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Mudanças

Quando tinha quinze anos, ponderei pela primeira vez se teria um futuro feliz. Dei-me conta que não estava no caminho certo para me tornar uma estrela rock internacional, e procurei alento na minha avó que, por muito que nunca tenha alcançado o estrelato que tanto protagonizava os meus sonhos, tinha passado metade da sua vida a cantar. A outra metade dividiu-se entre ouvir trautear o meu pai e tio e, mais tarde, ouvir-me a mim evocar Variações na cave da sua moradia gigante. Mas adiante. Naquela conversa, ensinou-me que os quinze anos eram a idade mais fértil para os sonhos – que cresciam como ervas daninhas nos cantos mais recônditos das nossas cabeças. Notar que nem todas as ervas daninhas são feias ou dispensáveis, muitas delas até são úteis para aparar as quedas no alcatrão. A minha avó também me avisou das quedas e disse-me que, a partir dos quinze anos, deixavam de deixar feridas nos joelhos e cotovelos e começavam a chegar a sítios mais escondidos. Contudo, fez notar que aquela era a melhor altura para admirar a vida e para colher dela os melhores instrumentos para imaginar.  “A vida consegue ser tão linda”, disse-me.

~

Hoje – dez anos depois – sujei as mãos, arranhei a garganta e enfraqueci as costas a tentar fazer caber essa vida linda em caixas de cartão. Esvaziei o sótão, limpei o pó e deixei espaço para quem quiser vir vaguear para este lote, uma vez que estou de saída. Encaixotei a música e as primeiras notas que cantei, junto com os poemas e os textos em que me perguntava onde ia. Houve espaço para as minhas viagens à boleia pelos céus – os meus sonhos de Kerouac, de dias em que fazia as malas, prometia não voltar e desfazia de seguida. Empacotei a varanda onde fumava às escondidas, a ver a serra de Sintra, na procura de abrandar uma adolescência em foguetão. Até consegui encolher as paredes deste quarto, os cantos húmidos, os momentos em que foram as minhas únicas amigas – houve espaço para todos os nossos segredos. Quanta barulheira ficaria dentro daquelas caixas quando as fechasse, perguntava-me. Talvez se ouvissem as tuas palavras avó, pois encontrei um postal de aniversário escrito por ti, com conselhos e votos de um próspero futuro – pôs-me a pensar o que tenho de próspero agora, e onde estarás tu.

“A vida consegue ser tão linda”, dizia no cartão. Talvez seja, avó. Com tanta música, poemas, textos, sonhos, viagens para lado nenhum, malas feitas e desfeitas que não saem do quarto, não há como não o ser. Eu talvez tenha demorado o meu tempo a ver isso – ainda não precisava de óculos na altura em que te pedia conselhos. Agora não tenho quem me ouça quando canto sozinho na cave e nem mesmo com este meu novo par de lentes te consigo ver a espreitar, na curiosidade de saber que canção cantarei a seguir. 

Arranjei várias formas de me sentir menos só, mas nenhuma me impediu de encher a casa de tralha. É irónico, porque é agora que está vazia que me sinto mais acompanhado e concretizado. Afinal de contas, não tinhas razão numa coisa – eu continuo a sonhar como se tivesse quinze anos. Mas noutra coisa estavas certa – a vida consegue ser tão linda. Pensava que a podia guardar em caixas e sótãos, mas ela está por aí. Tu estás por aí, avó. 

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Depois da ressaca

Desculpem o atraso,
queria ter chegado a tempo mas entretanto fui dar uma volta e cruzei-me com a vida
fomos nesta viagem incrível sobre existirmos e deixarmos de existir,
fez-me experienciar muitas coisas
e quando dei por mim já tinha passado muito tempo e tempo nenhum.
Isto não é uma forma de me justificar
Isto não é arranjar desculpas para a minha falta de qualquer coisa que não sei bem o quê
Isto não é uma carta
Ou um texto para o blog.
Isto sou eu depois de noites mal dormidas,
pessoas a partir,
beijos inesperados,
reencontros inevitáveis,
sobre ter calma, sobre não hesitar
sobre parar para pensar, sobre não pensar
sobre respirar fundo
e sobre nada
(ou isso queria eu).

Desculpem o atraso,
perdi-me com a vida e sei que ela esteve sempre aqui e eu é que fui para longe
e entretanto dei-me conta de que passou um ano desde a última vez quando eu diria que passou uma vida
Passou-me uma vida.
Passou-me um céu estrelado com brilhos a cair-me em cima
E uma lufada de ar fresco no peito.

Bebo um copo de tinto e brindo a nós
Porque somos sempre nós no momento do brinde
(no som do copo a bater, nos olhares que se cruzam com o brilho de quem brinda com a vida)
Desculpem o atraso mas,
estive de ressaca.

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Narciso Injustiçado

Não soube o que dizer quando me chamaste narcisita e me viraste as costas. Pensei belas costas, pensei não acho que seja narcisista, pensei que nem sabia bem se ser narcisista era o que eu pensava que era e pensei que te queria responder alguma coisa sobre isso mas já não estavas ali. Eu tinha perdido a oportunidade de impedir que fosses passear as tuas belas costas para outro lado. Nessa noite fiquei acordado como fico muitas vezes. Acho que é porque preciso de sentir a solidão. Pensei em Narciso, claramente das figuras mitológicas mais injustiçadas de que há memória. Pensei nesta afirmação e pensei logo em Ícaro, na sua sede de conhecimento visto como soberba e nalguns outros que por uma razão ou outra foram sendo erradamente reintepretados como maus exemplos para impingir a moralidade da humildade exacerbada anti-sabedoria.
Pensei que a maior lição que narciso nos dá nada tem que ver com as consequências do egoísmo, da vaidade ou do desprezo pelo próximo. Não é culpado dos defeitos da humanidade nem da situação em que foi colocado pelo oráculo que lhe destina a morte no momento em que vê o seu próprio reflexo na água e acaba por definhar, perdido na sua beleza e no amor-próprio, essa noção moderna que impingimos uns aos outros como forma de desculparmos a nossa imperfeição e encontrarmos a felicidade tranquila que nos torna mansos, desinteressados, desinteressantes, incapazes de pensamento crítico e de revolta. A verdade das histórias reside na boca de quem as conta e reconta e no recontar deturpou-se e perdeu-se a essência dessa verdade. E a verdade é que narciso é o herói da luta contra os brandos costumes, contra a aceitação da homogeneidade da espécie humana. Ele recusa o amor não correspondido e apenas deseja partilhar aquilo que no seu íntimo aceita como profundamente real. Não há nada falso em narciso, nada escondido, nada politicamente correto. Acredita na sua esplendorosa beleza e maravilha-se com a possibilidade de ser diferente, de ser único, de ser especial. Essa é a dádiva que nos deixa, a consciência da individualidade que se torna plena quando, contrariando o que lhe era imposto sob pena de tropeçar pela espiral dos dramas humanos, vislumbra o seu próprio reflexo. É por isso que narciso é o herói da história. Sacrifica a sua vida para que tenhamos consciência de nós próprios como seres diferentes de todos os outros, ao mesmo tempo que nos alerta para os perigos da salvação: Em terra de cegos quem tem olho é linchado, crucificado, apedrejado, ridicularizado e morto.
Penso, leio observo, discuto, ponho em causa e questiono, aceito a minha individualidade mas sempre com a consciência de que o conhecimento e a inteligência não trazem felicidade. Trazem consciência e sabedoria. Para cada um de nós valerá ou não o sacrifício.
Pensei que nada disto tem que ver contigo nem com as tuas belas costas mas pensei também que gostava de ter tido esta conversa contigo. Mas não podia. Já não estavas ali.

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Elefante

Pela minha janela entram os primeiros raios de sol. Gosto dessas horas em que ainda não é dia nem noite. A Noa hoje não dormiu comigo. Estranho… Ainda não abri os olhos. As drogas continuam o seu efeito quotidiano e eu tento dormir mais um bocado. Sinto um toque na pele e… um toque?! Estou sozinha. Abro os olhos naquele estilo drogado e dou um salto, ou melhor dizendo, mando-me da cama abaixo. O elefante dourado que costuma estar em cima da mesa mãe está deitado ao meu lado a desenhar-me o infinito na pele.

 – Que raio estás tu aí a fazer?! ­– Ainda não percebi se acreditei ou não no que estou a ouvir. Dou uma estalada em mim própria para garantir que não é efeito das drogas. Afinal, já tive Sir Anthony Hopkins de kilt na minha sala. Nop, é um elefante! Sim, estou de olhos abertos. Consigo ver as paredes rosa onde ele está encostado, o édredon de flores em tons frios, a bicicleta estática ao fundo, o guarda-fatos mel com baixos relevos de flores. Sim, estou acordada.

 Repeti para me convencer que ele estava ali – Que raio estás tu aí a fazer?!

-Vim te fazer uma visita, não posso?!

-É assim, filho! Se tens ideias de vir espalhar fertilidade, temos pena, já trouxeste um Siddhartha ao mundo, e eu não tenho vocação para criar o próximo Guru da Humanidade!

Num misto de curiosidade e incredulidade, comecei a admirar-lhe as decorações espalhadas pelo corpo, um lótus na testa, uma mandala no dorso, uma miríade de cores realçadas com o ouro. O bichinho era bonito.

 -Explica-me lá que vieste cá fazer?! Não queres fazer yoga, pois não? E podes contar que já tenho os chacras alinhados. Trazes sorte?! Dava jeito!

-Não…ouvi dizer que precisavas de memória. Posso-ta oferecer.

– Mas por que raio é que me haverias de oferecer memória, se me podes dar prosperidade, sucesso, sabedoria, proteção… se já te vi debaixo dum globo a suportar o mundo, se segundo os hindus até tinhas asas e brincavas nas nuvens? Não estou a perceber!

– Já ouviste a expressão “memória de elefante”? É verdade! Lembro-me de tudo e mais alguma coisa, desde o dia em que nasci até agora. Não gostavas de te lembrar da tua irmã, dos primeiros passos, de como estava o mar no dia em que te levaram para casa, do olhar da tua avó todas as vezes que te viu?

-Gostar até gostava! E como propões que faça isso? Injeção, comprimido, inalação?! Já levei de tudo!

-Fecha os olhos!

 Contrariada fechei os olhos, senti o som leve duns sinos, um pó que aposto seria dourado a cair levemente na minha pele e, numa fração de segundos, vi vários instantes da minha vida. As conversas com a minha irmã ainda na barriga da mãe, roubarem-na de mim, as tardes na esplanada com a avó, o gesso até ao pescoço, voltar a andar outra vez…todas as dores e alegrias da minha vida até este momento vieram até mim.

  Abri os olhos, não estava diferente, não me lembrava de tudo, só do Amor. O Elefante tinha razão. Ele já tinha desaparecido, mas eu não duvidei, nem por um momento, ele tinha-me dado o melhor presente de sempre.

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Conto

Catarina, por quem sois?

Esta pergunta perseguiu-me toda a semana antes de te conhecer. A amiga que nos apresentou avisou-me com alguma antecedência que iria conhecer uma Catarina. Ela conhecia as minhas experiências passadas e tentou acalmar-me dizendo-me o teu nome. Há muito tempo que não convivia com uma Catarina e por isso tinha muitos receios do que poderia esperar. Não que as Catarinas que conheci antes fossem problemáticas ou que me tivessem dado má impressão, mas digamos antes que as credenciais que me deixaram não eram muito positivas. 

Não acreditas? 

Vejamos, a última Catarina com quem convivi a sério era possuída por uma depressão cada noite que estávamos juntos. E não, por uma vez não era eu que a punha naquele estado. Era ela Ofélia e eu o espírito do rei condenado a vaguear pelas muralhas frias de Helsingør. Em desespero, ela subia a uma árvore de onde mergulhava para a sua morte no leito do rio. Noite após noite tive de carregá-la para o Outro Lado para apaziguar a sua alma e deixar a água correr. Sim, era num palco e sim, era a fingir. Não ajudou.

A outra Catarina, era muito mais poderosa e de outra categoria. Categoria 5 disseram-me. Tinha o poder de arrancar árvores pela raiz e de levantar casas inteiras deixando um rasto de desespero e destruição à sua passagem. Assustava tanto de longe como de perto. Esta Catarina, ou Katrina como ficou conhecida, deu-me um baile nos céus da costa florida. Atirou-me em todas as direções e pôs-me a voar de pernas para o ar. Foi única, mas também não contribuiu para a minha experiência com Catarinas. 

Lembrei-me ainda de outra Catarina, cuja história só conheci recentemente que, com o seu charme ensinou todo um império a parar às cinco da tarde para saborear folhas secas diluídas em água fervida.

Serias tu alguma destas? 

A dúvida angustiou-me até ao dia do nosso primeiro encontro. Chovia a cântaros. Cheguei cedo na esperança de te ver pela janela. Estavas sentada no final da sala do Café com um livro aberto no teu colo. Percebi que teria de atravessar toda a sala para chegar ao teu lado. Entre a porta da rua e a tua mesa não havia obstáculos. Ainda assim imaginei que era um soldado prestes a atravessar um campo minado na esperança de chegar a terra livre. Num campo minado o perigo está no caminho, não no destino. 

Abri a porta e entrei. 

O vento que entrou atrás de mim fez bater a porta com estrondo e levou a que todos olhassem para mim por um momento. Para mim, que pingava por todos os lados enquanto abria o casaco. Confrontei-os, olhos nos olhos, um a um. Arrisquei um passo, mas reparei que não te tinhas virado. Temi que te fosse indiferente. E que tu fosses indiferente à minha entrada. Ou que o livro que lias te levava toda a atenção. Sobraria alguma para mim? 

Dei meia volta, voltei a fechar o casaco e preparei-me para sair e diluir-me na chuva de fora quando senti uma mão que me toca no ombro. 

Eras tu. 

Atravessaste o campo minado para vir ter comigo. Disseste: “Estava à tua espera!”. E os meus receios desapareceram no teu sorriso.    

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Ensaio

Ensaio sobre o Ensaio

Quando veio,

Mostrou-me as mãos vazias,

As mãos como os meus dias,

Tão leves e banais.

Pedro Abrunhosa

Vamos falar aqui de coisas banais, outras não tão banais, vamos falar de coisas que pareciam tão banais e que agora são preciosas. Sobretudo vamos, hoje, falar de uma: ensaio.

Nunca fui muito fã de dias específicos para festejar coisas como a poesia, o livro, o teatro e outros, porém nos dias que correm estou cada vez com mais vontade de festejar, porque me trazem um sabor acre e doce. Doce porque amo cada uma destas coisas que se festeja: a poesia, o livro, o teatro e cada vez que pratico e mergulho neles sinto-me viva. O mês de março é recheado de festejos, e o de abril tem outros tantos, mas os dias parecem iguais. Vazios. Vazios porque apesar de ser possível ler, já leio como forma de viver o que não é possível viver, já escrevo sobre dias iguais e ensaios parecem miragens. Mesmo que se possa ensaiar com cuidados e tal, fazemos sempre com aquela sensação que a data de apresentação acontece se acontecer, ou acontece se for possível agendar, ou mesmo se o que ficou por fazer for escoado. Com isto, percebo que estou a ensaiar sobre a possibilidade de um dia voltar a ensaiar e com o sentimento acre de quem vê o dia do teatro como um momento para festejar o passado em vez do presente e do futuro. 

Venham mais dias banais, como os dias de antes e menos dos dias banais de hoje. Venham mais ensaios ao vivo para que eu possa deixar de ensaiar sobre o ensaio, ou até ensaiar sobre agendar um ensaio. Menos dias vazios, mais dias recheados de experiências, jogos, brincadeiras, reflexões e descobertas dramáticas. Menos drama diário, mais dele no palco, menos criatividade virtual, mais dela ao vivo e a cores. Menos disto e mais daquilo. E como diria a minha filha mais nova: “Mãe, paga o ballet, porque eu quero ir para a sala, não quero estar nesta sala, a nossa.”. Ela não sabe que não é por falta de dinheiro, mas começa, pelo visto, a entender que tanto, neste mundo que vivemos, é por e sobre dinheiro. Isto faz-me perguntar, será também dinheiro que nos impede de ensaiar e me coloca neste ensaio? E com esta pergunta abro questões que gostaria de manter privadas, portanto, não me respondam ao vivo, nem por mensagem, nada de comentários na caixa, nada de emails também. Estou apenas a fazer um ensaio e como um bom ensaio que se preze, ele é cheio de experiências, perguntas, desabafos (até), mas não é para o público. Este ensaio não é publico, mesmo que o publique, não é público. 

Assim, daqui saio com mãos não tão vazias, ainda que vazias, onde os dias são, o que são, não sei se leves e banais. Sei apenas, que chegou ao fim, este ensaio. 

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Crónica

O que é feito dos panfleteiros?

As ruas voltam a ocupar-se de gente que respeita o, mais do que seu contrário, desconfinar. Nos próximos tempos, vários locais de trabalho voltam a abrir, para prazer de alguns e sobrevivência de outros. Quero falar aqui de um trabalho que me tem inquietado: os panfleteiros. 

Em tempos pré-pandémicos, os panfleteiros eram quase uma espécie de saco de boxe, onde os stressados transeuntes descarregavam a raiva acumulada através de um “Não.” e suas variantes, ou de um simples, mas agressivo levantar de mão que impossibilita o contacto. É possível comparar um panfleteiro a um/a amado/a, ambos veem o nosso pior lado. E de uma maneira ou de outra não julgam. 

Ser panfleteiro não é fácil. Muito menos em tempos pandémicos, em que o contacto e a proximidade são evitáveis, e devem-se evitar objectos de outrem. A taxa de engajamento é, presumo eu, ainda mais baixa. Se, outrora, a recusa de um panfleto ou informação era por desinteresse (ou mau carácter), actualmente é por segurança (ou desinteresse ou mau carácter). Eu próprio vejo-me a questionar se aqueles panfletos estão desinfetados, ou até como poderia (ser persuadido a) aderir à nova rede tarifário, se o indivíduo terá de me explicar as condições no mínimo a um metro de distância de mim. Dou por mim a passar na rua e a ter pena – aquele sentimento terrível – deles porque, apesar de tudo, vivemos tempos em que aquilo que têm para nos oferecer é do nosso interesse. 

É do maior interesse de todos ter neste momento, em que vivemos permanentemente online, um serviço de internet com mais gigas, com fibra, e todos esses adjectivos que podem ser reduzidos a “rápida”. A internet nunca foi tão preciosa, sobretudo para os teletrabalhadores e os telealunos que passam o dia em reuniões ou aulas online. Contrariamente, é ótimo ter-se internet lenta, pois já ninguém suporta mais do que uma hora de Zoom; quem sofre com isto são os telealunos cujos professores já não acreditam no novo “O meu cão comeu o trabalho de casa” que é “Stora, tou com a câmera desligada porque a net tá lenta.”. Ainda no departamento das telecomunicações e multimédia, aquele absurdo de ter vários pacotes de canais – dos filmes, dos desenhos animados, das viagens, da culinária, da bricolage, da música, etc – são, agora, úteis. Já não basta os três canais nacionais que passam o dia a transmitir notícias e informações sobre o “elefante na sala”. É necessário saber o que vai acontecer à “Patrulha Pata”, o que comem os noruegueses, como procriam os cavalos marinhos ou recordar as músicas dos anos oitenta. 

Vivemos tempos de esperança, e não existem melhores distribuidores de esperança do que aqueles panfleteiros de uma determinada religião que se instalam numa esquina aleatória de uma rua não menos aleatória com um stand a proclamar o fim do mundo e como seremos poupados por um salvador. Quero nomear também nesta categoria todos os professores, especialistas dos trabalhos ocultos, e que resolvem todos os problemas de variadas áreas da vida profissional e pessoal de cada um. Até esses fazem falta.

E os que distribuem folhetos de cadeias de novos restaurantes fast-food que abrem, a cada semana, numa zona nova? Foram sempre subvalorizados, com os seus cupões e promoções, agora fiquemo-nos pelos serviços de entrega com taxas de entrega altas e condições de trabalho precárias.

Não esquecer os panfleteiros políticos e humanitários. Sempre souberam que vivíamos em modelos políticos em ruína, ninguém quis saber e agora vão para rua, como eles sempre fizeram, para reclamar o uso de máscara. 

Finalmente, os que mais engajamento conseguem: os panfleteiros de festas. O seu habitat natural é nas portas dos liceus ou universidades, em horas de intervalo ou de término de aulas; onde anunciam aberturas de novos bares ou festas temáticas, citando todo o cardápio de bebidas que tem de oferta um shot. Fazem falta as festas. E eles também. 

Agora, mais do que nunca, são necessários panfleteiros e, como qualquer amado/a, precisam da nossa atenção. Da próxima vez que vir um panfleteiro, aceite o que ele tiver para lhe dar, nem que depois deite no caixote do lixo mais próximo, como sempre se fez. 

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Poema

Um Coração ou Qualquer coisa semelhante

No nosso coração 
 
o que ouvimos
 
Nos olhos 
 
o que sentimos
 
Nos ouvidos 
 
O que lemos
 
 
Na alma
 
Com várias portas
 
da frente, que tem código
 
das traseiras que se trepa
 
da cave que é pequena e rastejamos
 
Por onde se entra?
 
Não há portas
 
Arrombamos e deitamos abaixo
 
Ficam as janelas
 
Espreitamos
 
Saltamos
 
Somos.
 
 
 
 
Contenta-te contigo
 
Atenta-te a ti 
 
Ao amor que não deve ser gratuito
 
Ao amor que não se agradece
 
Ao amor que não me pertence
 
Onde te falo com o meu silencio
 
E toco-te com a nossa distância
 
Choro-te
 
Por ti
 
Por nós
 
Por quem não sou
 
Por quem não podemos ser
 
Contento-me contigo
 
Atento-me a ti
 
Amo-te 
 
Agradeço-te


 


Nós em nós
 
Não entendo
 
apenas sinto
 
Procurei-te onde não me achava
 
Achei-te 
 
como num plágio de mim 
 
Achei-me
 
como num plágio de ti.




 
Sentes os meus olhos?
 
Se os sentires
 
Poderás ver bem o meu coração
 
Cheiras os meus olhos?
 
Se os cheirares
 
Poderás cheirar a Primavera.
 
Ouves os meus olhos?
 
Se os ouvires
 
Poderás ouvir o mar
 
Vês os meus olhos?
 
Se os olhares
 
Poderás ver o amarelo. 



 


		
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Conto Todas

Cabeça-balão

Perdi a cabeça. Podia ter enlouquecido, perdido o controlo, deixado de saber quem sou, onde estou e todas essas derradeiras questões existenciais. Podia ter perdido o emprego, um comboio, a carteira, as chaves de casa ou do carro, um amor que julgava eterno ou até um cão que me era querido. Podia ter perdido o apetite, a energia, a vontade, a memória, a paciência, a fé, a coragem… Mas perdi a cabeça.

Soltou-se fisicamente do meu corpo. Não sei precisar o tempo que perdi à procura de alguém que se fingisse especialista capaz de ajudar nestes casos de cabeças perdidas. Salvou-me uma costureira. Encarregou-se de me encher de nagalhos no pescoço para que a cabeça ficasse amarrada a mim e não me fugisse mais. Chamam-me enforcado, tal é a malha de nagalhos em nós cegos. Eu próprio já lhes perdi a conta. 

Tudo começou com uma dor na coluna. Trepou-me vértebra por vértebra e, assim que pôde, agarrou-se ao meu pescoço. Entrou pescoço adentro e esticou-se até o distender. Milímetro a milímetro, senti-os todos. Já o pescoço se via mais alto quando a dor, que julgava terminar ali, me sobe cabeça a cima. Trepou até à ponta da coluna e desaguou no que pareceu ser o centro do meu cérebro. Aí, desatou numa correria desenfreada, como quem faz do crânio uma esfera da morte – aquelas estruturas esféricas metálicas onde motas correm a altas velocidades, não sei bem se a fugir da morte, se a correrem atrás dela. A dor correu então pelo crânio e atropelou sem piedade toda e cada partícula de osso a uma velocidade que duvido ser sequer mensurável. Arrancou depois sem aviso e foi como se me tivesse atravessado a testa, esmigalhando toda a estrutura óssea que a constitui. Saiu de rompante, mas nem por isso deu espaço ao alívio. Foi como se me rebentasse a cabeça num ápice agudo e voltasse para pisar a cratera que me abriu. Nesse momento desejei não ter cabeça, quis oferecê-la à dor. Não sei se me levou a mal e quis ir ou se a levaram. Sei apenas que se foi.

Não é surpreendente que o meu corpo me desobedeça. Sou pouco coordenado, lento e desajeitado. Nunca encontrei especial habilidade para o desporto e quando a cabeça se soltou revivi a minha curta experiência no volley. Senti-me de novo a correr timidamente, em círculos e sem critério. Jogava sempre de mãos no ar, mas a bola nunca lhes tocou. Tinha a intenção, mas faltava-me intuição. A cabeça-balão soltou-se acelerada como um balão largado ainda sem nó e, tal como a bola, não sei deixava agarrar. Já era tosco quando era inteiro e a divisão não me beneficiou. 

Primeiro, é preciso algum tempo para reaprender a controlar o corpo sem o comando. Refiro-me à cabeça que, quando se liberta do corpo, renuncia à responsabilidade sobre o que nele acontece. É necessário um nível de destreza quase olímpico para almejar tocar-lhe. Agarrá-la parece coisa do divino. Depois de vaguear como quem corre, começa eventualmente a abrandar. Mas neste ponto da expedição, parece transformar-se num balão de hélio e aponta ao céu como destino. No caso, ao teto. A minha casa é alta e não sou bom trepador. Um pequeno toque, por muito cauteloso que seja, pode atirar a cabeça para outro canto. Tentei de tudo, até reconduzi-la com o auxílio de um cabo de vassoura. Foi medianamente eficaz, mas altamente desconfortável. Quando finalmente a recuperei, sentei-me no sofá com ela ao colo. A visão continua do lado da cabeça. Olhei atentamente para o meu pescoço meio desfeito com quase tanto asco como entusiasmo. O que podia exigir de mim? Tinha acabado de perder a cabeça. Lembro-me de tudo e sei precisamente como aconteceu, mas isso não me junta a cabeça ao corpo, nem explica porque é que ela se foi. 

Recorri ao meu psicanalista. Respeito o homem e o seu trabalho, mas desde que lhe contei tudo sobre como perdi a cabeça, o pescoço do senhor ganhou dois centímetros e quarenta e dois milímetros. Foi este o cumprimento preciso que o meu pescoço viu crescer numa primeira fase, que antecipava o momento em que ela se soltou de mim sem permissão. Não digo sem aviso porque o sinal estava lá. Não soube interpretar e a ciência não estava ainda preparada. 

Dou por mim nas sessões de terapia a alertar o psicanalista de que estão prestes a rebentar. Não as águas, mas as costuras invisíveis que lhe seguram a cabeça. O homem ri. Mas ri dois centímetros e quarenta e dois milímetros mais acima do que ria antes. Com a precisão que olho me concede, tenho registado o crescimento do pescoço do doutor nos últimos meses. Se o caso dele se manifestar da mesma forma que o meu – como tem sido – faltam-lhe apenas sete milímetros para atingir a expansão que o meu pescoço tinha à data da separação. Pelas minhas contas, a cabeça vai descolar pescoço-pista fora às 15h56 de quinta-feira. 

Ofereci-lhe nagalhos, mas não os quis. Deu-os ao cão para brincar. Sempre que ouço as unhas grossas do cão arranhar o chão flutuante do consultório, imagino o momento em que a cabeça do doutor levanta voo e se transforma num brinquedo. Será que vai chiar, como os brinquedos coloridos insuflados que o cão costuma trazer alegremente entre os dentinhos afiados? Chamo-lhe cão porque não sei o nome. O doutor recusa-se a dizer-me como se chama. Diz-me que é uma informação muito pessoal e não podemos criar laços. Nem criar laços, nem trocar nagalhos, e a cabeça que se vá. Já nem é por ele, que parece quase curioso por experienciar esta perda, é por mim. Podendo escolher, preferia um psicanalista inteiro. Como posso esperar que o doutor me resolva o problema do qual o próprio sofre em negação? Ninguém pede a um coxo para lhe ensinar a correr. 

Estou mais determinado a encontrar possíveis motivos para tudo isto do que o psicanalista. É esforçado, mas peca pela falta de criatividade. Gere as minhas deambulações, mas não contribui especialmente para elas. 

Comecei por baixo na escala da insanidade. Primeira opção: a culpa é minha. Sempre sofri com dores de cabeça. Desde que me lembro de a sentir, ela doía com alguma frequência. As crianças não estão preparadas para sofrer tanto e eu rogava pragas ao universo por me fazer sentir assim. A minha mãe caminhava sobre joanetes disformes que lhe causavam uma dor tão aguda que chegava a chorar. Dizia com frequência que preferia cortar os pés a sentir aquilo. Não fosse mimetizar uma arte das crianças, eu próprio considerei que cortar a cabeça podia ser a solução para o meu mal. Disse, pensei e senti que queria não ter cabeça. Talvez me tenha amaldiçoado. Ainda assim, parece-me coisa pouca para tamanho circo. 

A necessidade de perceber o porquê foi perdendo intensidade com a clara falta de respostas. O psicanalista apresentou-me uma tese que me roubou vontade de mergulhar tão fundo porque, pasmem-se, a culpa também era minha. Atirou-me à cara um episódio trágico. Tinha quatro anos quando decapitei o Sebastião, um peixe dourado que exigia responsabilidade que eu ainda não possuía. Numa manhã fria e sem vigia parental, encontrei-o a boiar e tentei reanimá-lo. Quis fechar-lhe os olhos como se vê fazer na televisão, mas não havia pálpebras que os tapassem. Os olhos ainda brilhantes e desproporcionais provocaram-me desconforto tal que, com força desmedida e num impulso que ainda hoje não compreendo, separei acidentalmente o corpo da cabeça. A imagem da cabeça do Sebastião na minha mão direita e o resto do corpo na mão esquerda assombraram-me em pesadelos recorrentes durante anos. O psicanalista diz que a culpa que guardo pode ser a causa da desintegração do meu corpo, o que me permitiu concluir que não preciso assim TANTO de uma razão. Culpa há muita e acho desnecessário chafurdar.

Escolhi ver os nagalhos que me seguram a cabeça como uma piada – ainda que palerma – sobre a minha distração crónica. Ouvi mais vezes do que seria tolerável “só não perdes a cabeça porque está agarrada”, facto que vim a comprovar pouco depois da primeira tentativa de a segurar. Percebi a piada, não ri e queria o corpo antigo de volta, por favor. Obrigado. 

Confirmei a precariedade do primeiro kit de nagalhos pouco depois de o instalar. Corto o cabelo na barbearia do senhor Zeca há mais de dezoito anos. A idade já lhe pesa na vista, os óculos deslizam nariz abaixo e, nos últimos cortes, a navalha deixou um rasto trágico, parecia guiada por uma toupeira.

O senhor Zeca começa sempre de baixo para cima e sempre atrás, onde o pescoço se cobre com os primeiros cabelos. Precisamente o local onde a dor se fixou antes de invadir o interior do meu crânio até sair num ápice pela minha testa. O senhor Zeca é um bom homem, mas é céptico. Pedi-lhe que tivesse cuidado, não fosse dar-me cabo do sistema sem querer. Incrédulo, repetiu várias vezes que era “impossível”, mas que eu era “muito engraçado”. Mesmo estando a ver todos os nagalhos, não acreditava. Explicar que tenho a cabeça presa ao corpo por pequenos cordelinhos tem tanto de insano como de exaustivo. Mas também não posso não explicar. 

O senhor Zeca não acreditava, nem aceitava a minha explicação. Já me contento quando acenam e me chamam maluquinho com os olhos. Mas a reação do senhor Zeca custou-me. Conhece-me há anos, esperava outra postura. Ouvi-lo descredibilizar o meu problema e a minha dor daquela forma, fez nascer em mim revolta. Ponderei, durante dois segundos, desfazer todos os nós e soltar a cabeça à frente dos seus olhos só para lhe mostrar que não tinha graça nenhuma. Levei a mão a um dos nagalhos centrais mas, felizmente, apesar de solta, a cabeça preserva algum juízo e soube acalmar-me a tempo. Não tenho especial prazer em traumatizar idosos. 

O senhor Zeca percebeu que me arreliou. Olhou-me pelo espelho e mostrou-se mais cuidadoso. Notei pela sua conversa que estava a tentar avaliar o meu estado e diagnosticar-me uma qualquer loucura que justificasse os preparos em que me apresentei. Entre cortes, desviava o olhar dos nagalhos. Vi-lhe o esforço, vi a tentativa de olhar para eles como quem não os vê. Sem sucesso, retomou o corte de olhar fixo no espelho, sempre nos meus olhos refletidos no espelho e nunca no meu pescoço, nunca nos nagalhos! Percebi que sairia com o pior corte até ali testemunhado, mas antes isso que uma guedelha a tapar-me os olhos. Tentei explicar-lhe que a minha vida estava tão boa ou tão má como habitualmente. Jurei que nada tinha a ver com enforcamento. “Queres morrer?”, perguntou-me, preocupado. Hesitei, mas respondi “às vezes”. O senhor Zeca afastou a navalha da minha cabeça, inclinou-se para trás e observou-me mais atento. Ri e perguntei “quem nunca quis?”. Relaxou, mas não totalmente. Antes de retomar, tentou convencer-me a deixar crescer o cabelo. “Disfarça os nagalhos, se não os quiseres tirar”, propôs-me quase como quem pergunta. “Não os posso tirar”, disse-lhe, menos paciente. “Um dia vais poder”, respondeu-me com um olhar esperançoso e uma palmadinha quente e condescendente nas costas. Julga-me louco. “Acho que o senhor Zeca não está a perceber… Se os desapertar, ela vai-se”, apontei para a minha cabeça. Não me respondeu. 

Vi-o concentrar-se no meu pescoço, levou a mão direita à bata e sacou de uma pequena tesoura. Ouvi o corte. Senti o corte. Foram-se três nagalhos e a minha nuca começou a elevar-se, como um verdadeiro balão com corda solta para voar. Suspirei aborrecido e tentei servir-me do espelho para agarrar a cabeça e atar de novo os nagalhos. O senhor Zeca, de tão aterrorizado, parecia congelado. Pálido, recupera apenas o suficiente para dar três passos acelerados para trás. De mãos na cabeça, olhei-o e dei-lhe alguns minutos para se recompor. As pálpebras do homem continuavam a desafiar a física e abriam mais e mais. “É verdade”, disse o homem entre gaguejos. Confirmei-lhe o que via e pedi ajuda para voltar a amarrar a cabeça ao corpo. Cedeu hesitante, quase enojado, mas sobretudo arrependido. Larguei a cabeça quando ele a agarrou. O senhor Zeca sentiu a força da cabeça-balão e, talvez assustado, largou-a bruscamente. A nuca voltou a virar-se para o céu e o movimento fez soltar mais uns quantos nagalhos. “Ela flutua!”, exclama mais entusiasmado. Para lá dos meus pés, só conseguia ver a minha vida a andar para trás. Consegui amarrar a cabeça, mas continuo à procura de um barbeiro… O senhor Zeca não me apanha lá que não tente cortar uns quantos nagalhos para me exibir aos outros clientes como um número de circo incluído no serviço.

Talvez tenha enlouquecido, perdido o controlo, deixado de saber quem sou, onde estou e todas essas derradeiras questões existenciais. Talvez tenha perdido o emprego, um comboio, a carteira, as chaves de casa ou do carro, um amor que julgava eterno ou até um cão que me era querido. Talvez tenha perdido tudo e isso me tenha levado a perder a cabeça. Não sou louco, sou um decapitado que respira e procura um barbeiro. A cabeça fez-se balão, mas nem assim deixou de doer.

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Não eram Margaridas

Conduzimos para fora da lei
Naquele teu dia de anos.
A quarenta minutos da cidade,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber de nada.
Ninguém tinha de saber de nada.
Dei-me por feliz por termos chegado até ali.

O tempo deu-nos permissão,
E nós demos-lhe propósito,
Onde, encontrados num campo de margaridas,
Não tínhamos de ser bons,
Não tínhamos de ser maus,
Nem sequer tínhamos de saber as nossas canções.
Ninguém sabia que eram nossas as canções.
E eu dei-me por feliz por ter chegado até ali.