou a virar-se para o céu e o movimento fez soltar mais uns quantos nagalhos. “Ela flutua!”, exclama mais entusiasmado. Para lá dos meus pés, só conseguia ver a minha vida a andar para trás. Consegui amarrar a cabeça, mas continuo à procura de um barbeiro… O senhor Zeca não me apanha lá que não tente cortar uns quantos nagalhos para me exibir aos outros clientes como um número de circo incluído no serviço.

Talvez tenha enlouquecido, perdido o controlo, deixado de saber quem sou, onde estou e todas essas derradeiras questões existenciais. Talvez tenha perdido o emprego, um comboio, a carteira, as chaves de casa ou do carro, um amor que julgava eterno ou até um cão que me era querido. Talvez tenha perdido tudo e isso me tenha levado a perder a cabeça. Não sou louco, sou um decapitado que respira e procura um barbeiro. A cabeça fez-se balão, mas nem assim deixou de doer.

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Papagaio Amarelo

Alice vivia sozinha, mas nem por isso alguma vez se sentiu sozinha. Grande parte deve-se à sua vizinha Papagaio Amarelo, assim a trata Alice, de forma carinhosa, claro. Papagaio Amarelo vive no prédio laranja em frente ao apartamento de Alice, entre elas há um jardim, muito bem arranjado e verde, graças à relva, árvores e arvoredos, com bancos que permite alguns dos habitantes partilhar algumas palavras em momentos de descanso. Muito embora este jardim não seja exclusivo destes habitantes, é um jardim rodeado de prédios e apenas ruas estreitas e com chão em terra ou paralelos bem mal amanhados, por isso normalmente só mesmo os habitantes sabem deste jardim maravilha, no centro de uma cidade agitada. O jardim parece um autêntico paraíso, mais do que isso, é uma mini floresta encantada entre prédios, talvez só tenha sobrevivido sobre os tempos porque aqueles prédios se ergueram ao seu redor. Há uma árvore centenária bem no centro que é o ponto de referência para todos aqueles que conhecem o jardim. Por ser o centro é como o sol dos prédios envoltos. 

Papagaio Amarelo, vive no prédio laranja bem em frente de Alice e gosta de comunicar todos os dias as notícias mais importantes do dia, é como o noticiário, ela gosta também de as repetir 3 vezes, não vá alguém ter apanhado o noticiário a meio. 9h da manhã e Alice pega no café, senta na sua varanda respirando fundo e sentindo na pele os primeiros raios do dia na pele. Papagaio Amarelo: “Aviso Amarelo para os habitantes. Vão sentir-se ventos fortes e chuvas intensas. Repito. Aviso Amarelo.” Quando ela disse repito não estava de facto a repetir, estava só na primeira leva desta notícia. Alice, sentia o sol a brilhar e aquecer a pele, portanto não levou o aviso amarelo feito pelo Papagaio Amarelo muito a sério. Bom, mas ainda não vos contei porque é esta vizinha apelidada de Papagaio Amarelo, já todos percebemos que ela repete as notícias 3 vezes e muito provavelmente ouve-as na rádio ou televisão logo pela manhã, depois a meio do dia e finalmente à noite. Ela tem outro aspeto característico: pinta o cabelo de amarelo, por isso, Alice vê um ponto amarelo, ao fundo, de uma varanda alta que espalha as notícias. 

Desta feita, era o aviso amarelo, mas Alice até quase se engasgava com o café de tanto rir sobre este tal aviso amarelo. Alice acabou por limpar o café que verteu e foi para o computador, onde está o dia todo, ela passava o dia inteiro no computador a trabalhar. Ainda assim, sempre que alguém lhe ligava para o que quer que fosse, ela parecia nunca estar a trabalhar, sempre teve tempo para os amigos, os pedidos de ajuda e para tudo o que eventualmente aparecesse. Alice tinha apenas um hábito: ir até ao jardim paraíso, junto da árvore ler um pouco depois do almoço. Era quando ouvia as notícias da Papagaio Amarelo que fechava o livro e voltava para o computador. 

Anoiteceu, e com a noite chegaram as nuvens e com elas, a chuva, a chuva virou trovoada e esta desligou a corrente elétrica. Todos os prédios que habitualmente iluminavam com a luz de cada casa o jardim central apagaram-se e assim ficou todo o jardim às escuras. No dia seguinte, o jardim estava revolto, ramos partidos, poças de lama e tudo desorganizado. Porém, não era só o jardim que estava em pântanos, eram 9h e Alice não foi até à varanda, a Papagaio Amarelo não espalhou as notícias e todo esse dia pareceu uma continuidade da noite. 

No dia seguinte, Alice foi até à varanda colocar as coisas no lugar, arrumar tudo o que o vento levou e a chuva destruiu. 9h e nada ouviu, meio do dia e já nem lhe apeteceu ler, fim do dia e sentia como que não conseguisse fechar os olhos e dormir. 

Outro dia ainda e pelas 9h da manhã Alice não quis levantar da cama, mas Papagaio Amarelo começou com as suas habituais notícias, suspensas depois do tal “aviso amarelo”. Alice subitamente sorriu, e como se uma nova vida tivesse nascido nela, levantou da cama, foi buscar o café e sentou na varanda. 

Papagaio Amarelo: “A luz voltou a minha casa, já vos posso dar mais notícias.”.  

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Insónias

Aconteceu-me nessa noite ter uma insónia, pois são raras as vezes que não durmo que nem uma pedra. Poderia enumerar as razões que me mantinham acordado, mas pensar nelas propositadamente iria manter-me ainda mais acordado. Assumi a minha insónia, levantei-me, vesti o roupão. Da mochila, tirei o maço de tabaco. Abri a janela da marquise da cozinha já de cigarro na mão e, nesse preciso momento, observei a coisa mais estranha que alguma vez vira. No parque-infantil – este encontra-se no jardim que serve de vista à marquise – estavam dois homens, ambos de tronco nu, a olharem-se intensamente enquanto andavam em círculo. O diâmetro do círculo ficava menor a cada volta que os homens davam. Estavam cada vez mais próximos, já a um braço de distância. Não se ouvia nada. Apenas era visível a sua respiração, quase animalesca. As suas cabeças curvavam-se para a frente, a qualquer momento poderiam se cabecear ou beijar. Um deles, não era possível distinguí-los, agarrou o outro pelo pescoço e levou-o ao encontro do seu joelho arqueado. Foi aí que ouvi um primeiro som, um gemido alto de dor, que me fez fechar os olhos por breves segundos; quando os abri, estava deitado no chão a recuperar o que acabara de levar uma joelhada; levantou-se, limpou o nariz ensanguentado com o braço e demonstrou-se de novo pronto. Estavam novamente perto, muito perto, um do outro. Alguns segundos depois, o ensanguentado vai, de punho cerrado, à garganta do outro, que a agarra enquanto tosse e respira como um asmático. O ensanguentado nem esperou pela recuperação do outro, não percebi como mas imobilizou-o rapidamente no chão com um joelho no chão e outro na caixa torácica do imobilizado, que continuava a tossir. O sangue que continuava a jorrar do nariz do imobilizador caía sobre a cara do outro. Ficaram-se naquelas posições e eu, que sustentava a respiração há algum tempo, voltei à minha realidade, percebi que tinha um cigarro na mão que não acendi. Peguei no isqueiro que já cabia dentro do maço e acendi. A chama do isqueiro chamou a atenção da visão periférica do imobilizador que agora olhava na minha direção, e eu, em pânico, fechei a janela da marquise, não querendo terminar sem camisa a lutar num parque-infantil. 

Curiosamente, nessa semana, não consegui dormir bem uma única noite; acabava por me levantar várias vezes durante a noite e ir até à marquise fumar um cigarro enquanto observava o parque-infantil. Continuo sem saber o que me manteve acordado nessa semana: se os meus problemas ou o daqueles dois homens.

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Vozes VS Eu

Quero contar um conto que seja muito interessante, mas tudo o que me aparecem são personagens miseráveis que como numa roda louca aparecem. Cada uma com o seu problema e todas me gritam aos ouvidos:

  • Quero que me ouças e me fales.
  • Dança comigo como se não houvesse amanhã.
  • Mergulha no mesmo mar que eu, como sereia, banho-me aqui, todos os dias. 

E assim continuam a falar coisas sem fim, como se eu conseguisse reportar todas as suas vozes.  E como não consigo, perco-me em algumas, vendo imagens sem fim de suas vidas. Ou pelo menos as vidas que consigo ver em apenas uma frase. 

Alguém que me pede para ouvir, é alguém que não tem ninguém para falar e por isso empresto o meu ouvido, empresto também a minha alma para que possa sentir-se em casa. E assim, prossigo a ouvir as palavras de alguém que me quer despejar coisas como: tenho caspa e não sei como resolver. Às vezes é nítido, que tudo o que precisa é de falar. Outras, é possível confundir com necessidades que soa a necessidades reais. “Tenho fome e não tenho como comer.”. É nesta altura que me levanto e pego nas chaves de casa para correr a um supermercado e colecionar no carrinho de compras tudo o que esta mulher, esta voz feminina, sopra ao meu ouvido. O pior é que quando chego à porta não sei onde me dirigir, porque não sei se de facto esta mulher existe. Sei apenas que me grita ao ouvido. Acabo por trazer as compras para casa, etiqueto como: mulher desesperada. 

Por outro lado ouço tantas vezes aquela que me pede para dançar com ela, e como não sei do que gosta ela, vejo vezes sem conta, a minha lista de música e escolho para ela umas 7 músicas. Músicas que oiço em loop o dia todo, mas que escolho para que cada um dos dias da semana se possa cantar uma diferente. De facto, se esta mulher tiver o mesmo problema que eu, irá ouvir tudo, de uma vez só. Sou viciada em consumos musicais. Continuo, no entanto, a ouvi-la a pedir para que eu dance com ela, e por isso faço-lhe esse favor e danço.

Em jeitos envergonhados, ao ver o mar na minha frente vou despindo a roupa até nada sobrar, faço-o sem perceber se está alguém a ver. Contudo, no final, acabo por olhar ao meu redor para confirmar se estou a ser vigiada. Nada. Ninguém. Então falo, como se alguém me estive a ouvir, danço até entrar no mar e mergulho desejando ser uma sereia. 

Sou alguém que vive entre o mundo das vozes e o mundo da consciência, onde tudo é tão mau que chego a implorar para que essas vozes voltem, estranho que sejam sempre vozes de mulheres e que por incrível que pareça eu quase diria que sou eu. Porém, sou alguém tão consciente e normal que nunca me permitiria ser essas mulheres que querem ser ouvidas, ou aquelas que dançam como se não houvesse amanhã, muito menos aquelas que mergulham no mar para nadar como sereias. Afinal: sereias, dizem que não existem.